Essas flores brilhantes são os mais amados de todos os sonhos não realizados. E esses coléricos vulcões são as paixões dos mais magoados corações.
Puissance de la Parole (1988), Jean-Luc Godard
Entra-se em Diálogo de Sombras (2021) através de um plano inusitado, mas revelador de uma das mecânicas do filme de Júlio Alves: a problemática do acto de ver. Uma figura assiste a uma projecção, um trecho de um filme que sabemos ser interpretado por Ventura, pela voz que nos chega do fora de campo. No início de diálogo com os écrans de Pedro Costa e das companhias dispostas nas várias galerias de Serralves (exposição Companhia, Outubro de 2019 a Janeiro de 2020), esse espectador está delimitado por uma porta de luz e ladeado por sombras. Ponto de partida, então, para uma articulação da obra de Pedro Costa e dos demais convocados para a exposição, mas também de debate da transferência do espectador da sala de cinema para o museu, designadamente do arthouse, numa época em que se fragmenta a exibição, se estilhaça a sala como espaço preferencial de encontro de diversos públicos, de obras de carácter múltiplo, a coberto de uma arte popular que já somou 125 anos.
Um vulcão em erupção, uma fornalha que nos introduz na exposição e que corresponde às primeiras imagens de Casa de Lava (1994), tomadas de empréstimo de A Ilha do Fogo e as suas Erupções (1951), importante estudo do geógrafo Orlando Ribeiro, despoletado pela erupção de 13 de Junho de 1951 em Cabo Verde. Pedro Costa saiu da primeira fornada da Escola Superior de Teatro e Cinema, uma turma que incluía Manuel Mozos, João Pedro Rodrigues, Joaquim Sapinho e Teresa Villaverde, numa geração que se estendeu com notoriedade até aos nossos dias, de cineastas providos, então, das mãos de António Reis e Paulo Rocha. A primeira longa-metragem de Pedro Costa, O Sangue (1989), histórias de infância e juventude, serviu para arrumar as influências, de A Sombra do Caçador (The Night Of The Hunter, 1955) à estética e aos lugares de Kenji Mizoguchi [Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) esteve também nos ecrãs de Companhia]. Se O Sangue é uma das importantes primeiras obras do cinema português, a “obra” de Costa só arranca à segunda: de Cabo Verde e das cinzas do vulcão, proveu a gestação de uma paisagem, de um solo, a génese de uma cartografia de criaturas míticas.
Um filme de ruptura, em que os protagonistas de O Sangue, Pedro Hestnes e Inês de Medeiros, asseguram a transição de lugares no espaço contínuo do cinema: um cabo-verdiano, Leão (Isaach de Bankolé) tem um acidente de trabalho numa obra de construção civil em Portugal e é devolvido em coma, meio morto, ao país de origem. Casa de Lava é, então, a primeira tentativa de fuga de Pedro Costa aos modos de produção tradicionais do cinema, que aqui já se traduzem por extensos travellings que acompanham a descoberta de um novo território pela enfermeira Medeiros (que acompanhou Leão), que se estenderão ao filme seguinte, Ossos (1997), primeira descida do cineasta ao subúrbio encantado, aos abismos do Bairro das Fontainhas, onde voltaremos a encontrar Clotilde Montron (é da soleira da sua porta que saímos de Casa de Lava) e as precárias construções, barracos cobertos de um verde musgo pelo seu interior.
Numa narrativa muito solta, assente numa diversidade de escala de planos e na força da banda de som, dentro e fora de campo, retrata-se uma comunidade fechada, entrópica, que parece sepultada na base da montanha vulcânica, com os jovens a acenarem com propostas de trabalho em Sacavém, descrita como a terra prometida. Leão, um morto-vivo, é como um líder adormecido de zombies, criaturas fantasmáticas, deserdadas mas dotadas de virtude e linguagem próprias, numa réstia do primeiro esquisso de Casa de Lava, a de fazer um remake de I Walked With a Zombie (Zombie, 1943) de Jacques Tourneur. Costa começava, assim, a construir um tema, dir-se-ia um ideário político, em que a incompreensão entre os dois povos é intensificada pela língua utilizada, a linguagem a favorecer a incomunicabilidade: ao crioulo de Leão e dos nativos da ilha, Medeiros responde em português.
A enigmática presença de Edith Scob, personagem silenciosa, depósito de segredos e pesadelos do passado, máscara do horror de Les Yeux Sans Visage (Olhos Sem Rosto, 1960), introduz a materialidade da História, com a apresentação de documentos que autenticam prisões e mortes à mão da PIDE, no Tarrafal. Na exposição e no filme de Júlio Alves, é colocado em diálogo a carta de Robert Desnos, que o poeta francês escreveu para a esposa Youki a partir de um campo de concentração na II Guerra e que surge pela primeira vez em Casa de Lava pela voz de uma criança, uma apropriação que se prolongará até Juventude em Marcha (2006), num vai e vem emotivo, que dispensa a cronologia e se renova, como um clássico da Literatura, em histórias de aniversários, de presentes com cheiro de memórias de flores.
Ventura conquistará o estatuto de protagonista em Juventude em Marcha, no embate com os edifícios brancos de habitação social, casas com projecto e com programa, mas que se revelavam inadequadas, a quem fora empurrado das catacumbas arrasadas das Fontainhas. Em Cavalo Dinheiro (2014), Ventura deambula pelos túneis da memória de um hospital psiquiátrico, onde confluem de forma desordenada a guerra colonial e os períodos que sucederam ao 25 de Abril. Num filme onde o discurso político é muito intencional, Ventura surge como o representante de uma linhagem de emigrantes e rememora o trabalho duro da construção civil, à chuva e ao frio, mão de obra explorada e subnutrida, de onde muitas vezes se saía aleijado ou demente para a vida. Ventura, que na consulta diz ter 19 anos, para pouco depois se afirmar reformado, visitará lugares de trabalho, fábricas que são agora armazéns arruinados pelo tempo, lugares assombrados por fantasmas de uma comunidade; o exorcismo chegará próximo do final do filme, na sequência do elevador, onde Ventura partilha gritos e demónios de guerra perante um soldado envernizado, bom ouvinte que sentenciará a necessidade de sofrimento, da aceitação do sacrifício, em troca das possibilidades de futuro.
Em noites de interiores, de corredores e espaços confinados, Ventura e os restantes personagens são muitas vezes demónios, mas são quase sempre semi-deuses, aristocratas enquadrados por um rectângulo ou um círculo de luz (…)
Portrait d’ un Noir, pintura do século XIX de Theodore Géricault, que estava entre a Companhia de Pedro Costa, é enquadrado também por Júlio Alves numa extensão de Cavalo Dinheiro, que explicitou a atribuição de um estatuto distinto aos personagens de Pedro Costa, uma aristocracia, uma genealogia de retratos de dignidade e firmeza. Encontramos, também, na pintura de Caravaggio, nos seus retratos do limiar do seculo XVII, afinidades com estas composições, na forma como a luz elogia o volume das figuras, na escolha de personagens humildes, a que uma luz rasante atribui rugas e humanidade; contrastes de luz e sombra, então, não de uma luz natural, mas uma luz inventada, que ilumina os corpos, mas deixando o resto do quadro na escuridão, como se as figuras assomassem da sombra.
Vitalina Varela junta-se a Ventura no buraco negro da memória e da demência, ela que protagonizará e dará nome ao filme seguinte de Pedro Costa, como uma estafeta na linhagem a que nos referíamos. A presença de Vitalina intensifica as memórias do passado em Cabo Verde, mas também as esperas, a saudade e o cansaço por muitos anos de trabalho, o adiamento de um salário digno, que permitisse trazer a família de Cabo Verde que se deixou para trás. O tronco e o rosto ou uma parte dele, de Vitalina ou de Ventura, pontualmente juntos, surgem em quadros envoltos em sombras, num ligeiro contrapicado e com os rostos um pouco direccionados para a direita, um plano-tipo que vimos replicado nos filmes e nas projecções de Serralves, que eleva o estatuto dos personagens para lá da dignidade e da lamúria, uma nobreza e uma estética aproximável ao Sergeant Rutledge (O Sargento Negro, 1960), personagem ilibado pelo Cinema de John Ford, e que é também resultado da sofisticação e o apuro de Pedro Costa com o digital, na porta aberta por No Quarto da Vanda (2000), a que nos dedicaremos numa das partes desta crónica.
Em noites de interiores, de corredores e espaços confinados, Ventura e os restantes personagens são muitas vezes demónios, mas são quase sempre semi-deuses, aristocratas enquadrados por um rectângulo ou um círculo de luz, um artifício herdado da Hollywood de Josef von Sternberg, que lançou luz, branco sobre branco no rosto e na figura de Marlene Dietrich, nos sete filmes que concretizaram em conjunto. Vitalina lê a correspondência da embaixada que noticia a morte do marido, para depois partilhar a certidão de óbito e as certidões de casamento e de nascimento dela e do marido: histórias individuais e História de um povo, que as imagens de Costa acompanham com uma fonte de uma praça, príncipes de mármore montados a cavalo, como figuras aladas.