Interpreto o tema deste segundo dossier de colaboração com os amigos do Estado da Arte – “Diálogos” – de uma forma simultaneamente literal e simbólica. Por um lado, propor-nos mergulhar em filmes cuja arte do diálogo seja evidente e em que a palavra seja mais uma imagem, tal com a imagem poderia verter-se em palavra (num diá-logo, precisamente); e, por outro lado, fazer dos filmes matéria de conversação, de diálogo entre os autores que, de cada um dos lados do Atlântico, conversam à distâncias das palavras e dos filmes que se propõem escolher. Curiosamente, o filme que decidi inserir nesta conversa, que o mês passado se iniciou e que vai até julho de 2022, procura subverter um pouco ambas as ideias, sem as abandonar. Poderá o cinema encenar diálogos sem palavras, ou em que, inversamente, as palavras de diálogos se mantenham inofensivas, sem penetrar o seu interlocutor – isto é, sem dia-logar?
Le feu follet (Fogo Fátuo, 1963), quinta longa de ficção de Louis Malle, nasce de um diálogo subterrâneo ligado por uma ideia de angústia existencial, um desejo obcecante e romantizado de terminar com uma vida chata e desligada. Em 1931, o escritor francês Pierre Drieu La Rochelle escreve o livro que dá título ao filme. O livro cria a personagem de Alain Leroy (no filme o actor Maurice Ronet), homem de trinta anos que vive numa instituição psiquiátrica, depois dos últimos anos de dependência alcoólica e que, embora aparentemente recuperado, não consegue subir à tona – “cai pelas falhas da história”, como escreveu um crítico sobre o filme – e põe de facto termo à sua vida. Este romance, pode dizer-se, é uma forma de continuação post mortem de um diálogo e admiração que La Rochelle tinha com o poeta surrealista Jacques Rigaut. Este falava continuamente sobre suicídio (uma das suas obras intitula-se Agence Générale du Suicide), os amigos procuravam ignorar um pouco essa vontade declarada, até que se consumou em 1929, então com apenas 30 anos. Uma régua para medir o sítio de uma bola que alojaria no centro do seu coração.
Se se especula que o livro de Rochelle seria um misto de admiração e culpa por não ter podido valer ao amigo (por não o ter levado a sério), já Malle dialoga com esta adaptação por motivos um pouco mais egocêntricos. Segundo ele, o desespero de Leroy, chegado aos trinta anos, vindo de uma juventude de excessos e de participação na guerra (a primeira Mundial, que no filme será a da Argélia, uma vez que a narrativa é transportada para os anos 60 de Paris) encaixava numa juventude “precoce” e de sucesso do próprio Malle. Ambos tinham sobre si o peso da entrada da idade adulta, uma necessidade de fixação depois dos anos de agitação da juventude.
E, pegando nessa ideia de fixação, olhemos para os espaços de Le feu follet (Fogo Fátuo, 1963). Começamos numa cama, onde Leroy/Ronet passou uma noite com uma mulher, amiga da sua esposa que vive em Nova Iorque. E, terminado o encontro, abrem-se duas perspetivas para o nosso herói maldito: o regresso à América, que significaria um assumir da cura da sua desintoxicação/depressão (e um retorno ao amor, pela mulher que lá deixou e que até final se manterá em silêncio); ou, então, voltar à sua instituição psiquiátrica, em Paris. A Europa, ao contrário da América, é o lugar dos doentes, da comiseração num certo decadentismo existencial, cuja estética rondeia e fareja como animal sanguinário em torno da sua presa. E se Paris representa a manutenção de uma doença, de um trauma angustiante de que Leroy/Ronet não consegue desligar-se, ao mesmo tempo, Malle opõe dois espaços parisienses. O seu quarto, onde no vidro está marcada a data do seu suicídio e as ruas de Paris, o “lá fora”, para onde o médico o aconselha a ir, pois que está “curado”.
De certa forma, esta oposição o cá dentro e o lá fora, parece-me importante para pensar a dimensão dialógica de Le feu follet (Fogo Fátuo, 1963). Lá fora, Leroy/Ronet, espécie de James Dean insuflado de um pessimismo intelectual francês, vai passear pelas ruas, no dia que antecede a sua morte e encontrar-se com uma série de amigos/conhecidos do passado. Cenas/diálogo – deambulação pelos espaços e pelas palavras – em que vamos vendo alternativas de felicidade adulta (ou de acomodação, da perspetiva de Leroy/Ronet): o amigo que se tornou homem de família e fascinado por egiptologia, Jeanne Moreau, a amiga que procura não questionar-se demasiado e que se rodeia da “felicidade química”, amigos de luta política e ativista, jovens que serão os seus “sucessores”. Em todos estes diálogos de tentativa de apaziguamento, sentimos que o lá e o cá próprio do diá-logos, nunca se verte em dialética transformadora (dialégesthai) pois que sempre triunfam as mesmas ideias obcecantes. Leroy/Ronet não consegue querer, não sabe desejar, não consegue tocar na “verdadeira vida”.
No fundo, Le feu follet (Fogo Fátuo, 1963) é um filme de diálogos sobre a impossibilidade do diálogo. E porquê? Pela mesma razão pela qual estamos diante de um filme simultaneamente envelhecido e jovem. Envelhecido, pois a deambulação por Paris, os ideais da idade adulta – o “colocar uma estaca na realidade” para viver bem – reflectem a vida e fazem um comentário histórico à sociedade parisiense dos anos 60. Mas, ao mesmo tempo, o filme de Malle permanece jovem pois, como diz o escritor francês Didier Daeninckx comentando o filme, ele diz-nos mais sobre a angústia e inadequação da alma de qualquer um de nós, do que sobre ideias e convicções do trágico herói deambulador. E é neste ponto particular que a possibilidade de diálogo entre o eu depressivo e trágico e o mundo se perde, em que toda a hipótese de dialética transformadora congela. Como se o diálogo de Alain Leroy consigo mesmo, um eu e tu em disputa dentro do seu eu, se sobrepusesse a todos as outras conversas, conselhos, paliativos.
Leroy/Ronet é um herói romântico impotente: com as mulheres que o rodeiam, mas que ele não parece conseguir satisfazer [e Le feu follet (Fogo Fátuo, 1963) conversa bem com Il bell’Antonio (O Belo António, 1960) de três anos antes de Mauro Bolognini, com Mastrionanni encarnado a suprema impotência da carne]; e com a escrita, nessa cena no seu quarto em que tenta escrever, em que a possibilidade de expressão lhe surge riscada, abortada, tapada pela angústia. O sintoma do toque abortado com os outros – como, de certa forma, o ennui antonioniano onde as palavras ficam sempre aquém da expressão interior – permite a Malle encenar, na pele e na carne de Maurice Ronet, uma outra forma de o cinema construir os seus diálogos. É a depressão que corta as pontes com o outro e inaugura o diálogo subterrâneo, materialista, performático e secreto com os objetos e superfícies: não apenas o revólver, mas também o toque dos espelhos, dos maços de tabaco, do relógio de ponteiros, das peças de xadrez, dos lenços, dos recortes de jornal, etc. E é nessa dança dialógica de solidão, nesse diálogo sem palavras, que o filme se torna absolutamente contemporâneo. Um anti-espectáculo que resiste à produção do decadentismo estético e que é, em si mesmo, a manifestação de liberdade improdutiva de que 2021 precisa como de pão para a boca. Um pão que, ao contrário de saciar, nos serve para provar que ainda somos capazes de sentir fome.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.