Rodado depois de um longo interregno de doze anos, este viria também a ser o último filme de Alberto Seixas Santos, falecido em 2016. Influente e inovador realizador, pertenceu ao movimento do Novo Cinema português, com as suas obras Brandos Costumes (1975) e Gestos e Fragmentos – Ensaio Sobre os Militares e o Poder (1984) a assumirem um papel importante para compreender a saída do salazarismo e a revolução de 1974; desempenhou um papel importante na cooperativa Grupo Zero, nomeadamente no filme A Lei da Terra (1977). Em 1999, realiza Mal (1999), participando mais uma vez numa época de renascimento do cinema português [do mesmo período: Pedro Costa com Ossos (1997), Teresa Villaverde com Os Mutantes (1998), e João Pedro Rodrigues com O Fantasma (2000)], com um filme que o próprio descreve como um “confronto com uma realidade que [me] resiste” e com a ética de um “realista utópico”.
E o Tempo Passa (2011) é um filme que, através de um elaborado labirinto narrativo, constrói um retrato dos tempos modernos e da multiplicidade de camadas e ecrãs através da qual se desenrola e observa a vida e as artes (televisão, cinema, teatro). Como tema central, o filme explora não só a fronteira entre a ficção e a realidade, mas especialmente as zonas onde estas se confundem, aproximando-se assim de um género que seria depois desenvolvido de forma extensiva ao longo da década de 2010’s, a docu-ficção. No entanto, a tese defendida por Alberto Seixas Santos é a oposta desse estilo que procura criar obras de ficção como se fossem documentários: E o Tempo Passa trata da impossibilidade de aproximação a um retrato realista, da inevitável artificialidade de qualquer representação, pela sua natureza Brechtiana.
É esta abordagem assumida por Alberto Seixas Santos que ajuda aqui a criar uma crítica social ao mundo à nossa volta, mas também na forma como este é retratado pela arte, nas questões e inquietações que evoca.
O filme começa com a chegada mediática, quase ensaiada, de Teresa (interpretada por Sofia Aparício), uma modelo tornada atriz, ao aeroporto, onde é rodeada por câmaras. Quase sem repararmos, a imagem transforma-se na de uma reportagem televisiva, começando aqui o princípio da confusão entre realidade ensaiada e realidade mediática e do jogo entre diferentes formatos e palcos. A sequência seguinte apresenta-nos uma segunda personagem, Renata, uma senhora mais velha (interpretada por Isabel Ruth) que vive sozinha com o seu gato, e que preenche as noites solitárias com música e saudade, uma cena estilizada de forma escura e frugal. A terceira sequência foge brevemente desta estética cuidada (e por consequência, mais artificial) para revelar uma terceira personagem, Simão (interpretado por Américo Silva), um homem que trabalha num matadouro rodeado de sangue e carcaças de animais, numa aproximação a uma realidade menos glamorosa, mais condizente com uma vivência comum. Porém, a interrupção é curta, e o filme logo de seguida regressa ao “mundo” de Teresa, iluminado como se tratasse de um film noir, cheio de mistério e sombras, para revelar a visita de uma quarta personagem, um francês antigo amante de Teresa (interpretado por Christian Cloarec) que a visita de manhã, pedindo-lhe que volte para ele – a sequência, pelo diálogo e pose exagerada das personagens, assume tons oníricos. E, sem darmos conta, estão lançados os dados para uma trama que se vai embrulhar, entrelaçando-se entre estes diferentes mundos-palco.
Porém, falta ainda uma peça do puzzle, que o filme introduz de forma subtil: depois de despedir-se do francês, no corredor escuro à porta do apartamento de Teresa, o plano seguinte continua num corredor escuro, como se estivéssemos no mesmo sítio, mas entramos noutro “mundo”. Estamos num estúdio de televisão, no primeiro dia das gravações de uma novela, e Teresa, nervosa, vai-se enganando nas falas, enquanto assistimos à sua volta toda a agitação e parafernália da televisão: câmaras, ecrãs, projetores de luz, perches de som, assistentes: o que acontece é o registo de uma encenação, mas a partir daqui, nem sempre fica claro o que é encenação e o que faz parte da realidade destas personagens, ou seja, se estamos a ver atores a fazerem de atores na gravação de uma novela, ou se atores a fazerem de personagens a interagirem entre eles nos intervalos das gravações. O filme diverte-se com este conceito, interrompendo casualmente – e quando menos esperamos – algumas cenas com alguém a gritar corta ou com a entrada do realizador em cena – e dessa forma, sinalizando que qualquer uma sequência pode ser uma “falsa realidade”, ou seja: é tudo uma encenação, é tudo teatro, não é possível fugir disso, não existe a possibilidade de aproximação à realidade.
A partir desta realidade fragmentada, o filme vai seguir diversas histórias paralelas (numa aproximação ao mecanismo esquematizado da telenovela), com Teresa a ocupar uma presença central, mas serão as figuras secundárias à sua volta que despertam maior interesse. Se o “palco” do estúdio de gravações e das interações entre atores e personagens vive da incerteza sobre se o que estamos a ver é realidade ou encenação, se os jogos entre personagens são genuínos ou apenas seguem o que está escrito para eles, sente-se a necessidade de encontrar um espaço neutro – cujos limites entre ficção e realidade (dentro do filme, é claro) parecem estar bem delimitados. Nesse espaço encontramos, entre os vários “figurantes”, duas personagens em caminhos opostos: a maquilhadora Renata, numa rota de aproximação a Teresa mas também de desaparecimento do filme; e Simão, o representante do homem comum e exterior a este mundo da ilusão da televisão, que se vai introduzindo nas cenas e ganhando proeminência.
Renata começa o filme como parte integrante do mundo de fantasia da televisão, do lado de trás das câmaras, mas ao mesmo tempo é posta de lado pelos seus colegas porque é um símbolo de alguém preso ao passado: tem uma vida solitária e fala com o seu marido morto como se ele ainda estivesse vivo. Gradualmente aproxima-se de Teresa, como se as duas partilhassem essa ligação ao que se perdeu e de dificuldade na ligação ao seu presente, numa coincidência que o filme sublinha várias vezes, com diversas sequências em que as duas são enquadradas por espelhos e pelos seus reflexos, deixando no ar a possibilidade depois do desaparecimento gradual, como um fade out, de Renata: espera a Teresa o mesmo destino? Já Simão é um outsider desde o início, um penetra que assiste às filmagens e que de forma ingénua comenta o que não gosta como se a ficção fosse realidade, que aos poucos vai-se tornando um insider nessa ficção, apaixonando-se por uma das personagens, até que é chamado a participar e assumir o seu papel de ator, assimilado pela máquina da ilusão. A vida é um palco, e este palco está cheio de vida.
A referência a Brecht no início do texto é evocada pelo próprio filme, quando a certo ponto, assistimos a uma peça de teatro dentro do filme. A abordagem popularizada por Brecht no teatro tinha como objetivo não que o espectador perdesse a noção que estava a assistir a uma ficção e se deixasse levar por um retrato realista através da ilusão da representação, mas que o espectador tivesse consciência de estar a assistir a uma peça de teatro, à teatralização da vida, recorrendo a certos mecanismos (como uma personagem que interpela o espectador diretamente para quebrar a quarta parede) que desfizessem qualquer pretensão de ilusão. É esta abordagem assumida por Alberto Seixas Santos que ajuda aqui a criar uma crítica social ao mundo à nossa volta, mas também na forma como este é retratado pela arte, nas questões e inquietações que evoca. Nas suas próprias palavras, na nota de intenções para este filme, o realizador afirma: “Todos os filmes que realizei obedecem aos mesmos princípios de rutura interna, de colagem, de mistura de materiais heterógeneos no corpo da mesma obra. E todos têm fins em aberto. Quem sou eu para decidir do destino dos homens e do mundo?”
Este texto foi originalmente escrito a convite do festival Caminhos do Cinema Português, que programou o filme para a 3.ª edição da Mostra Programa!ação, que decorre de 20 de Setembro a 20 de Novembro de 2021.