Começo com um desafio ao leitor: imagine um casal jovem recém-casado. Agora, imagine que este casal está a tentar engravidar, mas as múltiplas tentativas revelam-se, temporariamente, fracassadas. Se o leitor fosse cineasta, como é que passaria esta informação ao espectador? [Tempo para o leitor imaginar-se na posição retórica descrita ou apenas pensar “que preâmbulo desnecessário, vou mas é prosseguir rapidamente a leitura” ou então simplesmente abandoná-la para retomar o trabalho / fumar um cigarro electrónico / visualizar o novo episódio do Pôr do Sol.]
Vamos enumerar algumas opções expectáveis:
- A colocação de um diálogo entre os cônjuges a referir as dificuldades na concepção;
- Uma cena num consultório de obstetrícia com o casal entristecido a ouvir um discurso consolador do médico;
- Uma montage que entrecorta momentos de intimidade conjugal com outros numa casa-de-banho onde a esposa retira sucessivos testes de gravidez com resultados negativos.
Se o leitor escolheu uma das 3 opções acima, não fique desapontado com a sua eventual previsibilidade. Sabemos todos que estas são o resultado a que fomos habituados de décadas e décadas de ficção cinematográfica e televisiva. Se, no entanto, não escolheu qualquer uma delas, deixo-lhe, desde já, as minhas felicitações por conseguir evadir-se do cliché e convido-o a escrevê-la nos comentários. Agora, com a garantia de que não é nenhuma destas soluções, deixe-me dizer-lhe o que faz a realizadora Chloé Mazlo em Sous le ciel d’Alice (Céus do Líbano, 2020).
Mazlo vem do cinema de animação e das artes plásticas, pelo que o seu estilo é imaginativo, inventivo e colorido, onde está também um sentido de humor a oscilar entre o leve e o burlesco, qualquer coisa como um cruzamento não intencional entre Wes Anderson e os estúdios Aardman. Quis com este filme narrar a história dos seus avós e da respectiva diáspora da família rumo a França motivada pela guerra civil do Líbano (1975-1990), resultando um projecto pessoal e fiel à sua sensibilidade artística sem deixar de ser universalmente acessível. Daí que esta história de uma família cujo éden caseiro se transformará em paraíso perdido não receie recorrer à exuberância visual no uso de cores pastéis (sobretudo o azul e o amarelo, da cenografia aos figurinos), nos cenários de papelão, na animação stop-motion e em outros elementos extravagantes que contribuem para a destruição propositada de um registo naturalista que o tipo de material parecia falaciosamente prometer. Ou seja, a seriedade do tema não impede a sua execução por um cinema artesanal, plástico, manual, moldável e com gosto genuíno pelas várias matérias-primas com que se pode fazer um filme.
Mazlo é uma cineasta que olha para o cinema como uma casa de bonecas e não hesita em convidar o espectador a tomar parte da brincadeira.
Toda esta beleza não é decorativa, mas uma ligação directa para o imaginário de conto de fadas nostálgico com o qual a cineasta constrói a sua doce e delicada homenagem à família. Alicerçada numa estética fantasiosa e onírica, Mazlo não tem receio do artificialismo para a transformação de metáforas e metonímias em imagens que transmitam um pensamento, uma emoção ou uma ideia. (Um exemplo: a cena em que a protagonista, ao decidir abandonar a Suíça-natal para viver no Líbano, corta uma raiz de árvore que tem, literalmente, presa na planta do pé.) Ao invés de um excessivo número de diálogos ou de outro género de exposição mais banal, Mazlo quer verdadeiramente contar uma história explorando as potencialidades materiais do meio.
Narrativamente, Sous le Ciel d’Alice paira numa espécie de dilema constante que recai sobre todas as personagens desde o primeiro enquadramento: deixar a família para escolher um lugar ou deixar um lugar para escolher a família. Trata-se de uma saga familiar a entrecruzar-se sistematicamente com a de um país à beira da erupção, e a maneira como a desintegração do segundo acaba por erodir a união da primeira, algo particularmente bem reflectido no momento onde a linha verde simbólica que divide Beirute – em parte oriental e ocidental – é encenada de forma explícita no interior do espaço doméstico – separando marido e mulher. É a instabilidade de uma situação política a traduzir-se no interior do lar, a das contendas belígeras “lá fora” a transladarem-se na estabilidade doméstica “cá dentro”. Daí a grande relevância da personagem do marido que, simultaneamente, acaba por representar o atraso no progresso científico do país pelo facto dos seus estudos serem atardados pela guerra, mas também na forma como o egoísmo da sua ambição megalómana (a de criar o foguetão que levará o primeiro libanês ao Espaço) o leva a negligenciar as suas responsabilidades enquanto chefe de família, à medida que cada um dos membros desta opta por abandonar o país enquanto este escolhe nele irresponsavelmente permanecer.
E se é um filme sobre a família, não é de estranhar a prevalência dos planos gerais e de conjunto, integrando as personagens devidamente no espaço e dando a sensação de comunhão familiar que, gradualmente, vai sendo perturbada. Mazlo aprecia essa arte singular que é a da composição de um plano, a criação de um enquadramento com olhar detalhado à colocação das várias figuras humanas, dos diversos objectos, do uso de linhas e formas geométricas que confiram uma harmonia visual entre os vários elementos. É por este rigor estético alimentado pela sua imaginação, subtileza e graciosidade que move, mexe e brinca com as bonecas vivas que são as suas personagens. Pois, ao fim e ao cabo, Mazlo é também isto: uma cineasta que olha para o cinema como uma casa de bonecas e não hesita em convidar o espectador a tomar parte da brincadeira.
PS: E com isto esqueci-me de referir o que é que a realizadora faz para dar a ideia de um casal com dificuldades em engravidar. Mas para quê estragar a surpresa do leitor com spoilers?