A nossa conversa com Mia Hansen-Løve teve lugar no cinema São Jorge, aquando da sua passagem por Lisboa, no âmbito da retrospectiva que lhe foi dedicada pela Festa do Cinema Francês, numa altura em que o seu último Bergman Island (A Ilha de Bergman, 2021) começa, finalmente, a chegar às salas de cinema. A realizadora deixou transparecer a sua relação especialmente íntima com este filme, o que se prende com o facto de a personagem principal ser, também ela, uma mulher cineasta. A conversa passou ainda, como seria inevitável, pelo mestre Bergman, figura que “assombra” o seu filme, e pelas diferentes formas de fazer cinema – em especial o que significa, para uma mulher cineasta, seguir a sua vocação.
Apesar de a conversa ter tido lugar no final de um dia que ia já longo, preenchido por consecutivas entrevistas, Mia Hansen-Løve revelou sempre uma grande generosidade nas suas respostas, detendo-se naqueles temas que lhe são mais caros, e mostrando-se ainda disponível para acomodar uma derradeira questão, quando o nosso tempo se esgotava já.
Como surgiu a ideia para Bergman Island (A Ilha de Bergman, 2021)? Teve a intenção de prestar, de alguma forma, uma homenagem a Ingmar Bergman, ainda que de forma não directa?
Creio que há uma dimensão de homenagem a Ingmar Bergman no filme que eu não nego, sendo sua grande admiradora. Mas não foi essa a primeira razão para o filme existir. Não creio que fosse capaz de fazer um filme que fosse, antes de mais, uma homenagem. Os meus filmes são sempre animados por uma necessidade íntima, que nasce do desejo de representar personagens num dado momento da vida de que me recordo. É este o ponto de partida dos meus filmes. E, neste filme, trata-se sobretudo de uma ideia já com alguns anos, de fazer um filme sobre a inspiração, a criação no seio de um casal e a forma como o casal resiste apesar das dificuldades, da fragilidade que a criação produz, a dificuldade para um casal de pessoas que escrevem, um casal de artistas (aqui trata-se de cineastas, mas poderiam ser escritores). A dificuldade de estarem juntos e de encontrarem o espaço comum enquanto cada um vive num universo mental próprio e como, apesar de tudo, resistem, e a forma como a inspiração funciona e circula no seio deste casal. Era uma ideia que tinha já há cerca de dez anos e que me acompanhava enquanto ia fazendo outros filmes. Pensava que um dia faria esse filme sobre cineastas, sobre um casal, sobre a criação, mas esperava pelo momento, e também encontrar a forma adequada para exprimir de que forma a inspiração funciona e a forma como o diálogo entre a vida interior e a ficção, e o quotidiano, funciona. E acabou por acontecer anos mais tarde, depois da morte de Bergman, que me marcou.
Foi pouco tempo depois de Saraband (2003), o seu último filme – já me interessava pelo cinema de Bergman há muito, mas algo se passou quando vi Saraband, achei tão perturbador que um cineasta com aquela idade e chegado àquele momento da sua carreira, fizesse aquele filme com os seus actores, que viu envelhecer, filmando-os na fragilidade, na velhice, e também a juventude que filmava. Enfim, este filme é perturbador por uma série de motivos. Foi aí que algo começou a acontecer entre mim e Bergman, senti que passou a existir uma relação mais íntima com a obra de Bergman. Depois ele morreu e li também um texto que me marcou muito, um texto muito certeiro, que falava da importância da sensualidade na vida de Bergman. Foi um texto que me deixou algo transtornada, porque temos dele uma imagem muito austera, muito mental, do cineasta de Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957) e de Viskningar och rop (Lágrimas e Suspiros, 1972) e, na verdade, quando vemos a sua obra, os seus filmes, a sua vida, apercebemo-nos de que era realmente um cineasta da sensualidade, muito mais próximo do corpo e do desejo do que o estereótipo da sua obra nos levaria a crer. Foi este o início do processo para este filme.
O trabalho de escrita é para Chris algo de doloroso, extenuante. Mas ela fica muito zangada quando Tony lhe sugere desistir, procurar algo mais fácil. Percebemos que a escrita faz parte dela, define-a também. Em geral as suas personagens vivem muito através da sua profissão (seja arquitectura, filosofia, escrita). A profissão é uma forma de elas fazerem o seu caminho, de se descobrirem? A profissão é uma forma de encontrar respostas, é algo que molda uma vida?
Na verdade, em quase todos os meus filmes, trata-se de personagens que têm não tanto uma profissão, mas uma vocação. A vocação acaba por ser um pouco o fio condutor de todos os meus filmes. E para mim é quase um handicap, tenho a impressão de não ser capaz de representar personagens que não tenham uma vocação. Gostaria de poder fazer um filme sobre alguém que tem uma profissão, apenas uma profissão, porque é preciso viver, ganhar a vida. Mas, na verdade, tenho sempre esta obsessão de falar de personagens que são animadas por uma busca invisível, algo de interior, de inatingível, mas que é verdadeiramente uma vocação, em quase todos os meus filmes. Para mim, é realmente uma espécie de handicap, não é uma escolha, é algo que me é imposto, é algo a que regresso em todos os meus filmes. Mas é verdade que neste filme o trato de maneira mais frontal, porque é a primeira vez que está em causa uma mulher cineasta, como eu, precisei de tempo para ser capaz de olhar para isso de uma maneira tão directa e literal. Enquanto nos outros filmes não se trata de pessoas que fazem o mesmo que eu faço, trata-se de pessoas que têm uma outra vocação, mas com quem existe um diálogo. Não é tanto uma escolha, mas uma necessidade, para mim, voltar a este tema da vocação.
No filme, vemos um casal, ambos trabalhando na área do cinema, que chegam a esta ilha que foi outrora habitada pelo mestre Bergman. E, apesar de esta presença ter tudo para intimidar, sentimos que, em primeiro lugar, é a própria natureza que intimida. Chris afirma mesmo que talvez não consiga trabalhar ali, que aquele lugar é demasiado belo.
Por vezes, podemos experimentar uma angústia enorme quando nos encontramos em sítios sublimes e face à imensidão, e isto é algo que encontramos em Fårö. Não foi essa a minha experiência em Fårö, mas podia ter acontecido. Mas, por razões particulares, escrever este filme foi para mim um enorme prazer. Provavelmente houve algumas angústias que, entretanto, esqueci, mas guardei a memória deste enorme prazer ao escrever o filme. Mas, em contrapartida, por vezes sinto-me angustiada como Chris e com uma relação complicada com a escrita e sei que por vezes podemos sentir enorme angústia face à beleza. Por vezes, é mais fácil escrever num café, com barulho, com vida, porque ficamos colocados face ao vazio, face ao nada e somos deixados sozinhos face aos grandes temas – a vida, a morte. É algo que Bergman foi capaz de enfrentar durante toda a sua vida, fez essa escolha. Durante muito tempo viveu entre Fårö e Estocolmo, mantendo, portanto, uma vida citadina. Mas, num dado momento, escolheu isolar-se em Fårö definitivamente. Depois, a mulher morreu e ele sobreviveu-lhe ainda uns vinte anos, creio. Por isso, passou muitos anos só face às grandes questões da existência. Porque quando estamos em Fårö, não há nada. Quando lá estive, tinha uma equipa, mas se vamos para lá para escrever, mesmo durante a época turística, estamos face ao vazio. É o ambiente perfeito para meditar, mas pode também ser aterrador. Não estamos protegidos pelo ruído do quotidiano. É essa a força de Bergman e algo com que eu queria confrontar-me. Acho que, miraculosamente, não me senti paralisada, mas compreendo que a Chris, a minha personagem, pudesse sentir isso. A beleza de um sítio como Fårö pode ser algo de estimulante, de inspirador, mas pode também ser algo de terrivelmente angustiante.
A natureza é, aliás, uma presença constante nos seus filmes. Por um lado, um sentimento de pertença. Mas também um sítio de descoberta, de reflexão. Vemos frequentemente personagens que caminham na natureza.
Bem, há pessoas que simplesmente não gostam do campo, conheço muitas [risos]. Pessoas que, durante o confinamento, em Paris, preferiram ficar fechadas num pequeno apartamento, com os filhos, quando tinham a possibilidade de ter ido para uma casa no campo, porque não gostam do campo. Nem toda a gente é sensível à natureza, ao campo, mas eu sou, extremamente. Penso que se deve à minha infância. Cresci em Paris, sou completamente parisiense. Vivíamos num pequeno apartamento, mas, no Verão, partíamos, íamos para o Ardèche, para uma quinta que era da minha avó. Era uma quinta muito simples, muito modesta, mas muito bonita, nas montanhas do Ardèche, no sul de França. Guardo extraordinárias memórias daqueles verões. Ficávamos lá, viajávamos pouco, tomávamos banhos no Loire ou num lago, em sítios bastante desérticos, muito preservados, um pouco como Fårö. Ainda que seja muito diferente, encontro a mesma qualidade de vida e de silêncio, algo de selvagem, e sinto que o meu imaginário foi muito moldado por este contraste entre a vida que levava em Paris, muito urbana, com algo de duro, estreito, fechado, um pequeno apartamento escuro no rés-do-chão, num prédio moderno, em Paris, com o barulho do metro permanente – isso construiu a minha infância. E, depois, aqueles verões em que, de repente, o céu abria, a liberdade, o espaço e muito tédio – eu entediava-me, mas o tédio… o meu pai dizia “o tédio forma a imaginação”. Tenho a impressão de ainda ser alimentada por aquele tempo e o espaço que se abria em mim naqueles verões. Sinto que isso definiu a minha relação com a natureza e que isso está nos meus filmes. Quando estive em Fårö para escrever tive, por vezes, a impressão de encontrar o prazer que sentia em criança a inventar brincadeiras na casa do Ardèche, da minha avó.
Numa das conversas do filme é feita uma contraposição entre o Bergman realizador e o Bergman enquanto membro de uma família, uma contraposição entre a obra e o artista, entre vida artística e vida familiar. A vida artística, sendo muito absorvente, poderá boicotar a existência de uma vida familiar satisfatória. Esta conciliação de vida artística e vida familiar é algo que a preocupa enquanto realizadora?
É uma questão que me preocupa muito. Acho muito difícil formar uma família, educar os filhos e, ao mesmo tempo, seguir uma vocação. A vocação tende a devorar tudo. Se somos inteiros e temos uma fé completa naquilo que fazemos, um desejo profundo de construir uma obra, uma busca através de uma obra (o que penso ser o meu caso), podemos pensar que a vocação deve ser uma coisa absoluta, exclusiva, que devore tudo. Na verdade, eu compreendo que Bergman tenha feito a escolha de não educar os seus filhos. As pessoas pensam, frequentemente, que eu escrevi esta cena para denunciar Bergman – o macho, as mulheres. Mas é mais complicado do que isso, porque eu entendo-o, simplesmente não sou assim. Tenho dois filhos e não seria capaz… na verdade, tenho ciúmes de Bergman. Gostaria muito de ter nove filhos e fazer todos aqueles filmes. Não sei se se trata propriamente de um julgamento moral, mas antes de uma constatação de que aquilo que este homem foi capaz de fazer, graças ao seu poder criativo e graças ao seu egoísmo é algo que não está ao alcance de todos e ainda menos das mulheres. Pelo menos, não está ao meu alcance. E, simultaneamente, em que medida posso eu construir uma obra, atingir uma verdade, uma profundidade por meio do que faço, mesmo sabendo que não posso ter essa ligação absoluta, abandonar os meus filhos, dizer aos seus pais que se desenrasquem sozinhos.
E o mesmo quanto à vocação…
Sim, o problema é que também não pretendo sacrificar a minha vocação. Trata-se mesmo de saber como é que eu posso, como mulher – e os homens podem também confrontar-se com este problema -, como é que eu posso, enquanto mulher cineasta, encontrar um equilíbrio e não me tornar esquizofrénica entre o carácter absoluto da vocação e o amor, igualmente absoluto, que sinto pelos meus filhos e pela minha família. Penso que eram questões que não atormentavam Bergman. [risos] Penso que ele se colocava outras questões igualmente apaixonantes, mas não esta. E por isso pensei que seria interessante falar disso. São, justamente, questões interessantes e, no fundo, universais, que Bergman não se colocava, porque não tinha necessidade disso, podia deixar que as mães dos seus filhos cuidassem deles, enquanto ele fazia os seus filmes. Mas talvez ele tenha passado ao lado de qualquer coisa igualmente, talvez exista algo a explorar que não tenha sido ainda explorado.
No filme, Chris diz, a dado momento, “Os filmes podem ser tristes, duros, violentos. Mas no fim fazem bem.” Como espectadora, sinto que isso é verdade. Do lado do realizador, isso também é verdade?
Sim, claro!
Disse há pouco que a experiência de filmagem de Bergman Island tinha sido positiva.
Sim, Bergman Island não é um filme triste. Há filmes que são realmente tristes, mas que nos fazem bem, podemos experimentar um prazer catártico, chorar. Era o que eu explicava à minha filha, porque ela tem doze anos e não suporta a tristeza, sentir tristeza no cinema. Ela rejeita totalmente os filmes que acabam mal, penso que lhe provocam medo. Quer apenas ver filmes que lhe façam bem. E é paradoxal, porque ela viu filmes que acabavam mal e que ela adorou, mas ficava zangada comigo, furiosa, mesmo anos depois ainda falava disso. E é um medo. Podemos perguntar, a tristeza serve para quê? Podemos sentir prazer e sabemos que há filmes comerciais que têm sucesso porque fazem chorar de forma bastante mecânica. Mas o cinema de Bergman é ainda outra coisa. É verdade que, alguns dos seus filmes nos fazem mal sem nos fazer bem. [risos] Enfim, acabam por fazer-nos bem, mas é preciso mais tempo para percebermos por que razão fazem bem. Viskningar och rop (Lágrimas e Suspiros) será um filme que não quererei ver dez vezes.
As suas personagens parecem ter, no entanto, conquistado um direito à tristeza. É-lhes dado o tempo para o seu luto. Respeitar esse direito a ser triste é uma mensagem poderosa, nos dias que correm? Porque parece existir actualmente uma pressão constante para a felicidade permanente.
Não sei se será tanto um direito à tristeza ou antes uma melancolia. Desde os meus primeiros filmes, procurei representar personagens que têm uma certa melancolia e é algo que se tornou uma espécie de resistência, enquanto cineasta, continuar, ainda hoje, a representar, a defender uma certa melancolia. Quer-se que os filmes sejam vingativos, aceita-se que os filmes sejam tristes, mas aí terão que ser muito explícitos, muito claros. A melancolia, que é uma coisa mais subtil, mais interior, que pode ser uma coisa muito reservada, não é necessariamente o que mais agrada ao público, é algo que pode amedrontar. Mas, para mim, não é propriamente uma escolha, penso que represento aquelas personagens porque é uma coisa que me assombra e tento ser o mais honesta, o mais sincera possível relativamente às coisas que me animam. Tento não fazer batota quanto aos sentimentos que me animam. Mas senti, por vezes, uma certa rejeição das personagens masculinas dos meus filmes. As minhas personagens femininas são, frequentemente, mais facilmente aceites.
Mais fortes, também?
Creio que é justamente porque são mais fortes. As minhas personagens femininas, mesmo que tenham tristeza, vão em frente, lutam. Não sei porquê, não é uma escolha. Mas as minhas personagens masculinas, na essência, não sei se são mais frágeis, mas são mais autodestrutivas. No meu primeiro filme, Tout est pardonné (2007), ele morre, no segundo também, em Eden (Éden, 2014) ele safa-se, mas é muito ferido pela vida, há uma tristeza muito forte na personagem principal de Eden. E em Maya (2018) ele é muito melancólico e existe, até ao fim, uma tristeza muito forte. As minhas personagens femininas têm tristeza, são melancólicas, mas há também uma espécie de força vital, elas sobrevivem. Não é algo que eu tenha propriamente decidido. Mas reparei nisso muitas vezes, quando o filme está concluído e mesmo antes de terminado o filme, quando vamos às comissões para tentar obter financiamento, os argumentos dos meus filmes, quando se trata de homens, nunca passam. [risos] Quando somos mulheres, é mais fácil representar filmes com mulheres, são aceites mais facilmente. Notei que os meus argumentos sobre mulheres passam com muito mais facilidade e tenho muito mais dificuldade em conseguir impor os meus filmes com personagens masculinas nos papéis principais.
Tenho para si uma breve citação de Eric Rohmer:
“Ce que je « dis », je ne le dis pas avec des mots. Je ne le dis pas non plus avec des images, […]. Au fond, je ne dis pas, je montre. Je montre des gens qui agissent et parlent. C’est tout ce que je sais faire ; mais là est mon vrai propos.“
De onde vem a citação?
Está no livro Le goût de la beauté, que reúne alguns dos seus textos.
É óptima!
Ao ver os seus filmes, sinto que também prefere mostrar. Isto é verdade?
Sim, acho que é aquilo que me define verdadeiramente. É engraçado que Rohmer tenha dito isso, porque é um cineasta da palavra. É claro que tudo se desenrola no invisível e não apenas na superfície das palavras… mas não sabia que tinha dito isso. Para mim, isso é ainda mais evidente. As minhas personagens são muito menos faladoras do que as personagens dos filmes de Rohmer. Há cenas em que há muita conversa, mas estas cenas raramente falam frontalmente dos sentimentos que estão em causa. Quando as minhas personagens falam muito numa cena, falam muitas vezes de outra coisa, não daquilo que está realmente a acontecer. E, na verdade, há muito poucas cenas em que aquilo que se passa verdadeiramente seja dito de forma explícita, se vir Bergman Island, há cenas em que se fala muito, mas são cenas em que se fala de Bergman, de sítios… Há apenas duas ou três cenas em que se fale de sentimentos. E, na verdade, é algo que creio definir o meu estilo, os meus filmes, a tentativa de dizer as coisas através da mise en scène, dos planos, o que não é dito, o não-dito, o fora de campo. É algo de que sempre gostei, algo que sempre procurei no cinema, sempre pensei que dessa forma era possível encontrar algo de mais profundo, uma verdade. Principalmente numa época em que tudo se tornou tão explícito, em que o cinema se tornou tão literal, em que os argumentos têm tendência a sublinhar as intenções e a levar o espectador pela mão.
Eu sempre preferi considerar o espectador como alguém inteligente, que poderia perceber muitas coisas sem que seja necessário explicar-lhe tudo, e é algo que frequentemente me incomoda no cinema por considerar os filmes pesados. E acho que é também esta busca por uma forma de leveza – quando digo leveza, não é no sentido de comédia, mas no sentido de não mostrar as intenções permanentemente, ou seja, é o estilo. Portanto, uma leveza do estilo, uma transparência de estilo, e é esta procura que me leva a não estar no explícito dos sentimentos.
Fazendo apelo ao seu passado como crítica de cinema, gostaria de fazer-lhe duas derradeiras perguntas. Em primeiro lugar, esse é um lado da prática do cinema de que sente falta? Em segundo lugar, tem acompanhado a história mais recente do cinema francês? Como avalia o actual momento do cinema francês?
É difícil responder a isso de forma breve, são questões vastas. Se a crítica me faz falta? Não, de todo, porque não guardo uma boa memória dessa época. Sentia muita dificuldade em escrever, senti-me sempre mais à vontade na prática do cinema. Aprendi muito, ajudou-me muito, mas não sinto um grande orgulho no que escrevi, não me sentia muito realizada enquanto crítica de cinema. E não estava num meio que fosse propriamente muito acolhedor. [risos] Não é uma memória muito boa, mas aprendi.
Quanto ao cinema francês, acompanho-o, claro, sinto-me bastante inquieta pelo público, não tanto pelo cinema francês, porque há ainda assim uma grande variedade, uma grande riqueza no cinema francês. Não gosto de tudo, longe disso, mas o que realmente me inquieta é o sentimento de que, passada a pandemia, as pessoas parecerem ter dificuldade em regressar às salas de cinema, que há uma falta de curiosidade, pelo cinema, pelos autores, e é isso que é bastante angustiante. Muita gente anuncia, há anos, a morte do cinema, nunca acreditei nisso e não quero acreditar, mas é verdade que nunca tive tanto medo como nestes últimos meses, face à situação em França, de ver o cinema de autor desaparecer. Não queria terminar com esta nota tão triste… Pode cortar, se quiser. [risos]