Na última semana de setembro encerrou-se o curso de oito aulas que ministrei sobre o cinema de John Ford. Foi um dos maiores momentos de minha carreira de professor e crítico de cinema, menos pela minha capacidade didática do que pela riqueza dos filmes desse grande realizador, o maior, a meu ver, da história do cinema. Meus méritos consistiram em escolher os textos certos (João Benard da Costa e Tag Gallagher, principalmente, mas também algo de Joseph McBride, Andrew Sarris, Peter Bogdanovich, Miguel Marias e Scott Eyman, entre outros autores de uso mais específico) e os trechos certos dos filmes que comprovam sua grandeza, presente mesmo em filmes fracassados (“glory on defeat” era um de seus temas preferidos). Pelo que pude perceber, fui bem sucedido, pois todos os inscritos se revelaram ou pareceram empolgados com os trechos vistos e as conversas sobre o estilo e o mundo de Ford.
Obviamente, há um descompasso entre o que se quer do cinema hoje e o que se queria até os anos 1950, talvez meados dos anos 1960. A moeda do “filmar o real” está muito mais valorizada hoje, basta ver como Jean-Louis Comolli se tornou uma sensação na academia (pelo menos na brasileira), e a ideia da construção de um imaginário parece o real ante o dólar e o euro: minúscula, sobrevivendo por aparelhos nos bons filmes de horror (que são minoria). O cinema de Ford, por mais moderno que fosse, tornou-se, para boa parte da nova geração de cinéfilos, antiquado, um exemplo do que o cinema era no passado e não poderia mais ser. Alguns textos do jornal britânico The Guardian dão uma dica de como o realizador tornou-se preguiçosamente mal visto ou não visto de fato. Seguem dois exemplos:
https://www.theguardian.com/film/2020/may/22/ive-never-seen-the-searchers-john-wayne
https://www.theguardian.com/film/filmblog/2013/dec/19/why-re-evalute-films-once-great-queenan
No entanto, a modernidade de Ford resiste. Sua capacidade de observar um problema e o expor, seja o racismo, o machismo, a exploração agrária, a autoridade moral ou militar, a falência de uma sociedade ou a cegueira dos homens de poder, faz de seus filmes muito mais progressistas do que gostariam os seus inúmeros e duvidosamente conscientes detratores. Pois Ford estava sempre do lado dos párias da sociedade – bêbados, prostitutas, pistoleiros de bom coração como Ringo Kid ou os “3 Bad Men” do filme de 1926 que ostenta esse título, fazendeiros humildes sempre ameaçados de serem expulsos de suas terras, e, obviamente, índios.
Sim, índios. Está lá no livro do Tag Gallagher. Ford era amigo de várias tribos, principalmente dos navajos, e brigava para que pagassem o mesmo cachê dos outros atores coadjuvantes. Gostava de filmar no Monument Valley também porque dessa forma o comércio dos navajos, baseados na região, era aquecido. Basta ver Fort Apache (Forte Apache, 1948) para entender que, num filme narrado do ponto de vista dos brancos, são os índios que detém a superioridade moral e a maior inteligência na estratégia de guerra. São os índios que honram compromissos firmados, enquanto os brancos sempre procuram enganá-los com falsas promessas e acordos. A revolta do personagem de John Wayne contra seu superior, Henry Fonda, é justamente porque Fonda não queria honrar um compromisso feito por Wayne com o líder dos índios para poder atacá-los. Em 1964, Ford realizou Cheyenne Autumn (O Grande Combate) para deixar as coisas mais claras, ainda assim, sem cair no panfletarismo dos filmes progressistas mais típicos de hoje.
Desbravar o cinema de John Ford é desbravar um mundo muito mais rico e cheio de ambiguidades que o atual.
No filme mais usado para a acusação de racismo, The Searchers (A Desaparecida, 1956), não há nada que indique um real racismo da parte de Ford. O que há é um racismo evidente em Ethan Edwards, personagem de John Wayne, como também na personagem de Vera Miles. Sim, uma moça indígena é utilizada como fator de comédia. Mas também o são vários outros personagens de Ford, incluindo seu irmão mais velho e mentor Francis Ford, sempre no papel do bêbado tolo. A crueldade de Scar, o líder dos comanches rebeldes, não é maior que a de Edwards. Um é o espelho do outro. Scar comanda o extermínio de quase toda a família de Edwards por vingança. Quantas atrocidades teriam sido cometidas contra seu povo? O filme não mostra, mas deixa entender, para quem quiser.
Há também o lado conservador, não nego. Ford era saudoso da América que ele viveu na juventude, antes da febre consumista e do capitalismo mais selvagem que iniciaria nos anos 1950. Antes da fábrica de falsos ídolos que já era a televisão nessa mesma década. Ford evitou falar da América contemporânea desde The Whole Town’s Talking (Não se Fala Noutra Coisa, 1935), e quando voltou a ela, em The Last Hurrah (O Último Hurrah, 1958), percebemos seu pessimismo e sua visão extremamente negativa da sociedade americana de então. Ford era um cidadão do século XIX, que poderia sobreviver dignamente até, no máximo, os anos 1930, ainda assim com uma boa dose de crítica, presente em diversos de seus filmes.
Mas se é tolo chamá-lo, ou ao seu cinema, de progressista, também o é chamar de conservador. Como todo liberal da boa e antiga cepa (não, obviamente, o neoliberalismo destruidor de hoje), Ford fazia questão de ser livre para ter ideias progressistas e ideias conservadoras, sem que uma negasse o direito da outra existir. Podia andar com anticomunistas como John Wayne e Ward Bond e ao mesmo tempo rejeitar veementemente a lista negra do macartismo numa famosa reunião do Screen Directors Guild, em 1950. Seus filmes estão carregados de uma índole de livre pensador. Seus erros de percurso estão escancarados, assim como seus inúmeros acertos.
Desbravar o cinema de John Ford é desbravar um mundo muito mais rico e cheio de ambiguidades que o atual. Talvez por isso algumas pessoas, por preguiça, prefiram chamá-lo de racista sem ver ou rever com maior atenção.