É o filme do momento: superprodução hollywoodesca que promete marcar o regresso às salas de cinema dos espectadores mais receosos e ainda confinados. Os walshianos João Araújo, Ana Cabral Martins e Ricardo Gross pronunciam-se sobre o filme de Denis Villeneuve, nova adaptação ao cinema do popular livro de Frank Herbert, depois da célebre, pelas boas e más razões, primeira tentativa por David Lynch, rodava o ano de 1984. Valerá o investimento?

Não será muito justo avaliar uma obra a meio, e a verdade é que esta é apenas a primeira de duas partes da adaptação de Denis Villeneuve do livro de Frank Herbert, repleta de nova informação e enfraquecida desde logo pela necessidade de estabelecer uma mitologia própria. Mas a primeira impressão é mesmo que esta é a (Christopher) Nolanização de Villeneuve, no sentido de se deslumbrar com a escala da acção e pelas possibilidades técnicas, em detrimento do desenvolvimento de personagens complexas e que criem momentos emocionais e genuínos (e não pré-fabricados a serviço do guião); mas o que salta à vista também é o quão anónima é esta versão de Villeneuve, que sem arriscar quase nada de um toque pessoal, procura aqui acima de tudo respeitar o material de origem (para Villeneuve “mais importante do que a bíblia”), isto é, jogar pelo seguro. Além da fotografia com tons de laranja e o minimalismo de alguns décors interiores que traz de Blade Runner 2049 (2017), estamos longe do cinema de Villeneuve, em particular de Arrival (O Primeiro Encontro, 2016) e Sicario (Sicário – Infiltrado, 2015), onde por exemplo e em contraste com Dune (2021), toda a acção acompanha o mapeamento emocional da sua protagonista, cujas motivações e preocupações ocupam o lugar central. A excepção a essa anonimidade é o uso recorrente, tal como em Arrival, de pequenos momentos de flashforward, vislumbres rápidos de pedaços de sonhos ou visões que disfarçam-se de memórias mas que são na verdade alucinações premonitórias – é um ponto de contacto também com o filme mais interessante de Nolan, Interstellar (2014), pela manipulação temporal e investimento na criação de significado emocional na “viagem” do protagonista, mas que aqui, em Dune, esses momentos parecem surgir apenas como um mecanismo para manter o interesse do espectador sobre o que ainda falta mostrar (como por exemplo, antecipando a interacção com uma importante personagem que aparece apenas nos últimos minutos), durante as partes em que o filme se alonga a estabelecer a tal mitologia.
Villeneuve definiu o filme como “uma carta de amor” à experiência de assistir cinema em sala, e se é verdade que quanto maior a tela, mais “impactante” será a experiência de sobrecarga sensorial (ajudado pela enésima variação de Hans Zimmer na banda-sonora, que apenas ajuda a diluir a identidade do filme, aproximando-o de outros tantos; por contraste, Villeneuve tinha arriscado e beneficiado das composições distintas de Jóhann Jóhannsson em Sicario e Arrival), é algo decepcionante que Villeneuve associe essa experiência de cinema em sala a uma questão de escala, e não a uma questão de intimidade, proximidade e empatia com as inquietações e tribulações das personagens – que reconhecemos de outros filmes seus, como Incendies (Incendies – A Mulher que Canta, 2010), Prisoners (Raptadas, 2013) ou Sicario – onde por exemplo a escala é muito menor, é apenas uma viagem de carro por território inimigo, mas a tensão e o perigo da sequência pivotal desse filme não encontra rival em Dune (porque em Sicario preocupamo-nos de facto com o destino da protagonista). Uma das melhores cenas de Dune acontece perto do início, quando o protagonista, Paul, encontra o seu pai a olhar para os lagos do seu planeta mãe, e têm uma troca de palavras aberta e genuína sobre os anseios em relação ao futuro próximo, uma candura que o filme não repete depois, muito menos na descrição da relação de Paul com a sua mãe (e os seus “poderes” ocultos), cuja seriedade dramática sempre presente apenas ganha contexto e emoção a partir do momento em que os dois se encontram em fuga (da mesma forma que a relação próxima de Paul com os soldados Duncan ou Gurney nunca é explicada, apenas existe para preencher espaço).
A escolha de um cineasta como Villeneuve (que vem do cinema independente e que nos últimos tempos, promovido a grandes produções, tem apresentado obras inteligentes e adultas) não é surpreendente para uma Hollywood que tenta assimilar diferentes talentos para o seu sistema como forma de sobrevivência – já há cerca de duas décadas que a “máquina” de Hollywood tem aprendido a “canibalizar” o cinema indie americano para rentabilizar alguns clarões de originalidade, cedendo mega-produções a autores como Peter Jackson ou Guillermo del Toro, em vez de tarefeiros como Danny Boyle ou Ron Howard (a excepção histórica é mesmo a versão anterior de Dune de 1984 a cargo de David Lynch, que diga-se o que se quiser sobre essa versão, pelo menos arriscava). Por isso, o que mais surpreende aqui é mesmo a auto-anulação de Villeneuve, apagando os traços anteriores do seu cinema e do próprio material de origem, conformando tudo a algo que não cause estranheza ao espectador, talvez por receio de imitar os falhanços catastróficos de Lynch e Jodorowsky. Não há (para já) muito que distinga esta nova velha história da personagem predestinada, do “Escolhido” que aparece para libertar um povo, de outros cenários parecidos (Star Wars, The Matrix, a bíblia…). Mas, mesmo assim… existem alguns momentos empolgantes, especialmente a partir do momento em que entram em acção os membros da tribo indígena Fremen, já perto do final, como que antevendo um vislumbre do que poderá ser a segunda parte… e porque Villeneuve ainda é capaz de surpreender, se estamos no intervalo, os prognósticos só no final do jogo.
João Araújo

Desde Sicario (Sicário – Infiltrado, 2015), que ocupa ainda a posição de topo na filmografia deste franco-canadiano, que sabemos que por muita que seja a areia, a camioneta de Denis Villeneuve aguenta com ela por inteiro. Villeneuve é um especialista em colocar a maquinaria pesada do seu cinema em território hostil, seja este real ou virtual. Ultimamente os seus projectos têm-no levado a bater-se com objectos icónicos da história do cinema (o Dune de David Lynch depois do Blade Runner (Blade Runner – Perigo Iminente, 1982) de Ridley Scott, e anuncia-se a reactualização do Cleopatra [Cleópatra, 1963), de Joseph L. Mankiewicz?). E também já vimos em algum lado a intenção de Villeneuve em refundar a série de filmes de James Bond. Não é possível responder genericamente e com justiça sobre os méritos desta identidade de Denis Villeneuve, o artista do pastiche, temos de olhar separadamente os resultados filme a filme.
Esta primeira parte de Dune, cuja extensão é de cerca de duas horas e meia, é uma sopa opera plasticamente arrebatadora, coberta com a partitura omnipresente de Hans Zimmer, e um filme de aventuras de sensibilidade juvenil que nos dá a ver Timothée Chalamet como uma espécie de Lawrence de Arrakis. Denis Villeneuve esmera-se na exposição clara das linhas narrativas da obra de culto de Frank Herbert (que escreveu mais cinco livros passados neste universo), tirando máximo partido do seu sentido visual para as macroescalas. Por raras vezes o deleite estético proporcionado por uma obra calibrada para as salas de cinema melhor equipadas, ganha pleno sentido. O escapismo deste Dune é jovem no coração mas adulto nas formas: às dunas o que é da areia, e a todos nós o que é da especiaria.
Ricardo Gross

A estética de Villeneuve mescla bem com um filme que se passa num planeta árido e estoico, sendo textural e inventivo o suficiente para compensar um conjunto de cores que evoca a areia que envolve os protagonistas — que são, por sua vez, ridiculamente charmosos.
Para além de visualmente cativante, consegue construir um atmosférico Arrakis e revela bem a mitologia do mundo interestelar circundante (lembra a adaptação d’O Senhor dos Anéis, não se sente a sumarização, nem a falta de contexto). Contudo, o problema ao dividir o livro em dois filmes é que o primeiro é todo set up para, depois, o segundo consistir em dar-nos o pay off narrativo. É, sobretudo, um filme intrigante, no sentido em que surpreende (pelo feito que é enquanto adaptação) e que desperta a curiosidade pelo resto da história, mas que sabe, enfim, a pouco.
Ana Cabral Martins