Montrer la joie de l’action et le plaisir de l’existence ; il y a certainement des gens heureux de vivre, dont les jouissances ne ratent pas et qui se gorgent de bonheur et de succès.
Émile Zola, Au Bonheur des Dames
No piso térreo de uma galeria comercial em Bruxelas, em meados dos anos 80, cruzam-se e enredam-se os destinos dos empregados e dos patrões de vários estabelecimentos vizinhos: um salão de beleza, um pronto-a-vestir, um snack-bar e uma sala de cinema. Porém, os “anos dourados” deste espaço comercial parecem já longínquos: por um lado, as montras das lojas expõem menos os produtos à venda que os dramas íntimos e secretos das personagens; por outro, as visitas de clientes tornam-se raras, deixando bastante tempo livre para cada personagem cantar os seus desamores. Assim, a empregada do snack-bar lê em voz alta as cartas que o seu noivo lhe envia do Canadá, para onde emigrou na esperança de fazer fortuna; o filho dos gerentes da loja de roupa mantém um caso com a patroa do salão de beleza, por sua vez amante do proprietário do centro comercial, mas fica noivo de uma das cabeleiras, que nutre por ele uma paixão platónica de longa data; e a dona do pronto-a-vestir reencontra um amor de juventude perdido de vista durante a Segunda Guerra Mundial, reencontro que a leva a interrogar-se quanto ao futuro do seu casamento, confortável mas já sem chama. E como na tragédia grega, há aqueles que vivem os dramas e aqueles que os comentam: neste caso, um coro efervescente de jovens cabeleireiras, que espiam e comentam as vidas alheias.
Não, não se trata de um dos filmes en-chantés de Jacques Demy, embora este catálogo de personagens e as respetivas intrigas românticas evoquem as situações dramáticas a que este cineasta nos habituou em filmes como Les Parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, 1964)ou Les Demoiselles de Rochefort (As Donzelas de Rochefort,1967). Quem realiza este “méli-mélo” cantante é a cineasta belga Chantal Akerman, que escreveu também as letras das músicas e o argumento, em colaboração com alguns dos autores “habitués” da Nouvelle Vague e do cinema de autor francês, como Pascal Bonitzer ou Jean Gruault. No elenco, maioritariamente jovem e feminino, figuram várias caras conhecidas: Miriam Boyer é Sylvie, a sonhadora empregada do snack-bar; Fanny Cottençon é Lili, femme fatale e patroa do clã de cabeleireiras, entre as quais a futura cantora e atriz luso-belga Lio no papel da apaixonada Mado, acompanhada por Pascale Salkin e Nathalie Richard; também os atores veteranos Delphine Seyrig e Charles Denner integram o elenco, interpretando o casal Schwartz, proprietários do pronto-a-vestir.
Verdadeiro “ovni” na filmografia de Akerman, Golden Eighties (1986) não deixa de ser um filme extremamente pessoal, onde a cineasta revisita alguns dos seus temas habituais – obsessões/deceções românticas e angústia existencial como vitrine das crises política, económica ou ideológica que atravessam a sociedade moderna –, dando-lhes uma roupagem inesperada: um estilo pop minimalista em tons pastel, numa atmosfera algo sinistra e claustrofóbica, que reconstitui perfeitamente a estética dos shopping mall em decadência nos anos 80. O confronto com os códigos da comédia musical não impede Akerman de continuar a explorar a sua sensibilidade visual através da experiência intensiva e extensiva dos eventos fílmicos. Contudo, em Golden Eighties, o trabalho do tempo dá lugar a uma exploração do espaço singular em que decorre a ação, nomeadamente pela forma como a câmara se relaciona com os corpos saudosos ou ardentes de desejo, e pelo modo como esta executa a sua coreografia através das galerias e vitrines geometricamente organizadas por cores e texturas.
Pela ligeireza e dinamismo de alguns dos números musicais – entre os quais a canção “Méli Mélo” de Marc Herouet –, oscilando entre humor agridoce e revolta festiva, Golden Eighties apresenta-se como uma lufada de ar fresco numa obra preenchida de gravidade e de melancolia.
Quando pensamos em Chantal Akerman, pensamos inevitavelmente em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), crua imersão na rotina alienante de uma dona de casa que as circunstâncias conduzem à prostituição. Note-se que é Delphine Seyrig quem interpreta as duas Jeannes de Akerman – Dielman e Schwartz –, mulheres profundamente marcadas pela memória do Holocausto e dos campos de concentração; mas as semelhanças entre os dois filmes ficam-se por aí. À primeira vista, a realização de um musical não podia estar mais nos antípodas desta obra-prima feminista que valeu a Akerman um imediato e duradouro reconhecimento a nível internacional. Talvez por isso tenha sido particularmente difícil para a cineasta de Jeanne Dielman conseguir financiamento para o seu projeto musical.
Na origem de Golden Eighties, encontra-se na verdade um documentário intitulado simplesmente Les Années 80 (1983), filmado no início da década com o objetivo de angariar fundos para a futura longa-metragem. Para além das cenas de casting, testes técnicos e ensaios com os atores, esta espécie de “pré-making off” introduz vários fragmentos de diálogos e de números musicais que Akerman pretendia filmar. À semelhança de Jean-Luc Godard, que na mesma altura realizava Passion (Paixão, 1982) e Scénario du film Passion (1983), em Les Années 80, Akerman põe a nu o seu trabalho de pesquisa e de experimentação e questiona-se sobre o processo criativo de uma obra de ficção a partir do material “bruto” incluído no documentário: “Como é que, entre o argumento ainda irrepresentável e sua futura representação, os diferentes elementos da realidade se vão organizando gradualmente até a produção de um filme? Como é que, a partir da realidade, chegamos à ficção?”
Comecei este texto com um excerto tirado do romance de Émile Zola Au Bonheur des Dames (O Paraíso das Damas, primeira edição em 1883), o qual retrata, em pano de fundo da história de amor entre uma jovem de origens modestas e um empresário bem-sucedido, a consolidação dos grandes armazéns haussmanianos em Paris e o consequente declínio do pequeno comércio familiar. Contrariamente à sua restante obra, em Au Bonheur des Dames, Zola encara com otimismo as transformações da sociedade e a lógica darwinista do capitalismo, oferecendo ao leitor uma história de ascensão social e uma promessa de prosperidade. De forma menos direta, esta epígrafe pode evocar a fórmula do mundo idílico e jubilatório da comédia musical hollywoodiana, onde cantar e dançar funcionam não só como um duplo antídoto contra a morosidade do quotidiano e a nostalgia do passado, mas são também a chave para o sucesso, tanto na vida sentimental como profissional. Enquanto que na comédia musical clássica dos anos 30 a 50 é raro que questões políticas ou sociais sejam abertamente abordadas, esta tendência parece mudar a partir dos anos 70, com filmes como Saturday Night Fever (Febre de Sábado à Noite, 1977) de John Badham, Hair (1979) de Milos Forman ou ainda L’une chante, l’autre pas (Uma Canta, a Outra Não, 1977) de Agnès Varda. Também em Golden Eighties podemos ver, simultaneamente, o “reverso da moeda” do romance de Zola e do género da comédia musical: trata-se, no fundo, de um filme musical quase anti-romântico, onde se canta o desencantamento, e onde amor e negócios são encarados com igual dose de pragmatismo e de resignação.