(Re)vê-se Jacob’s Ladder (BZ – Viagem Alucinante, 1990) hoje, quando o filme fez um percurso muitíssimo interessante para lá da carreira subestimada do seu realizador, o britânico Adrian Lyne, e apetece dizer que há muita coisa que nos interpela intensamente, parecendo entranhar-se no olho da mente, da mesma maneira que há um aspecto que enfraquece a experiência, que se prende com o desfecho preguiçoso. De qualquer modo, a viagem mantém-se fascinante, agora que ingresso nela mais uma vez, passados muitos, muitos anos, isto independentemente do tal destino que não está à altura de todas as sugestões dadas pela narrativa e por todo esse imaginário dantesco que vai sendo urdido, cena após cena, até chegarmos aonde chegamos – prometo não revelar nada para não ampliar ou condicionar o grau de uma eventual decepção final.

O que é hoje surpreendente – assim permanece, para quem for rever – é a dimensão física de um filme cujo tema geral é o trauma. Um pesadelo interminável que se vai desdobrando… Quanto mais avançamos, mais nos apercebermos que os caminhos da mente do protagonista, Jacob Singer, magnificamente interpretado por Tim Robbins, se vão entrelaçando, convergindo numa experiência lutuosa que tem tanto de terna como de avassaladora: a morte de um filho. A par da morte do filho, há o trauma da guerra, o que nos faz refazer umas quantas vezes a velha frase “isto ou aquilo foi o meu Vietname”: há a guerra propriamente dita e depois há a guerra transplantada para o seio familiar, para o círculo mais íntimo e, ao mesmo tempo, vamos acedendo, como no Inferno de Dante, isto é, desenhando uma espécie de espiral vertiginosa, ao domínio do mais inconfessável e sagrado. Depois de Saigão, e de uma cena de selvajaria, com muito gore, em que os soldados se desfazem em pedaços, pulverizados pelas balas e sob o efeito de uma misteriosa reacção nervosa, vamos parar ao esgoto, ou melhor, ao metro pestífero de Nova Iorque. A seguir, o filme vai subindo, subindo, subindo… até chegar ao “coração” de tudo: de novo, a história de um pai que perdeu um filho.
Esta é a história de um trauma antes de outro, de um trauma dentro de outro, traumas que se devoram, guerras que se travam não propriamente contra um inimigo identificável, já que a batalha central aqui é de Robbins consigo mesmo (e quem é ele, afinal?), contra a sua sanidade mental na sequência de uma guerra longínqua, infectada pelo caos e por um venenoso sentimento de derrota. A isto acresce a impossibilidade de “enterrar” a memória do pequeno e doce filho desaparecido. A criança [interpretada por Macaulay Culkin, no ano, imagine-se, de Home Alone (Sozinho em Casa, 1990)] é um verdadeiro anjo nas memórias nebulosas e intempestivas de Robbins. Mas, afinal, que palco é esse, o das memórias e dos pesadelos? Lyne inventa um filme, um espaço instável, que nunca estamos certos se se encontra devidamente balizado pelo estado interior do protagonista. Algures entre Schock Corridor (O Corredor do Silêncio, 1963), Apocalypse Now (1979) e Altered States (Viagens Alucinantes, 1980), toda esta bad trip parece uma invenção da mente perturbada desse retornado da guerra a quem regressam todas as memórias e angústias escondidas, verdadeiramente “virais”, sendo que, ao mesmo tempo, tudo no filme de Lyne enforma de uma corporalidade que afronta – há um body horror pós-cronenberguiano a correr nas veias deste filme “alterado”, que puxa tudo para uma espécie de estado primitivo, em que demónios feitos de carne jogam às escondidas em cenários e situações mundanas, de uma Nova Iorque escorregadia ou com o seu quê de apocalíptica [entenda-se: como a Paris de La jetée (O Pontão, 1962) de Chris Marker também era apocalíptica, só que aqui não há bomba].
A paranóia de Jacob Singer é um décor que habitamos, como numa casa de horrores da feira popular, ao longo das perto de duas horas, sem sabermos ao certo até onde Adrian Lyne nos quer levar.
O Vietname é, assim, pura psicose, uma moca interminável, alucinação feita de corpos mutilados e deformações monstruosas. A paranóia de Jacob Singer é um décor que habitamos, como numa casa de horrores da feira popular, ao longo das perto de duas horas, sem sabermos ao certo até onde Adrian Lyne nos quer levar. Já confidenciei e repito: o desfecho não está à altura de todas as pistas avançadas. O filme parece ganhar medo da “tese” que ensaia, envolvendo o governo americano e experiências laboratoriais levadas a cabo sobre humanos, no sentido de potenciar a sua performance na frente de combate. Enfim, também é verdade que, por muito que esse final retire força a tudo por que passámos até chegarmos ali, de maneira particularmente febril e tenebrosa, o último cartão reabre a hipótese lançada com alguma ousadia pelo filme, envolvendo o Pentágono e uma substância nomeada no título em português do filme.
Lyne, realizador há muito desaparecido que promete voltar em 2022 com Deep Water, um thriller protagonizado por Ben Affleck e Ana de Armas, especializou-se no thriller erótico com hits como Fatal Attraction (Atracção Fatal, 1987) e Indecent Proposal (Proposta Indecente, 1993), pondo em prática em Jacob’s Ladder uma espécie de inversão perfeita da ideia de erotismo: combina-se, simultaneamente, o horror ao corpo com a “atracção fatal” a esse horror. Dir-se-ia que, no recuadíssimo ano de 1990, não se esperaria que o novo filme do realizador de sucessos pop como Flashdance (1983) e Nine 1/2 Weeks (Nove Semanas e Meia, 1986) assinasse um dos mais perturbantes títulos da década, mas foi isso que aconteceu. Em certo sentido, dir-se-ia que, com este exercício quase expressionista, Lyne construiu uma ponte que David Lynch haveria de atravessar, sete anos depois, para realizar Lost Highway (Lost Highway: Estrada Perdida, 1997), outro filme cujo erotismo é revirado, retorcido, desfigurado durante uma temerosa viagem ao esgoto sagrado da mente. Os caminhos trilhados por este Vietname tornado pura psicose, experiência estética situada algures entre a sujidade underground e a luz beatífica, são ainda hoje difíceis de perscrutar. O efeito destas imagens, no entanto, e dando desconto ao final algo “cobarde”, permanece bem real.