Para discutir o novo Woody Allen, vale a pena recordar a curiosidade histórica (frequentemente apontada) de que 1895 foi, simultaneamente, o ano da primeira exibição pública de filmes dos irmãos Lumière e da publicação do Estudos sobre a histeria de Freud, um dos livros fundadores do método psicanalítico. Ou, como dizia Andrew Sarris: “Os filmes são tão velhos como a psicanálise. Portanto, se eu te pusesse num sofá e dissesse, ‘Diz-me os teus filmes favoritos,’ seria uma maneira de te psicanalisar”. Ora, Rifkin’s Festival (2020) é o mais cinéfilo dos filmes de Woody e, para além disso (ou por causa disso), começa e acaba num gabinete de psicanálise, numa sessão privada do protagonista homónimo, o professor de cinema snob, pedante e egocêntrico Mort Rifkin. Ou seja, o filme será todo ele uma consulta psicanalítica onde o cinema tomará um papel central para a elaboração do diagnóstico e tratamento do paciente.
É no traçar constante de paralelismos entre o cinema e a sua história pessoal que Rifkin aprende a conhecer-se a si próprio, a aceitar a irrealização das suas fantasias e a superar os seus receios, medos e neuroses (ou, pelo menos, a viver com eles).
Falar do cinema como ferramenta de psicanálise em Rifkin’s Festival é falar, claro, dos pastiches aos clássicos canónicos [são deles exemplo 8½ (Fellini 8½, 1963), Persona (A Máscara, 1966) ou Jules et Jim (Jules e Jim, 1962)] que o filme cita, desconstrói e adapta ao existencialismo neurótico, detalhes biográficos e relacionamentos interpessoais do protagonista, sendo o verdadeiro “festival de Rifkin” não o de San Sebástian (o principal cenário da acção), mas sim aquele projetado na sua cabeça, onde a admirável curadoria, mais do que reveladora das preferências culturais do seu herói, é um espelho exagerado dos seus comportamentos, sentimentos, pensamentos, ansiedades, em suma, da sua psique. É, então, um diálogo permanente que se estabelece entre filmes específicos e a mente e personalidade de Rifkin, servindo, para além de homenagem ao tipo de cinema que Allen mais ama, de autêntico instrumento auto-reflexivo do protagonista.
Assim, mais do que os momentos humorísticos que o gesto proporciona, a apropriação paródica dos clássicos acarreta uma verdadeira funcionalidade narrativa, na medida em que fornecem dados, indícios, coordenadas do processo de introspecção e auto-desenvolvimento de Rifkin para o analista e para o espectador. Como tal, o trenó de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) vinca as suas neuroses quanto à perspectiva inquietante de viver uma existência vazia (o célebre trenó “Rosebud” surge agora baptizado com o nome de uma sobrevivente do Holocausto que se suicidou, “Rose Budnick”); a sala-prisão de El ángel exterminador (O Anjo Exterminador, 1962) ilustra a simultânea vontade e dificuldade sentida de concretizar o desejo amoroso com uma médica por quem se apaixonou; ou o encontro com a Morte de Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957) expõe a resolução plena da sua inquietação existencial. Resumindo, é no traçar constante de paralelismos entre o cinema e a sua história pessoal que Rifkin aprende a conhecer-se a si próprio, a aceitar a irrealização das suas fantasias e a superar os seus receios, medos e neuroses (ou, pelo menos, a viver com eles).
Deixemos a psicanálise de parte, para referir que não há surpresas no cardápio de filmes referenciados. Afinal, falar no cinema caracterizado por uma mise en scène de planos longos e extensas cenas de diálogos, que se debruça atentamente sobre os dramas românticos e existenciais das personagens, é falar do arthouse europeu e também falar do de Woody Allen, o mais europeu dos cineastas americanos. O que abre a porta para referir que, tal como tem vindo acontecer desde Café Society (2016), o que mais encanta no novo Allen está na realização e na forma como esta se alia à fotografia de Vittorio Storaro. Cenas inteiras são dadas em planos demorados, fluidos e graciosos, cujo planeamento coreográfico, contrariamente a algum cinema contemporâneo, não evidencia pretensões exibicionistas quanto ao seu virtuosismo técnico. É disso exemplo aquela cena, sem um único corte, no quarto de hotel com a esposa de Rifkin a arranjar-se, onde o blocking das personagens serve de motivação para Allen e Storaro desenvolverem a acção pela organização e reorganização de novos enquadramentos dentro do mesmo take, fazendo uso da profundidade de campo, do espaço dentro e fora de campo, e do ajuste das linhas de enquadramento que orientam o olhar da audiência.
E depois, há esse aspecto notável da parceria Allen-Storaro que é o tratamento discretamente expressionista da cor. Tal como acontecia em A Rainy Day in New York (Um Dia de Chuva em Nova Iorque, 2019), o protagonista encontra-se dividido entre duas mulheres, aquela com quem está comprometido (e com quem tem poucas afinidades em termos de gosto) e outra que conhece num cenário estrangeiro (e com quem compartilha as mesmas preferências culturais), passando a haver uma cor fixa predominante para as cenas com cada uma delas desde o instante em que conhece a segunda. Como tal, a partir do momento em que toma contacto com a médica espanhola (e também devido aos momentos do dia em que elas ocorrem), as cenas com a esposa passam a estar iluminadas por um azul nocturno, ao passo que nas outras com a médica prepondera um cor-de-laranja crepuscular. No primeiro caso, a cor reflecte o comodismo da relação matrimonial; no segundo, espelha o júbilo da possibilidade de um novo romance. Este contraste azul/laranja, noite/dia chega até a estar presente num mesmo plano, nomeadamente, aquele onde Rifkin, após ter estado com a médica, sobe as escadas para o quarto de hotel compartilhado com a esposa. Neste enquadramento, a metade inferior (com o fim das escadas) está a cor-de-laranja, enquanto a superior está a azul, mostrando a transição do protagonista de uma mulher para outra, da vivacidade e proximidade que lhe desperta o pseudo-affair ao lado mais apagado e distanciado do casamento.
A médica é, então, para Rifkin, uma Vénus entre os mortais, uma deusa descida do Olimpo. E Allen filma-a como tal, em imagens edénicas que exteriorizam o fascínio arrebatador que um rosto belo feminino – e que belo rosto é o de Elena Anaya – exerce num homem apaixonado. Tê-las-emos até ao clímax, outro momento de inteligência cinematográfica, com a conversa por telefone entre a médica e Rifkin. Neste momento, nos enquadramentos de Rifkin, há um coreto em segundo plano, e a forma imponente como está filmado parece transmitir a confiança do protagonista (por fim, separado da esposa) em convidar a médica para um encontro onde poderá, finalmente, declarar os seus sentimentos sem refreios. No entanto, à medida que esta dá a entender a sua rejeição, a câmara faz um lento zoom sobre a cara do protagonista, perdendo o coreto a sua força imagética (e, com ele, a confiança de Rifkin), obtendo-se um plano mais íntimo, melancólico e vulnerável da personagem. Não é só um zoom, é um movimento directo para a alma e coração de um homem, expondo a sua compreensão sobre a impossibilidade da concretização de uma história de amor idealizada e a tristeza reservada que há na conversa agridoce que antecede um último adeus. É um momento de cineasta, uma verdade de cineasta no modo como sabe filmar a dor velada de uma despedida. Pois gostem ou não das últimas obras de Woody Allen, ele continua a ser um cineasta genuíno, o que é algo que 9 em cada 10 pessoas a realizarem filmes hoje não são.