Parafraseando um belíssimo título de uma crónica do pensador e crítico literário António Guerreiro, «o contágio é o nosso destino». Mas o que significa tal destino e se a tal estamos predestinados, seremos nós capazes de escapar? Sem querer fazer parte do coro alarmista que há muito assola os nossos meios de informação, levando-nos a crer que estamos perante a «catástrofe» decisiva, no qual a vida de toda a população mundial se vai jogar tal como num lance de dados, teremos que aceitar o quanto antes que o nosso destino é o contágio. Se continuarmos a negar esta dimensão da vida contemporânea corremos o sério risco de vivermos cativos da nossa própria condição. E este é o aspecto central de Safe (Seguro, 1995) de Todd Haynes, filme de uma actualidade inquietante e ao qual regresso para pensar o nosso tempo e o cinema.
É de relembrar ainda que apesar da pandemia do HIV ter matado milhares de pessoas, em termos cinematográficos, ainda hoje são poucos os filmes que reflectem ou abordam esse período de imenso terror.
Antes de mais, gostaria de retroceder alguns anos, até ao início deste novo milénio e pensar sobre essa abundante produção cinematográfica hollywoodesca que se desdobrava em sucessivos filmes sobre o apocalipse que iria assolar a Terra e pôr em risco a vida de todos aqueles que nela vivem. Se em 1995 nos defrontávamos com a pandemia do HIV, uma década depois, o cinema, esse fino estetoscópio das nossas inquietações, veio dar forma a um imenso inventário de perigos, na sua maioria fantásticos, basta relembrar o célebre remake de War of the Worlds (Guerra dos Mundos, 2005) de Steven Spielberg, no qual o agente da nossa destruição era sempre uma entidade externa, colossal, quimérica e onde só a nossa imensa bravura colectiva poderia transpor tamanha ameaça. É curioso pensar que, apesar dos sucessivos apocalipses que tanto tomavam a forma de meteoros como de aliens, o nosso optimismo epocal colocava o homem capaz de enfrentar qualquer adversidade. Este optimismo advém obviamente de uma certa abundância económica vivida nos EUA e em grande parte dos países europeus, ainda sem a sombra nefastas que iria assolar, poucos anos mais tarde, das políticas neoliberais; assim como o de uma relativa paz sentida, depois de sucessivas décadas de violentos conflitos (cito dois incontornáveis casos, a guerra do Vietname e a guerra da Argélia) e somando ainda o facto do triunfo das sociedades capitalistas sobre o comunismo que punha um fim aos fantasmas da Guerra Fria e derrubava muros até então intransponíveis.
É de relembrar ainda que apesar da pandemia do HIV ter matado milhares de pessoas, em termos cinematográficos, ainda hoje são poucos os filmes que reflectem ou abordam esse período de imenso terror. Considerada durante muitos anos como uma doença que só afectava os 4H (homossexuais, hemofílicos, heroinómanos e hookers = prostitutas) e desvalorizada em absoluto pelo então presidente dos EUA, Ronald Reagan, o HIV no grande ecrã manifestou-se unicamente (e activamente) através de um cinema underground e de resistência. Cito dois dos exemplos que mais estimo e que mais me tocam, o corajoso e devastador, Silverlake Life: The View From Here (1993) de Tom Joslin e Peter Friedman, e o extraordinário e igualmente devastador, Encore (Uma Vez Mais, 1988) de Paul Vecchiali. É claro que não podemos ignorar a existência e o impacto de Philadelphia (Filadélfia, 1993) de Jonathan Demme, no grande público, porém a existência de um filme num tão vasto oceano, só o torna assinalável e citável pela sua raridade.
Mas regressemos a Safe. De facto, não podemos arrancar o filme de Haynes dos anos 90 e simplesmente transpô-lo para o nosso presente. Seria não só um gesto grosseiro, como incorreria numa deturpação histórica imperdoável. Em primeiro lugar, Safe tem como pano de fundo uma outra pandemia, a pandemia do HIV. Ao contrário do que podemos pensar, não são somente as questões ambientais que atravessam todo o filme, o HIV também está absolutamente presente, quer no início do filme através da conversa a meias palavras entre Moore e a melhor amiga sobre a morte do irmão, assim como no final do filme, onde o personagem de Peter Friedman, dono da “clínica” em Wrenwood e seropositivo, propaga a sua filosofia em muito devedora aos livros de Louise Hay que foram autênticos bestsellers junto da comunidade homossexual de então, prescrevendo como combate contra o avanço do vírus uma atitude mentalmente positiva. Em segundo lugar, o filme de Haynes, apesar de nunca desvalorizar ou ridiculizar as ameaças da poluição e do efeito destas no nosso organismo (basta atentarmos aos testemunhos dos diversos pacientes da clínica de Wrenwood, muitos deles contaminados por viverem nas imediações de fábricas), cria um objecto de natureza dúbia, optando por deixar em suspenso se a doença de Moore é resultado de uma hipersensibilidade desenvolvida ao meio ambiente ou de origem psíquica. Neste aspecto o filme de Haynes é inteligentíssimo, indo beber a um género muito particular dos anos 70, no qual destacaria o brilhante The Parallax View (A Última Testemunha, 1974) de Alan J. Pakula, onde a intriga política funde-se às teorias da conspiração, dando origem a um thriller sobre o qual nunca podemos aferir a verosimilhança ou a inverosimilhança da situação.
Tal também só é possível porque Haynes, além da sua inteligência, realiza Safe em 1995, época onde quaisquer afirmações sobre o nosso efeito nefasto no planeta estava ainda circunscrito aos círculos científicos e de uma certa esquerda, preocupada com os efeitos da técnica ao serviço do capitalismo. Hoje seria muitíssimo mais difícil realizar Safe sem que o pendor (quer do cineasta, quer o nosso) tendesse para o lado da admissão de que a poluição era o principal factor responsável pela doença de Moore. O próprio Haynes toma conhecimento desta questão, não porque tal como hoje a encontramos amplamente difundida no nosso espaço público e é parte integrante da nossa consciência colectiva, mas porque ao cruzar-se com um programa televisivo sobre as doenças do séc. XX, descobre uma nova patologia relacionada com a poluição do meio ambiente. Há ainda um terceiro aspecto que apesar das suas diferenças, reverbera fortemente sobre o nosso presente. Se por vezes tendemos a julgar Moore como vítima de uma neurose, é porque tudo aquilo que a envolve apresenta contornos sombrios e de seita. Contra qualquer vaidade contemporânea, mesmo que esta seja uma vaidade miserabilista, as notícias falsas e o seguidismo de contornos ditos pós-fascistas, estão já presentes no filme de Haynes. A “clínica” que inicialmente nos parece um espaço inócuo e de matriz hippie, a que Moore se dirige após um violento ataque que a deixa hospitalizada, vai-se revelando como um espaço de fanáticos (em muito semelhantes aos grupos extremistas religiosos – uma das regras basilares para o funcionamento da clínica é abstinência sexual), inebriados pelas palavras de um líder hipócrita (basta atentarmos ao diferendo que há entre aquilo que ele profere sobre os bens materiais e a sumptuosa mansão construída) e por uma vida incapaz de manter qualquer dimensão privada (é evidente o carácter panóptico da clínica – a casa de Peter, o dono da clínica, encontra-se no topo da propriedade).
O filme termina com Moore frente a um espelho, isolada por fim do mundo no seu iglô antissético, após um evidente corte final com o marido e o seu enteado, os últimos elos de ligação a uma vida burguesa abastada. Moore não só se contempla ao espelho, como repete uma fórmula básica da autoajuda, fórmula essa paradoxal porque é no momento em que esta interioriza que se ama, que deixa de poder reconhecer a sua própria imagem. O que resta de Moore no final do filme é somente uma entidade espectral, tal como o espectro de natureza “unheimlichiana” que por duas vezes surge ao fundo da propriedade da clínica e que caminha tropegamente, tal como um zombie retirado de um filme de Romero, envolvido por uma indumentária que nos faz questionar sobre a sua própria natureza humana. E esta é a maior reflexão que podemos retirar deste filme sobre a nossa presente condição pandémica: se entendermos o propósito da vida unicamente como a manutenção e protecção contra a ameaça externa (seja ela de natureza química ou biológica) e para isso estejamos dispostos a despir dessa vida tudo aquilo que a torna vida, o que restará depois é somente o espectro de uma existência. O contágio é por isso o nosso inevitável destino e sobre isso, o texto de António Guerreiro, assim como os diversos textos de Agamben sobre a pandemia foram de uma impressionante lucidez.