No segundo volume da revista Electra, dedicado à “estupidez” e publicado em meados de 2018, surgiu um ensaio de André Dias que gerou alguma discussão (ou pelos menos foi, à época, motivo para algumas saudáveis trocas de palavras com amigos). Intitulava-se “A sobrevivência da abjecção” e nele o investigador procurava identificar as origens de uma tendência do cinema contemporâneo, a que chamou de matriz da abjeção, um conjunto de filmes que trabalham a narrativa como uma máquina de tortura para as personagens e para o espetador. Nessa corrente, Dias identifica um mentor inadvertido (Pier Paolo Pasolini) e um cabecilha (Michael Haneke).
Claro que, embora seja fácil de perceber a que se refere quando usa essa terminologia da abjeção (Lars von Trier, Ulrich Seidl, Yorgos Lanthimos, Antonio Campos, Ruben Östlund, Gaspar Noé, Alejandro González Iñárritu, e a pandilha é bem mais larga), é igualmente difícil de definir, senão subjetivamente, o que é, afinal, um cinema da abjeção. Dias defende que estes são filmes que se constroem em torno de “pontos singulares negativos que compõem a zona de desproteção do espectador” que consubstanciam “repulsa, afirmações da inadmissibilidade, da recusa e denúncia dos procedimentos ilegítimos da reclusão.” Ou seja, é não só uma questão de ética (do olhar e, mais importante, do dar a ver) como de política (das representações). Estes realizadores entendem o seu trabalho como uma forma de violação do espetador. Agora, parecendo a pergunta absurda (e eventualmente problemática, se descontextualizada), com que propósito querem eles violar-nos? Ainda que descabida, na sua formulação, é importante colocar a tónica no reino das intenções do artista, já que é de moralidade(s) que se pintam este fresco. Pretende-se uma denúncia? Deseja-se uma terapia de choque?
Dir-se-á que a “motivação” do abjeto é uma falsa questão, ou melhor, que é uma manobra de distração. Se o retrato se reveste de uma “função”, nomeadamente política, então permite-se tudo e um par de botas. A favor de uma chamada de atenção [sobre o impacto da televisualidade – Funny Games (Brincadeiras Perigosas, 1997) – até à crise da emigração – Happy End (2017) – passando pela tragédia da criminalização da morte medicamente assistida – Amour (2012)], o cinema abre-se a uma visão do mundo pré-definida, onde as personagens surgem como pontos de um argumento, deliciando-se o realizador na sua própria perversão (reafirmando, assim, ao seus olhos e daqueles que participam na sua seita, a decadência moral da contemporaneidade). Então, se a motivação política nos leva a um trilho escorregadio, resta uma outra possível justificação: as ferramentas de distanciamento. A saber, as estratégia de fuga à realidade, onde se inclui a ironia, a metareferencialidade, a paródia e o jogo formal (a que Haneke recorria de forma mais sagaz no início da sua filmografia). Esses são mecanismos de aligeiramento do horror, que servem, afinal, de fina camada protetora para o espetador.
O cinema da abjeção é aquele que apresenta a realidade como uma entidade estagnada, onde não há espaço nem para a crítica, nem para a reformulação.
Se Dias parece fazer essa distinção entre o cinema da abjeção “pura” e aquele que se apresenta com uma cobertura de geleia açucarada, o mesmo não se passa com Thomas Elsaesser. O crítico norte-americano (tirando partido da sua distância transatlântica) publicou um livro de seu nome European Cinema and Continental Philosophy: Film as Thought Experiment – A Cinema of Abjection?, onde identifica esta tendência como um fenómeno propriamente Europeu (cruzando-o com o momento sócio-político e com a história recente do continente). Para Elsaesser o cinema da abjeção inclui além de Haneke e von Trier, também… Béla Tarr e Pedro Costa (ai minha nossa senhora cheia de graça, bendito seja o seu nome). Para ele o cinema da abjeção é aquele que apresenta a realidade como uma entidade estagnada, onde não há espaço nem para a crítica, nem para a reformulação (reduzindo-se o realizador a um promotor de “experiências de pensamento”).
De qualquer modo, todas estas fronteiras são ténues e móveis, e resultam (no fim de contas) da ontologia da própria imagem cinematográfica/fotográfica. A observação é “inimiga” da ação. Isto é, existe sempre uma dimensão sacrificial no ato de ver, um sacrifício do momento (no qual poderia estar guardado uma qualquer hipótese de redenção, sempre inefavelmente perdida). A isto alia-se a consciência de que a imagem cinematográfica não corre a 24 fotogramas por segundo, mas a 48, sendo que metade são as imagens, e a outra metade são intervalos negros (o efeito de movimento resulta, afinal, de uma falha percetiva no olho humano). Ou seja, toda a imagem cinematográfica é simultaneamente (e em igual medida) física e mental. Essa divisão, equitativa, distribui a autoria do filme entre realizador e espetador, ambos com idêntica capacidade criativa. A pergunta que cabe colocar é se o espetador do cinema da abjeção não é, no fim de contas, refém de um sistema de representação que não deixa margem para a potência criativa do olhar.
Se a resposta é, naturalmente, negativa (caso contrário não estaríamos aqui a refletir sobre o assunto), a sensação de aprisionamento é um veio comum a toda esta produção. E esse aprisionamento manifesta-se numa mecânica rígida e fria que entende personagens e situações como pistões de um motor perfeitamente oleado (incapazes de agir fora do vai-e-vem predefinido, sempre a favor da carburação maior, que é o filme e a visão do realizador). Dias vai ao ponto de afirmar que este é “o cinema de extrema-direita”, não nos conteúdos, mas na austeridade das formas.
E, apesar de tudo isto, há em mim uma pulsão que me impele para estes filmes. Talvez seja uma forma de masoquismo audiovisual, talvez seja a noção de que “uma imagem é apenas uma imagem” (será?) ou talvez seja já uma forma de distanciamento crítico que busca uma visão panorâmica e tão exaustiva quanto possível do cinema atual (este é o argumento racional que repito a mim mesmo, quando na verdade sei que se trata antes do mesmo fascínio do automobilista que é incapaz de se escusar a ver o aparatosos acidente na beira da estrada). De qualquer modo, após ver Nuevo Orden (Nova Ordem, 2020) fui sugado por um vórtice de horrores que me impeliu a percorrer todos os filmes anteriores do cineasta mexicano Michel Franco – e não me sinto mais esclarecido, nem melhor pessoa (bem pelo contrário).
Michel Franco é, talvez, o mais impassível dos cineastas da abjeção. Não se sente nada no seu olhar.
Parece-me que o que me atrai para cinema de Haneke, Lanthimos, Seidl, e agora Franco, é o rigor (modo estético do cinema fascista, já se sabe…). É o sangue frio e o calculismo que aplicam à mise en scène, como se fosse realmente possível abstraírem-se do horror que nos contam. Isso fascina-me, como um psicopata a um profissional de saúde mental. São, até certo ponto, (im)puros estetas que a qualquer situação aplicam a sua lente clara e sóbria de onde toda a empatia foi sugada. Esse efeito de alheamento, na vertigem do autismo, é o que me impressiona. E Dias também o admite, quando refere o «saber fazer» de Haneke.
O mesmo se passa com Michel Franco. O realizador mexicano é dono de uma câmara que recusa constantemente o virtuosismo, ficando-se por uma calma funcional muito clássica. Na recusa de qualquer música não-diegética e, nos filmes mais recentes, evitando soluções “espertas” de colocação da câmara – como o fazia nas suas primeiras longas, como Después de Lucía (2012) – , o cinema de Franco decorre sem grandes efeitos formais, numa quase bonomia que é tão mais perturbadora quando a ação dos filmes em nada partilha esse sentimento. Ele é, talvez, o mais impassível dos cineastas da abjeção. Ao contrário de Haneke, que inclui sempre um elemento formal que, de algum modo, procura perturbar a linearidade dos filmes; ou de Lanthimos, que se deslumbra pelas suas composições; ou Seidl, que se escusa no cinema observacional; ou de von Trier que se diverte, agora, na lama da auto-citação; ou de Noé que, apesar de tudo, guarda ainda uma fímbria de empatia pelas personagens; no cinema de Franco não se sente nada no seu olhar: o realizador filma com um olho de vidro.
Ao que se junta o argumento político, já aludido, que permite justificar a “função” do horror. Después de Lucía era uma “denúncia” do bullying escolar, A los ojos (2013) “denuncia” as disfuncionalidades do sistema nacional de saúde mexicano, Chronic (2015) segue as mesmas passadas de Amour, com um enfermeiro num lar de cuidados paliativos (advogando pelo direito à morte) e este Nuevo Orden surge como uma parábola sobre os perigos de uma contrarrevolução militar. Dos filmes que lhe vi, salva-se Las hijas de Abril (2017) por não haver nele uma agenda declarada, antes uma progressiva desagregação da instituição familiar numa sociedade do salve-se quem puder (nesse filme, a maldade e a vingança sobrevoam as personagens, mas pode-se afirmar que todas têm os seus – estranhos – motivos).
Nuevo Orden constrói-se, segundo a expressão anglo-saxónica, como uma cautionary tale. O filme começa com uma revolução popular que opõe os desapossados aos empossados, numa luta de classes muito simplista, onde criados viram senhores, e os senhores viram cadáveres. Só que, no dia seguinte à torrente revolucionária, há a reação. Uma reação musculada e militarizada, que impõem uma “nova ordem” militar eventualmente tão corrupta como a anterior, mas mais desbragada na suas formas de extorsão (que não passam pelo sistema capitalista, antes pelo rapto e tortura). A estratégia de manipulação de Franco passa por nos fazer empatizar com aqueles que perderam tudo (ou algo), porque aqueles que já nada tinham e com nada ficaram, a esses pouco importa lembrar ou considerar (a esses resta apenas um traveling que percorre os corpos de uma vala comum, sujos e anónimos). Nesse sentido, a protagonista, uma bonita e caridosa rapariga loura de alta classe e de boas famílias é o signo perfeito de bondade que Franco procura destruir (e com ela os criados amáveis e familiares que a auxiliam). E o hábil, sacana e manipulador irmão, esse permanece no seu trono gelado, impávido e sereno (como o próprio realizador).
A impassividade do cinema de Franco é, afinal, uma forma ideológica. O cinema de Franco é a favor da imobilidade e da estagnação.
Mas talvez o que mais choca neste filme é o seu (sub-)texto antirrevolucionário. Se a princípio há, naturalmente, um receio das personagens de classe alta que o seu lugar de poder seja posto em causa, no final fica a convicção de que a impassividade do cinema de Franco é, afinal, uma forma ideológica. O cinema de Franco é a favor da imobilidade e da estagnação, da continuidade e da permanência das coisas – e na definição de Elsaesser é, definitivamente, um cinema da abjeção, que não critica nem reformula. E refletindo agora, retrospetivamente, era daí que vinha o choque brutal que é assistir a Después de Lucía, a passividade da personagem do título é uma forma de posicionamento (qual Bartleby versão torture porn, em que os patrões ao ouvirem o “I would prefer not to” lhe enfiassem um cagalhão pela goela e quando escrivão continuasse, serenamente, a dizer que “preferia não fazer”, o violassem e publicassem as imagens na Internet).
Ainda assim há uma imagem que – na sua “experiência de pensamento” – me ficou. Franco subaproveita a cor verde. A princípio, no filme, o verde é a cor que os revolucionários lançam sobre tudo e todos. O verde é, portanto, cor medonha para as pessoas das classes altas. Uma mancha de tinta verde no sapato é sinal de conspurcação política. Aquele que foi salpicado de verde ficou contaminado pela força modificadora, e virou um deles aos olhos do status quo (ainda mais porque a tinta é difícil de limpar). Mas como dizia, Franco rapidamente esquece as potencialidades visuais dessa estigmatização da cor verde, e esse achado cedo se perde nas articulações contorcionistas do guião.
No entanto – há sempre uma adversativa – há um plano, já quase a chegar ao final, que me lacerou o “pensamento” e onde a cor verde regressa com surpreendente ressonância política. É um plano muito simples: a bandeira do México ao vento, vista através do para-brisas de um carro. É um plano relativamente longo e, naturalmente, tem uma significação política sobre o “estado do país”. Só que há uma surpresa. À medida que o carro se aproxima do mastro em que está hasteada a bandeira, esta vai subindo no enquadramento e a câmara acompanha essa subida com uma ligeira panorâmica ascendente. Eis senão quando o filtro solar do para-brisas, que na parte superior é ligeiramente azulado, aplica uma mutação na bandeira, alterando-lhe as cores, e o verde, branco e vermelho que definem o México, vertem-se em azul, branco e vermelho, a bandeira francesa (a bandeira da revolução e dos ideais democráticos). Como se, através desse inadvertido filtro (feito do mesmo material dos óculos de George Nada) se descobrisse a origem secreta dos males, a saber, as lacunas do sistema democrático. Aí, nessa revelação perturbadora, há, finalmente, uma crítica. Crítica à falência dos processos de representação, à corrupção, à influência política do mercado, etc. Independentemente do valor dessas críticas (e da sua ambiguidade ideológica), presente-se, por fim, uma qualquer visão que se importa com o mundo e, em particular, com o seu país. E, na sua subtileza, não se poderá dizer que seja exatamente populista (apesar de partilhar do seu ideário). Esse tempero de verde sempre atenua o fedor da abjeção.