Os alemães designam enquadramento por einstellung; einstellung quer dizer, também, disposição moral.
Jean-Marie Straub
Começamos pela gestação das criaturas míticas no sopé de uma colina vulcânica, neste ciclo de crónicas espoletadas por Diálogo de Sombras, filme de Júlio Alves, a partir das imagens de Pedro Costa e das companhias electivas, nas galerias escurecidas de Serralves.
A filmografia da dupla Jean-Marie Straub e Danièle Huillet é uma assumida influência no trabalho de Pedro Costa, explícito em Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001), filme do cineasta português que documenta o processo de montagem de Sícilia! (1999), filme da dupla que acompanha o regresso à terra natal, na Itália de Mussolini, de um homem emigrado nos EUA há 15 anos.
No comboio de Sícilia!, no percurso do emigrante para a casa materna, há um personagem que se eleva, uma nobreza no discurso, que os parceiros de carruagem confundem com a argumentação de um professor e que nos põe em diálogo com a dinastia de Pedro Costa. Diz-nos esse homem, um latifundiário, que aquela região, aquele país, é feito de um povo triste, à espera de algo melhor, mas sem esperança em alcançá-lo. Afirma-se disponível para de tudo abdicar, do cavalo com que percorre as terras que fazem dele um rei, para se sentir diferente, com algo de novo na alma, para se sentir em paz com os homens: ambicionava uma nova consciência que o impelisse para outros deveres, novos e elevados, sendo que os deveres daqueles tempos – não matar nem roubar, ser um bom cidadão – são velhos deveres, demasiado fáceis de cumprir. Este depoimento, declamado e naturalista, como é usual nos filmes de Straub e Huillet, um cântico em que se pontuam todas as sílabas, ecoa por todo o filme, além de fazer um contraponto, ainda no comboio, com um dos homens do regime de Mussolini, talvez um camisa negra, que verbaliza a preocupação com os mortos de fome, a sua perigosidade, potenciais ladrões e, pior do que isso, delinquentes políticos.
O labor dos cineastas exige a mesma honestidade que a apresentada pelos seus personagens: conjuga-se pensamento com o que é mostrado, estabelecem-se enquadramentos ao nível dos personagens para facilitar a fraternidade entre eles.
Mas a grande fatia de Sicilia! é preenchida do encontro com a mãe, retratada como os heróis de Costa: a mesma escala, a mesma dignidade. O filme guarda memórias e tradições como um registo oral, onde as dificuldades de uma vida de trabalho e de penúria é sinalizada por rememorar o que se comia, uma dieta pobre, onde raras vezes aparecia a carne, uma infância (do protagonista) onde afirmara trocar os direitos de primogénito por um segundo prato de lentilhas ou pelo exotismo de um melão comido no Inverno. Um décor mínimo, mas intensificado, em que tudo o que está dentro do plano é necessário e significante: as histórias, as vozes, as expressões, os alimentos, o mobiliário parco, as paredes por caiar, a luz e as sombras das figuras.
Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, uma dupla no trabalho, figuras imersas na escuridão da cabine de montagem, como dois personagens de Costa, mas também um casal em disputa, cada um na sua cena, como dois comédiens numa pequena screwball comedy: Straub numa circulação de pés e histórias do cinema mescladas com teses suportadas em conhecimento empírico e Huillet, a pedir silêncio e disciplina ao parceiro, com a película em mãos, montadora como um ofício de artesanato; desentendimentos, às vezes separações, como quando Straub sai da sala, como quem abandona o domicilio conjugal. Um trabalho árduo, em que muitas vezes se disputa um fotograma de diferença para juntar um sorriso à performance de um actor, em que se avaliam cortes e junções, olhares, palavras e gestos, para guardar os mais preciosos. Espoletada por pequenos movimentos das figuras, como Chaplin começou por fazer na série de curtas-metragens da Essanay, uma montagem muito precisa, uma radicalidade que também leva a dupla a dispensar anotadores, raccords atados por música (a sopa, como lhe chama Straub) e actores profissionais, em mais uma afinidade com o trabalho de Costa desde No Quarto da Vanda (2000): a procura de uma espontaneidade que não se consegue com actores que a troco de “truques e manhas”, como afirma Straub, abdicaram do que realmente importa – a respiração, a coordenação do olhar e do gesto, a métrica de um texto, que deve ser ensaiado como um trecho musical.
O labor dos cineastas exige a mesma honestidade que a apresentada pelos seus personagens: conjuga-se pensamento com o que é mostrado, estabelecem-se enquadramentos ao nível dos personagens para facilitar a fraternidade entre eles, um cinema que ambiciona uma linguagem aparentemente primitiva, sem sopa, uma nobreza emparelhada com as palavras e as acções dos intérpretes, uma obra pesada pela ética e pelos dilemas de cada plano, de cada palavra, de cada expressão. A predisposição moral que objectiva dar voz a quem não figura na História, aproxima o olhar político de Costa do cinema da dupla, que colhera os ensinamentos do escritor Cesare Pavese que afirmou que os camponeses (e os operários) não têm História, e que tem na sua obra derradeira – A Lua e as Fogueiras (1958) – uma tangente à trama de Sicilia!, com contornos autobiográficos de um escritor emigrante: relatos de uma casa herdada do avô materno que a construiu com as suas mãos aos Domingos (como o Ventura de Pedro Costa), ou um Inverno manchado pela morte de mais de cem trabalhadores das minas de enxofre, durante uma greve, às mãos da polícia.