Bruno Dumont tem uma abordagem filosófica ao cinema, fruto da sua formação académica e de um autodidactismo no que respeita à sétima arte, que também responderá pela individualidade dos seus filmes. Foi à segunda obra, L’humanité (1999), que Dumont entrou para a constelação dos autores mais reverenciados em França e fora dela. Diríamos que esse título é a síntese mais perfeita do seu cinema, feito de obras que questionam o que é ser-se humano em condições extremas que violentam a natureza própria do conceito, e que o colocam em comunicação com algo que nos transcende, que poderemos designar por sagrado.
E temos um longo caminho a percorrer, nós e a protagonista, até que cheguemos a algo em France (2021) que sugira o sagrado. À maneira de um inquérito filosófico sobre um universo particular (no caso, o jornalismo político televisivo), France coloca mais e mais questões onde o espectador procurará respostas. É uma obra que resiste a que sobre ela elaboremos um discurso mediático pronto a usar. O filme tem a inteligência de não adoptar uma estratégia de denúncia, apresentando sinais mais ou menos histriónicos da parte dos que fazendo se entregam ao fluxo narrativo de hiper-realidade que constitui o jornalismo televisivo, e o seu modo de reconstruir os factos e a realidade em função dos índices de audiência.
No centro deste furacão digital pós-fabricado está a personagem principal, France de Meurs (Léa Seydoux ainda mais extraordinária do que alguma vez antes a víramos), a jornalista mais popular do seu país, que habita uma realidade alterada que ela própria constrói nas reportagens e nos debates por si moderados. A tele-existência de France coloca-a para o comum dos mortais num firmamento superior, a que alguns acedem esporádica e ocasionalmente quando na presença da jornalista, a quem pedem que com eles partilhe uma selfie. France é um anjo, um ser virtual na realidade dos humanos que a idolatram, e será mais tarde um anjo caído, fruto dos acidentes pessoais que a levarão a questionar-se, a pôr-se em causa, que é a abertura da via de comunicação do humano com o sagrado: quando temos a humildade de aceitar o que nos acontece e reconhecermos o papel da providência nas nossas vidas.
France é o filme mais estilizado de Bruno Dumont, no sentido da artificialidade das imagens (imagens de “plástico”), do acentuar do digital na coloração berrante, no esbatimento de contornos, e na integração das imagens menos nobres da televisão numa obra cinematográfica.
France é o filme mais estilizado de Bruno Dumont, no sentido da artificialidade das imagens (imagens de “plástico”), do acentuar do digital na coloração berrante, no esbatimento de contornos, e na integração das imagens menos nobres da televisão numa obra cinematográfica. A realidade de France, já o frisámos, é a hiper-realidade das televisões, e da vida das figuras públicas comentada pela imprensa sensacionalista e pelas redes sociais. Um atropelamento de pequena monta, de que France, distraída com a caminhada do filho para a escola, é responsável, será o primeiro incidente a fazer quebrar o verniz ilusório da sua identidade globalizada. Mais tarde haverão ainda um detalhe técnico comprometedor da imagem da jornalista e da sua produtora, e um drama pessoal de máxima pungência.
Também revelador da inteligência da abordagem de Bruno Dumont a esta história, é o facto de não fazer dela um trajecto de aprendizagem. France atravessa as convulsões da sua vida, questionando o valor do que faz, é certo; colocando-se em causa, e mesmo abandonando temporariamente a profissão, mas nada nos garante a exemplaridade do seu percurso, que é mais o de uma sobrevivente de luxo, que o de um ser humano que tenha experimentado qualquer tipo de evolução espiritual ou mundana. Procuramos o real em France que habilmente nos escapa, nunca certos de termos agarrado o tom do filme, que oscila da sátira ao sarcasmo, da ironia ao sardónico. E manifestações do real, onde estão? Nas lágrimas de France que dão conta da vulnerabilidade de alguém que perde o controlo de quem pensava ser e do modo como exercia essa soberania celeste e virtual? Nas imagens da paisagem do Norte de França (de onde Dumont é originário, e presença constante nos seus filmes), geografia que serve de fundo à história de um monstro de carne e osso responsável pela violação e morte de várias mulheres e crianças? Ou na violência brusca da cena final, que sentimos como que um murro na artificialidade que impregna o filme, e que irrompe e desaparece sem dar explicações? São mais perguntas, a juntar às outras todas, em sintonia com o pensamento de Bruno Dumont que é sempre o mesmo, assumindo formas diferentes de filme para filme.