De entre as muitas coisas esdrúxulas que Michel (Jean-Paul Belmondo) diz a Patricia (Jean Seberg) em À bout de souffle (O Acossado, 1960), a mais bela será “quando estás assustada ou surpreendida ou as duas coisas ao mesmo tempo, há um brilho nos teus olhos e é por causa desse brilho que quero dormir contigo”.
Michel não é por certo a personagem mais merecedora da nossa consideração. O seu carácter corrupto, a indiferença relativamente à vida dos outros, a sua desonestidade e mau uso do dinheiro, o modo como lida com a mulher por quem diz estar apaixonado, todos estes elementos levam À bout de souffle a causar em alguns espectadores uma espécie de repulsa – amigos que se esqueceram do velho dito sobre a qualidade moral de um herói e da sua história serem quase sempre inversamente proporcionais. Aqui, interessa-me sobretudo que o carácter insaciável e indisciplinado do protagonista tenha de alguma forma correspondente na forma do filme, que é, no contexto da nouvelle vague, exemplo paradigmático de ruptura com a continuidade clássica. Não admira, pois, que António Reis abordasse este filme nas suas aulas, ele de quem Alberto Seixas Santos disse que “não tinha simpatia em particular pela narrativa clássica e achava-a completamente ultrapassada”[1], e que via, como José Bogalheiro lembra num texto de homenagem ao professor, a continuidade como “um alvo a abater”[2].
Segundo a história da produção contada por Jean-Luc Godard, a necessidade de reduzir violentamente a primeira versão, que tinha mais de duas horas, conduziu à natureza elíptica da montagem, um exercício de excisão e redução extremo, operado através de uma profusão de jump-cuts que tentam conter À bout de souffle no menor espaço e tempo possível, legitimando as conjecturas das suas personagens, que constantemente brincam com a diluição do tempo – “os franceses dizem sempre um segundo e isso quer dizer cinco minutos e oito segundos ou oito dias são a mesma coisa”. Viver muito em pouco tempo poderia ser a divisa do filme, construído com a indisciplina, ainda virtuosa, do princípio da vida.
Gerado nos fumos do noir americano, Michel existe freneticamente, indiferente ao perigo, submerso na energia violenta da juventude, uma força desmedida, inconsequente, destinada a apagar-se em pouco tempo, porque febres assim não podem durar muito: ou se extinguem ou consomem quem as acolhe. Morrer de uma assentada será para ele melhor do que um lento definhar. O rapaz não tem medo da morte e não tem medo do medo: como diz a Patricia, entre o sofrimento e o nada, escolhe o nada, porque, explica, o sofrimento significa um compromisso, leia-se uma forma de entremeio que separa ter tudo de nada ter.
O medo sob a aparência de cobardia, que terá no final consequências maiores, está nos antípodas da temeridade que caracteriza Michel. O temor de envelhecer sentido por Patricia parece reconfigurado no brilho que ele entrevê nos olhos dela quando está assustada ou surpreendida, um lampejo de invencibilidade congénere da força vital que move o rapaz, e que por isso o atrai. Michel só sabe existir no presente, no momento exacto em que se cai para o futuro (“O que é um horóscopo? O horóscopo é o futuro. Gostava de saber o que acontece no futuro. Tu não”), levado pelo movimento inelutável que puxa para a queda tudo o que vive – tornar-se imortal e depois morrer, ambição teorizada por Parvulesco, personagem do filme, e vivida por Michel, que persegue a imortalidade dentro dos carros, vertigem que faz ver adiante, como se a velocidade permitisse ultrapassar o tempo e desafiar a morte antes de a atingir.
Lembramo-nos das passagens entre esgares que Michel ensina a Patricia, série de saltos que só uma lógica ou extremamente simples ou extremamente apurada pode justificar, saltos tão trapalhões e formidáveis quanto os jump-cuts de Jean-Luc.
Esta imortalidade provisória é parecida com a obstinação por Patricia, que torna o desejo de dormir com ela uma evidência do amor: “Porque é que vieste aqui, Michel? Porque quero dormir contigo outra vez. Não me parece que seja uma razão. – É, quer dizer que te amo.” Amar não é aqui uma abstracção, mas antes algo que precisa de ser constantemente tornado presente, material, como se só a presença pudesse confirmar o que existe afinal – até o sono é tornado triste porque “obriga as pessoas a separarem-se”. Como Michel e Patricia dizem um ao outro em diferentes ocasiões, “queria voltar a ver-te para saber se gostava de te voltar a ver ou disse-lhe olá para ter a certeza de que não gosto dele”.
No texto mais interessante sobre Trás-os-Montes (1976) que se escreveu até hoje, Serge Daney[3] diz que o tema daquela obra (mas também a sua matéria) é o afastamento, “no duplo sentido de estar afastado (exílio) e do próprio ato de afastar (perder de vista, depois esquecer)”, sentido este que ecoa a necessidade e a possibilidade, no filme de Godard, de a visão firmar a existência. Falando sobre o “estatuto – a qualidade de ser – daquilo que sai de campo”, Daney coloca uma questão que podia perfeitamente ser uma das interpelações mútuas de Patricia e Michel: “e se voltares [do off], o que é que me prova que continuas a ser tu?”.
Todo o filme se joga em diferentes formas, mais ou menos imperfeitas, de transição: lembramo-nos das passagens entre esgares que Michel ensina a Patricia, série de saltos que só uma lógica ou extremamente simples ou extremamente apurada pode justificar, saltos tão trapalhões e formidáveis quanto os jump-cuts de Jean-Luc, que se tornam uma espécie de código entre as duas personagens, na vida e na morte, os dois termos entre os quais se descreve a mais inexplicável das passagens – como é que uma coisa se transforma noutra coisa?
Como Reis diz numa entrevista a Daney e Jean-Pierre Oudart[4], o cinema é uma questão de vida ou morte, ele que, nas palavras de Bogalheiro, chegou “à escola (…) como uma torrente”. Nesse mesmo texto, Bogalheiro insiste na ideia de coisa, verdade, obra a fazer, em vias de se fazer), e lembra que Reis descrevia a aprendizagem da continuidade com o derrogatório epíteto de “Passar-portas”, algo possivelmente parecido ao compromisso que Michel recusa. A certa altura Patricia diz que “se pudesse escavar um buraco e esconder-se nele, para que ninguém a visse, o faria”, ao qual lhe respondem que seria melhor fazer como os elefantes, que “quando estão tristes partem, desaparecem”. Talvez a diferença fundamental entre Patricia e Michel – que, como um elefante, desaparece enorme, horrivelmente visível –, entre a cobardia dela e a temeridade dele, entre a continuidade clássica e uma outra forma de estabelecer relações dependa da maior ou menor radicalidade com que se escolhe desaparecer.
Bibliografia
[1] Moutinho, Anabela e Lobo, Maria Graça (1997). «Entrevista a Alberto Seixas Santos», in Moutinho, Anabela e Lobo, Maria Graça (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, pp. 53-55.
[2] Bogalheiro, José (2020). «Uma torrente chamada vida», in Bogalheiro, José e Guerra, Manuel (ed.), Descasco as imagens e entrego-as na boca – Lições António Reis. Lisboa: Documenta, pp. 133-167.
[3] Daney, Serge – «Loin des Lois». Cahiers du Cinéma, n.º 276 (Maio 1977), pp.42-44.
[4] Daney, Serge e Oudart, Jean Pierre (1977). «Trás-os-Montes, Entretien avec Antonio Reis». Cahiers du Cinéma, n.º 276 (Maio 1977), pp. 37-41.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. À bout de souffle é parte dessa lista.