Catarina Vasconcelos é uma pintora do plano e uma costureira do raccord. Escolham um enquadramento ao acaso do seu último filme: terão a primeira metade da frase anterior justificada; escolham um corte aleatório: terão a segunda. No filme de Vasconcelos, não há imagem que não se queira parar para apreciar a sua singular beleza, tal como não há corte que não se queira rebobinar para estudar a ligação habilidosa entre um plano e o próximo. Fruto de mãos pacientes e de uma criatividade buliçosa, A Metamorfose dos Pássaros (2020) é, em suma, o trabalho de uma lídima artesã do cinema.
Sim, certo, refiro-me também aos enquadramentos de verve pictórica (criados em colaboração com o director de fotografia Paulo Menezes), tanto os tableaux vivants com a suposta família de Vasconcelos como as naturezas-mortas que, ao princípio, parecem provir de algum quadro incógnito de Chardin. Não custa a acreditar que a cineasta venha das artes plásticas, dado que o filme demonstra uma sensibilidade meticulosa para a cor, textura e composição. Mas o mais cativante são esses raccords sonoros (o sopro leve de uma criança dá origem ao mais retumbante vendaval) e visuais (de um olho lacrimejante de uma mulher passamos para o olho subaquático de um cavalo-marinho, do relevo das montanhas em plano geral vamos para as costas de uma mão em plano-detalhe), um jogo afincado de semelhanças sónicas e gráficas onde Vasconcelos, para além de assegurar uma progressão poética-narrativa de maneira fluida e elegante, aparenta colocar o mundo em permanente comunicação: as pessoas com os lugares, os seres humanos com os animais, uma família com a História de um país.
E com esta vontade de conexão entre um universo íntimo com outro mais abrangente, Vasconcelos homenageia os seus parentes mais próximos, escrevendo-lhes um longo soneto visual. Nele, vinca principalmente a importância da figura materna, seja a mãe de Jacinto (o pressuposto pai da realizadora) ou a sua própria, retratos femininos que Vasconcelos invoca como os seus símbolos humanos de força, coragem e resiliência devido à abnegação e dedicação que mostraram em nome dos seus, e onde a perda irreversível desta figura leva a uma alteração profunda da estrutura e dinâmica familiar.
Daí que as liberdades poéticas por que [Vasconcelos] envereda nunca se vejam como adulterações dos factos, mas como parte do tijolo e argamassa necessários para fazer desta obra um monumento emocionalmente honesto à sua família.
É também, portanto, um filme sobre o luto e o seu processamento. Mas, ao mesmo tempo, Vasconcelos parece acreditar em qualquer coisa como os resquícios das pessoas nos objectos que lhes pertenceram, tal é o uso de tanta memorabilia quotidiana como matéria-prima: sofás, almofadas, espelhos, livros, selos e até um fóssil, testemunhas inanimadas dos (possíveis) acontecimentos domésticos que a cineasta imortaliza. Como se Vasconcelos transcrevesse uma carta recitada por todos aqueles artefactos, cenários e adereços, decidindo responder-lhes com imagens, sons e a sua fértil imaginação. Daí que as liberdades poéticas por que envereda nunca se vejam como adulterações dos factos, mas como parte do tijolo e argamassa necessários para fazer desta obra um monumento emocionalmente honesto à sua família.
Resta dizer que A Metamorfose dos Pássaros está, evidentemente, alicerçado no sentimento da saudade e no desejo inexecutável de retrocedimento temporal que o caracteriza. Sobre este ponto, três momentos ocorrem-me em particular, todos eles com árvores (as mulheres da família são comparadas a elas pela verticalidade simbólica que acarretam e pela forma como servem de abrigo para “os pássaros” – ou seja, os filhos): o primeiro, aquele em que Vasconcelos restitui folhas aos ramos de onde foram arrancadas, recorrendo ao efeito especial cocteauiano do movimento invertido; o segundo, aquele em que tenta empurrar, para cima, uma árvore derrubada, como que a tentar restituir-lhe a verticalidade irreversivelmente perdida (metáfora para a impossibilidade de retorno da entidade materna à vida); e o terceiro, aquele onde a realizadora segura, num bosque, um espelho para perto da direcção da câmara, apontando-o para as árvores que estão “para trás”, isto é, no passado. Porque, ao fim e ao cabo, é entre o passado e o presente que o filme vagueia, tal como vagueia entre o documentário e a ficção, entre o factual e a poesia, entre a presença e a ausência, entre a vida e a morte, entre o homem e a mulher, entre o mar e a terra. E entre tantas e tantas vagueações, uma palavra e uma só permanentemente ressoa: “mãe”.