Uma das últimas lendas vivas do cinema francês do século XX ligadas ao despontar da Nouvelle Vague, o actor Jean-Paul Belmondo faleceu no passado dia 6 de Setembro de 2021, em Paris, com 88 anos. Um nome para sempre ligado a esse movimento, cedo distinguiu-se pela sua participação em À bout de souffle (O Acossado, 1960), tendo voltado a colaborar com Jean-Luc Godard em Une femme est une femme (Uma Mulher É Uma Mulher, 1961) e Pierrot le Fou (Pedro, o Louco, 1965); trabalhou ainda com nomes como François Truffaut, Jean-Pierre Melville, Claude Chabrol, Louis Malle, Claude Lelouch, Alain Resnais, criando algumas das mais icónicas personagens da história do cinema francês: ao todo são 79 créditos como actor, entre 1957 a 2008. Os walshianos reúnem-se para prestar homenagem a uma figura incontornável do cinema.
A primeira vez que encontrei Jean-Paul Belmondo foi, e suspeito que muitos partilhem da mesma experiência, perante o seu indomável bandito-gangster revoltado e afável de À bout de souffle (O Acossado, 1960), porta de entrada para a Nouvelle Vague e para um novo cinema, notável também pela forma como Belmondo conseguia aí a façanha de criar algo novo, nunca antes visto, uma imitação-inspiração de Humphrey Bogart que depois ganha vida própria. Segui-o obviamente e imediatamente nos seus outros dois filmes com Godard do mesmo período, Une femme est une femme (Uma Mulher É Uma Mulher, 1961) e Pierrot le Fou (Pedro, o Louco, 1965), onde ecoava esse espírito rebelde, experimentalista e naturalista, à procura do seu espaço no mundo mas pouco preocupado com os outros. Encontrei-o ainda diversas vezes ao longo dos anos (desta vez já sem ser por ordem cronológica), em filmes como por exemplo Le Doulos (1962), onde, mesmo quando parecia repetir-se em papéis semelhantes, sobressaia sempre um carisma magnético, uma forma única de reivindicar para si o primeiro plano da acção.
Por um qualquer acaso, só muito mais tarde descobri Léon Morin, prêtre (Amor Proibido, 1961), magnífico filme de Jean-Pierre Melville, onde Belmondo interpreta um padre, um ano depois da fama e coolness e sensualidade de À bout de souffle, recusando tudo isso (ou não: podem tirar esses atributos da personagem mas não de Belmondo, e Melville joga precisamente com isso), a favor de um registo completamente diferente do que lhe conhecia de outros filmes: os gestos bruscos dão lugar a gestos delicados, a palavra ganha proeminência como um campo para jogos de sedução através do debate intelectual, mas acima de tudo os silêncios, os olhares, o que não é dito, o que fica por dizer, e o que é dito contra o que o coração deseja. Em Léon Morin, prêtre, Melville mostra-nos uma vila francesa ocupada pelos alemães durante a 2ª Guerra, na qual todos os homens foram mortos, capturados ou tiveram de fugir – excepto o padre do título, que tenta desesperadamente salvar todos os que restam: os judeus condenados ao exílio, as mulheres da solidão, os fiéis das suas crises de fé, e acima de tudo os não crentes a encontrar salvação, exemplificado aqui através da personagem interpretada por Emmanuelle Riva [mais uma vez espantosa, dois anos depois de Hiroshima mon amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959)]. Jean-Paul Belmondo, confundindo-se com a personagem e com os seus atributos, encarna todas as suas complexidades e ambiguidades: ao mesmo tempo intempestivo, intenso e imponente, mas também circunspecto, reservado e impotente; acima de tudo, inesquecível.
João Araújo
Talvez a comparação seja um pouco despropositada, porém, Deleuze em A Imagem-Tempo, confessa que apesar da mestria técnica de Fred Astaire, a fisionomia de boxeur e os gestos desarticulados e rítmicos, faziam de Gene Kelly um bailarino superior. Ao pensar em dois dos actores principais de Melville – Delon e Belmondo (é igualmente justo e necessário relembrar o enorme Lino Ventura) – ocorre-me pensar em algo semelhante, sem, no entanto, tomar partido de um em detrimento de outro. Até porque Delon será sempre o meu actor fetiche, mas tal como Melville compreendeu, a suprema elegância de Delon adequava-se melhor aos filmes matemáticos e austeros, enquanto Belmondo era a imanência da virilidade, a figura por excelência que incorporava o gangster americano (é possível incluir Belmondo na mesma linhagem de Sterling Hayden, Robert Ryan ou Robert Mitchum e ciente desse aspecto estava Godard quando o escolheu para o emblemático papel em À Bout de Soufle (O Acossado, 1960) com o toque francês necessário (o olhar doce e os lábios carnudos) e um corpo prodigioso, mas refreado por um porte mediano.
A primeira das três colaborações entre Belmondo e Melville, ocorre em 1961, em Léon Morin, prêtre, onde o ar rústico, mas equilibrado por uma beleza cândida, faziam de Belmondo o padre de periferia ideal. Mas será um ano mais tarde, em 1962, que Belmondo dá o salto e abandona o seu ar juvenil, para assumir a figura de homem adulto, onde o rosto por vezes por barbear e já de traços largos e vincados, tornavam ainda mais expressiva a presença de um olhar que nunca perdeu a bondade da infância. Este é o criminoso de Melville mais frágil, contudo mais imponente (porque tanto Lino como Delon, representavam outros dois arquétipos: o gangster em declínio, preso a um código de cavalheiros que não mais existia e o lobo solitário), porque tudo em Le Doulos se joga no corpo a corpo [se quisermos dividir a obra de Meville em duas fases, podemos considerar que Le Doulos, Bob le Flambeur (Bob, o Jogador, 1956) e Deux Hommes dans Manhattan (Dois Homens em Manhattan, 1959) são de ordem física e a posterior obra, no qual incluo todos os filmes com Delon e o prodigioso L’Armée des Ombres (O Exercito das Sombras, 1969) de ordem cerebral]. Belmondo trabalhará ainda uma última vez com Melville, em 1963, naquele que eu considero ser o filme mais fraco de Melville. Mas L’Aîné des Ferchaux (Um Homem de Confiança), não deixa de ser um filme curioso, não só pela envolvência do território americano a quem o ideário de Melville foi tão devedor, como pelo próprio desvio de actor e realizador, num género que não os caracterizava. Importa dizer ainda que pouca relevância tem mencionar os papéis e os filmes tenebrosos nos quais Belmondo participou para lá de 1969 (sei que há muitos que ainda acarinham o filme de Resnais, mas infelizmente não suporto o filme e por consequência arrasto Belmondo nessa memória), o último magnífico papel de Belmondo de que me recordo, em La Sirène du Mississipi (A Sereia do Mississipi, 1969) de François Truffaut, por isso, guardemos antes a imagem deste actor de que vos falo, actor indiscutivelmente maior, de uma imensa beleza tosca e de uma voz sedutora e grave inesquecível.
Bernardo Vaz de Castro
Num hotel da Ilha Reunião, ouvimos alguém sussurrar: “Dizem que ele nunca viu a rapariga. Ele nem sabe como ela é.” Mesmo quando os vemos juntos pela primeira vez, Louis (Jean-Paul Belmondo) e Julie (Catherine Deneuve), nunca nos é dado a saber por inteiro quem são realmente. E em nenhum momento Truffaut dá ao seu espectador essa satisfação. Quando Julie confessa a Louis que o ama, ele acredita nela. E nós, acreditamos nele? Pouco importa. As constantes voltas e reviravoltas do argumento de La sirène du Mississipi colocam tudo em precipício, diga-se até, com demasiada frequência, numa impossibilidade de reconhecermos muitas das vezes com honestidade os gestos dos seus protagonistas. Apesar de todo o seu talento, é-nos um pouco difícil aceitar verdadeiramente o personagem de Jean-Paul Belmondo e a sua ingenuidade. Não porque os seus sentimentos não sejam verdadeiros (uma obsessão pode mover uma paixão), mas porque as circunstâncias em que coloca a nu esses mesmos sentimentos desafiam a sua credibilidade. Mas é precisamente nessa impossibilidade de se mostrar verdadeiro que reside a beleza da sua interpretação.
Longe das suas outras interpretações suaves e charmosas, Bébel dá vida a um amante ingénuo, pronto para fazer qualquer coisa pela sua amada, mesmo que esta seja um pedaço de mau caminho. Retratado aqui como uma vítima voluntária, Louis Mahé é tão comovente quanto o destino que lhe parece fadado: condenado que está desde logo pelo seu coração. Louis é um homem fraco (apesar da sua aparência), enfeitiçado por uma mulher forte (apesar da sua aparência). Um filme à frente do seu tempo, pelo tom disruptivo e uma constante ambivalência, tendo por isso mesmo desconcertado muito dos seus espectadores e especialmente os fãs de Belmondo à altura. Como em cada um dos filmes de Truffaut, La sirène du Mississipi, revela-se um jogo impressionante de realização e de sentido de narrativa, as cenas e os diálogos marcantes, as referências incisivas e inteligentemente destiladas. É um testemunho comovente de um triplo amour fou: de Louis por Julie/Marion, de Truffaut por Catherine Deneuve, e de Truffaut pelo cinema maior de Hitchcock. Um amor louco, livre, amoral, sensual, mas também generoso. E da mesma forma que a dinâmica e o magnetismo de Julie e Louis ainda hoje nos deixa enfeitiçados, parte dessa magia deve-se a Belmondo e à sua presença singular. Entre uma alegria e uma dor, foi inteiro.
A bientôt, Bébel.
Nuno Gonçalves
François Truffaut afirmava ser este um filme que, para ele, simbolizava o encontro de duas gerações de actores – a geração de Jean-Paul Belmondo que, ainda que longe do fim da sua carreira, se cruzava (simbolicamente, um encontro que tem lugar numa escada, em que uns descem e outros sobem) com uma nova geração, a de Gérard Depardieu, que em Stavisky… (Stavisky, o Grande Jogador, 1974) tem um micro-papel de cerca de um minuto. Podemos ir mais longe, referindo que, na verdade, é um cruzar de três gerações, já que também temos a oportunidade de ver Charles Boyer num dos seus derradeiros (e marcantes) papéis. Foi preciso um escândalo Madoff para resgatar do reino do esquecimento (dos mortos?) filmes como Stavisky ou Stolen Holiday (1937) e neles encontramos os ecos de outros escândalos financeiros recentes.
Em Stavisky, Belmondo encarna o papel do homem que usou de inúmeras artimanhas financeiras para chegar às esferas do poder e que, caído em desgraça, é abandonado pelos mesmos arautos da integridade que jantavam à sua mesa. Mas ele faz da vida de fachada um ofício apaixonante, mais preocupado com uma certa arte de viver, uma joie de vivre [encarnando na perfeição a citação do The Lady Eve (As Três Noites de Eva, 1941), de Preston Sturges – “Let us be crooked, but never common”]. Belmondo possui, claro está, o aplomb necessário para se sentir tão à vontade num fato de operário quanto num smoking, sendo aqui o actor supremo, o homem que responde por vários nomes e que percorre a vida como um espectro (atormentado, também ele, pelo espectro do pai), mas nunca vacilando quanto à sua única certeza, Arlette – ela que vimos, como morta, deitada numa cama rodeada de flores, e que deixa as suas vestes brancas para vestir sentidamente o luto por Stavisky, a quem sempre foi fiel. Num filme percorrido em toda a sua extensão, como um rio, pela morte, guardamos a imagem do cesto de flores depositado no final à porta da prisão (prisão que é, para Stavisky, algo de mais grave do que a morte) e ficamos com as palavras do barão de Charles Boyer, que cita o espectro de Giraudoux: “Ce qui me plaira dans la mort, c’est la paresse de la mort, cette fluidité un peu dense et engourdie de la mort qui fait qu’en somme, il n’y a pas des morts, mais uniquement des noyés.”
Daniela Rôla