
O mês de Agosto, por norma de férias, não trouxe grandes novidades cinéfilas, talvez com a excepção do novo filme de M. Night Shyamalan, Old (Presos no Tempo, 2021), que apesar do elogio de Duarte Mata, não reuniu grande consenso. Já a rentrée em Setembro trouxe 2 títulos muito aguardados: o novo filme de James Wan, Malignant (Maligno, 2021), enaltecido por Ricardo Vieira Lisboa, e o mais recente vencedor do Festival de Berlim, Babardeala cu bucluc sau porno balamuc (Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental, 2021), de Radu Jude, defendido por Duarte Mata. De realçar também pela positiva as notas positivas para Diários de Otsoga (2021) de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes (texto de Ricardo Gross), a estreia de Sous le ciel d’Alice (Céus do Líbano, 2020) de Chloé Mazlo, e o consenso negativo à volta de Annette (2021) de Leos Carax (um record do À Pala de Walsh?). Por fim, os comprimidos de The Human Voice (A Voz Humana, 2020) de Pedro Almodóvar, por Daniela Rôla, Falling (Falling – Um Homem Só, 2020) de Viggo Mortensen, por Ricardo Gross, Malignant (2021) de James Wan, por Carlos Natálio, Annette (2021) de Leos Carax, também por Carlos Natálio e Reminiscence (Reminiscência, 2021) de Lisa Joy, por João Araújo.

Já anteriormente a presença de Jean Cocteau se tinha feito sentir na filmografia de Pedro Almodóvar, pelo que este The Human Voice (A Voz Humana, 2020) quase surge como uma inevitabilidade. Tendo em conta a tendência actual para vender bilhetes de cinema a metro (a duração superior a três horas tornou-se algo de banal), não deixa de haver alguma ousadia em realizar um primeiro filme em inglês com duração de 30 minutos (em Portugal a projecção do filme é associada a uma entrevista, de forma a dissimular a curta-metragem). Almodóvar proporciona a Tilda Swinton um dos grandes papéis femininos, daqueles que apenas poderão ser entregues a uma actriz que tenha a força necessária para interpretar a guerreira que se prepara para a batalha e que é deixada num doloroso estado meditativo enquanto espera a chegada do amante / inimigo, à semelhança do que haviam feito actrizes como Ana Magnani ou Ingrid Bergman – ou não fosse Almodóvar um realizador de actrizes.
Tilda Swinton carrega para o filme, além do seu estatuto como actriz, a sua aura como ícone do mundo da moda. Todo o guarda-roupa (ainda que parco, tendo em conta a duração do filme) revela uma meticulosa selecção (as peças Dries Van Noten e Balenciaga, o robe de veludo desenhado por Angelo Malvuccio). O mesmo sucede com os objectos que compõem o cenário – os livros, os quadros, os DVDs, os cosméticos, as peças decorativas (muitos deles vindos do apartamento do próprio Almodóvar). Aqui jaz o clique que transforma o clássico de Cocteau num filme de pura contemporaneidade (além dos evidentes ecos da situação de confinamento em que se encontra esta mulher) – os objectos como elementos que formam e reforçam o encarceramento, uma claustrofobia feita de uma miríade de marcas, de produtos de consumo, de objectos cuidadosamente seleccionados [ressonâncias de Interiors (Intimidade, 1978), de Woody Allen]. A ponto que a presença “humana” que suaviza este pequeno mundo seja a do cão que aguarda o regresso do dono. E, afinal, tudo não passa de cenário – cenário que é preciso abandonar para enfrentar a luz do dia.
Daniela Rôla, 10 de Setembro

Willis é um idoso permanentemente mal-humorado. Um sem-maneiras. Quem lhe olha para as roupas, diria mesmo um sem-abrigo. Vemo-lo comer à mesa com os outros como criatura que não tivesse tido contacto com a civilização. Arrota e peida-se sem dar por isso, ou estando-se nas tintas para que os outros dêem. Rezingão, está sempre do contra, e parece fazer gala em ser desagradável e afrontar a tempo inteiro os que lhe são próximos. A sua desorientação e lapsos de memória antecipam um quadro de demência onde o filme de Viggo Mortensen, se põe os olhos, não coloca as mãos. Willis vai com o filho a uma consulta de urologia para ver a próstata, mas na sua família de gente cosmopolita e progressista ninguém dá sinais de entender que o velho está mal da cuca.
Mas se a miopia clínica constituísse o grau maior da falta de verosimilhança do filme de Mortensen, estávamos nós bem. É um atentado à paciência do espectador, que não tem de corresponder à figura beatífica do filho homossexual de Willis (o filho interpretado pelo aqui actor e realizador, Viggo Mortensen). Falling é física e psicologicamente desagradável, de tão cabotino o retrato do velho conservador da América rural. Viggo pode fazer postais delicodoces do campo, com a placidez da natureza e a espontaneidade sem mal dos animais, mas o que constitui o núcleo do seu projecto é um comício descarado em prol da América arco-íris simbolizada na eleição de Obama (o que quer que isso seja na realidade), contra a idade das trevas representada por esta figuração totalmente destituída de plausibilidade do que seria o eleitor republicano mais reaccionário.
Sou reaccionário sim, posso afirmá-lo, e como diria o brilhante cronista e dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, a minha reacção é contra tudo o que não presta.
Ricardo Gross, 7 de Setembro

Diz-se que um bom realizador vai fazendo sempre o mesmo filme. Mas será que um bom crítico vai fazendo sempre a mesma crítica? Vamos por partes. Quanto ao primeiro ponto, esse “mesmo filme” não significa que ele mesmo não se vá tornando mais subtil e refinado. Penso ser o caso de Malignant (Maligno, 2021). Lembro-me como se fosse hoje de James Wan como um cineasta do confinamento (os Saws) nos espaços e eis que o confinamento agora adentra. Lembro-me também de James Wan como um cineasta dos movimentos circulares e eis que a circularidade adentra. Não é só a câmara que circula até si mesma, é o círculo como tema mental. Ou talvez mesmo o fim da circularidade: o morphing põe fim à distância que é preciso percorrer de si a si mesmo, de um espaço a outro. E ainda um amontado de pensamentos de um filme cheio: a internet das coisas, Shakespeare e o seu monstro do amor (aquela célebre expressão em Otelo), Brian De Palma e David Cronenberg com suas duplicidades e body horror antes da expressão ganhar um outro contexto; mas também Argento e o giallo, e ainda Robert Louis Stevenson, o campo contra campo no próprio campo, Alice e a toca do coelho, as profundezas e o sótão como lugares do imaginário mental. Enfim, James Wan é certamente o melhor cineasta na área do terror da actualidade e permanece doutorado em movimentos suaves que pesam toneladas.
Mas depois há a segunda questão. Repito: será que um bom crítico vai fazendo sempre a mesma crítica? A separação das águas é o golden button do crítico mas depois há que tecer os seus argumentos. James Wan é um de incontáveis exemplos, face ao qual, antes dos seus filmes, estão as posições assumidas na crítica. Tudo o que faça é mau (ou menos mau) ou tudo o que faça é bom (ou menos bom). Essa trincheira não contempla, em meu entender, os filmes em si, pois há um gosto subterrâneo que se verte em argumentação que é cada vez mais uma construção a posteriori do julgamento. Isto é, a meio do duelo, não se viram as costas ao adversário, não se emenda a mão ou perde a face. E é pena, porque o bom crítico sabe que todos os filmes e todos os cineastas têm dentro de si o pior e o melhor do cinema. Mas separar o trigo é um trabalho árduo, do dia a dia, corre o risco de ser mal entendido e não se compadece com a “posição” – seja ela qual seja – assumida pelo crítico. Isto também porque o estilo não depende da convicção e, muito menos, do gosto. Sigamos batendo no ceguinho.
Carlos Natálio, 15 de Setembro

À saída da sessão de Annette (2021) de Leos Carax, as primeiras palavras que ouvi pertenciam a uma senhora espanhola na casa dos sessenta. “Que horror de película. Que pesadilla!”. Ironias da vida, eu estava satisfeito. Admito que conheço bastante mal o cinema de Carax. Esta foi apenas o terceiro filme que vi. Talvez a experiência esquemática e performativa de Holy Motors (2012) e o maneirismo romântico para cinéfilo ver de Les amants du Pont-Neuf (Os Amantes de Pont-Neuf, 1994) me tivesse tirado a vontade de ver mais e até deixado algo desconfiado. Esse formalismo parecia-me um apenso que ora era atalho para uma camada extra de profundidade a uma narrativa comum, ora era um desejo de mostrar a excentricidade própria do autor. Mas… será que esta última, quando assumida verdadeiramente, sem o pejo da seriedade, não dará ao cinema de Carax uma honestidade qualquer? Sinto que Annette é o filme que assume a latência do que estivera nos dois filmes que refiro. Como se cumprisse a folia para o qual a mão de Carax desejara sempre resvalar. O resultado? Virar do avesso a verosimilhança. Estamos numa espécie de inversão do camp: o filme é aquela boneca postiça. Sempre a expor o inverosímil para tentar algo, não diria de profundo, mas de tragicamente verdadeiro. Enquanto que o camp dobra a seriedade em veleidade superficial, Annette de Carax faz o inverso. E é nisso que reside a sua trágica ironia: é quando procura ser falso, verdadeiramente falso, que atinge algo de genuíno.

A proposta parecia interessante: num futuro não muito distante, uma tecnologia permite resgatar memórias para voltar a revivê-las de uma forma tão vivida que parecerá que voltamos mesmo a esse momento [algo reminiscente do fenomenal Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995) de Kathryn Bigelow]; essa mesma tecnologia poderá ser aplicada para extrair informação de alguém de forma involuntária, quer por exemplo pela Polícia quer por criminosos [reminiscente de Minority Report (Relatório Minoritário, 2002) de Steven Spielberg]; tudo isto se desenrola num ambiente neo-noir de uma cidade notívaga e num cenário apocalíptico, com pretensões ao aspecto visual de Blade Runner [mais próximo da nova versão, Blade Runner 2049 (2017), do que da versão original]. Infelizmente, todas estas reminiscências de outros filmes acabam por dar lugar a nada, excepto um filme vazio de ideias originais, com uma coleção de lugares comuns que impressiona apenas pela sua falta de imaginação e coesão. Acrescido a tudo isto, o filme é pontuado por um voice over incrivelmente pretensioso e explicativo do que vemos e repleto de one liners confrangedores, que rapidamente procuramos esquecer, que procuram indicar um protagonista romântico e de pensamento filosófico profundo, mas que não conseguem esconder uma terrível miopia em relação ao que o rodeia – se o espectador consegue facilmente antever o próximo passo da história, este só avança a narrativa não por uma qualquer perspicácia, mas por estar no sítio certo no momento errado. Há ainda um outro factor lamentável no filme: todo este desenrola-se numa Miami futurística arruinada pelas alterações climáticas e pela subida do nível do mar, mas este cenário surge apenas como elemento decorativo que procura dar um ar de reflexão profunda onde não existe nada de complexo. Numa palavra: penoso.
João Araújo, 1 de Outubro