Consulte: Palatorium do dia 11 de Outubro.
O novo Palatorium, com os acrescentos de Outubro, é preenchido por algumas cartadas importantes, começando pelo mais recente Clint Eastwood, Cry Macho (Cry Macho – A Redenção, 2021), e terminando na Palme D’or Titane (2021) de Julia Ducournau, passando ainda pelo filme-provocação de Radu Jude, Babardeala cu bucluc sau porno balamuc (Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental, 2021), e o regresso de outra velha guarda, depois de Eastwood, Rifkin’s Festival (2020) de Woody Allen – destacamos aqui a crítica de Duarte Mata, talvez das mais entusiastas que pode encontrar relativamente a este filme. France (2021) de Bruno Dumond também é notado. O grande filme da temporada, como se vê pela fartura de palas, é A Metamorfose dos Pássaros (2020) de Catarina Vasconcelos. Em conclusão, incluímos os comprimidos de No Time to Die (007 – Sem Tempo Para Morrer, 2021) de Cary Fukunaga, por Ricardo Gross, Ammonite (2020) de Francis Lee, e Fátima (2020) de Marco Pontecorvo, ambos por Duarte Mata, e La daronne (Agente Haxe, 2020) de Jean-Paul Salomé, por Daniela Rôla.
Acrescentaram-se, entretanto, comprimidos de Nuevo Orden (Nova Ordem, 2020) de Michel Franco e Worth (Valor da Vida, 2020) de Sara Colangelo, por João Araújo. E ainda Passion Simple (2020) de Danielle Arbid, por Ricardo Gross.
Aproveitamos este post para dar as boas vindas à nossa nova crítica “Em Sala”, Ana Cabral Martins, e dizer “até já!” ao Carlos Natálio, que continua a colaborar noutras rubricas do nosso site, para lá da edição.
Aquando da publicação deste curto texto, serão poucos os leitores que desconhecem o final do 25.º filme da série James Bond, onde ao longo das suas quase três horas de dura acção paira uma sensação de despedida, que se anunciava já com a notícia de que Daniel Craig não voltaria a estar ao serviço de Sua Majestade. Por respeito a essa minoria, não revelaremos como o filme termina, apontando momentaneamente as baterias para o tom mais sentimental desta aventura, que se liga ao facto de no filme se inscrever uma história de amor que humaniza a figura de 007 até fazer dele um possível homem de família, em vez da tradicional imagem do sedutor, ou de um sedutor enamorado.
Em Casino Royale (007: Casino Royale, 2006) de Martin Campbell tínhamos experimentado algo de diferente na série. Bond iria conhecer Vesper Lynd (Eva Green), a versão mulher de sonho para alguém que se habituara a fazer @s outr@s sonhar, e a ligação de ambos terminaria num abismo de romantismo e pesadelo titânico (de Titanic e não de titânio). Todos os filmes da série com Daniel Craig continuaram a descascar a psicologia de James Bond para lá da estampa física muito século XXI do seu herói. Existe uma continuidade narrativa e de personagens que se estende até este No Time to Die, e a importante sugestão da domesticidade de Bond por via da reforma e do amor de Madeleine (Léa Seydoux).
Fazem-se todas as despedidas, fecham-se o ciclo menor (o dos 5 filmes) e o maior (o dos 25), e sobra a sensação melancólica de termos assistido a um Bond demasiado consciente da sua licença para nos dizer adeus.
Ricardo Gross, 11 de Outubro
Convenhamos que é, realmente, muito agradável ver Kate Winslet em cenas gráficas de sexo lésbico. Mas (e ao contrário do que o rebarbado Kechiche pareça achar sempre que pega numa câmara) não basta haver bom chavascal para ter um bom filme. Apesar das cenas fogosas que contrastam com a restante temperatura álgida dos outros momentos, Ammonite (2020) está mais perto de ser um dos fósseis frágeis – inanimado, frio, petrificado – descobertos pela sua protagonista do que um objecto cinematográfico robusto – aceso, acalorado, vivo. Todas as personagens estão excessivamente apagadas (tal é o modo supercilioso como interagem e mantém a sua postura social), o argumento fica-se pelas superfícies, o ritmo é de uma letargia contra-producente, e a mise en scène limita-se ao cómodo, conveniente e ilustrativo, tudo naquele estilo ocioso e já tão mastigado feito de câmara handheld em iluminação naturalista que é a chapa 5 do actual cinema europeu.
Poderá ser motivo de gáudio a uma série de movimentos (neo-/pós-/pseudo-)feministas actuais na forma como retrata o desejo feminino numa época patriarcal repressora. Mas esse filme já foi feito. Chamou-se Portrait de la jeune fille en feu (Retrato de uma Rapariga em Chamas, 2019) e tem tudo o que este seu primo pobre britânico não tem: seres humanos (e não peças de museu), argumento incansável e intenso, ritmo de musicalidade envolvente, e uma realização genuinamente determinada em elevar o filme para lá da sua eventual relevância sociológica. O que se salva da obra de Francis Lee, então? A curiosa glacialidade expressiva de Kate Winslet e um vídeo de 3 minutos para rever em noites solitárias (já disponível no AZNude). É pouco para quem gosta de cinema? É a vida…
Duarte Mata, 11 de Outubro
Cara Joana Ribeiro,
Não acredito no milagre do Sol, mas acredito no milagre que é o seu rosto. Foi por ele que, apesar das bolas pretas que caíram em catadupa sobre Fátima (2020), me sujeitei ao insípido pudim euro-americano que agora estreia. Onde é possível arranjar força para aguentar a falta de espessura dramática das personagens e excesso de proselitismo católico de que o filme é feito? Onde se pode alcançar vontade para não sair da sala ao ver travellings de pretensões deíficas como aqueles planos subjectivos de drone que representam Nossa Senhora a subir aos céus? E onde está a fonte de resistência para tanto cliché, tanto simplicismo, tanta santimónia que fazem suspeitar que as fontes de financiamento desta obra não terão provindo de uma parceria oficiosa entre o Santuário de Fátima e a IURD?
A resposta a cada uma destas questões está na sua face, Joana. Falta-me o conhecimento vocabular para descrever a fotogenia excelsa que o seu sorriso penetrante acarreta. Escasseia-me a destreza estilística para explicar a incandescência sublime que o seu olhar inocente provoca. Escapa-me a capacidade retórica para articular todo o êxtase seráfico que a sua beleza singular espoleta. Não é de admirar que a tenham escolhido como Virgem Maria, pois não conheço fisionomia capaz de representar melhor a pureza inefável, misteriosa e transcendente do Sagrado.
Se algum dia estiver interessada em encontrar-se com um rapaz de talento escasso, físico adelgaçado, voz meio-efeminada, mas de coração dedicado e honesto, pode-me contactar através do email duartelovesjoana@gmail.com. Até lá, fico a observá-la pelo ecrã branco da sala escura, na esperança sincera de que lhe cheguem projectos melhores e mais dignos da sua presença do que este que me levou a escrever-lhe. E, caso duvide dos meus sentimentos, permita-me colocar-lhe a seguinte questão: se não é amor suportar por alguém as duas horas aflitivas de Fátima, então o que é o amor?
Atenciosamente seu,
Duarte Mata, 11 de Outubro
Em La daronne (Agente Haxe, 2020), de Jean-Paul Salomé, Isabelle Huppert é Patience Portefeux, uma tradutora que trabalha para a polícia francesa, colaborando na investigação de redes de tráfico de droga. A profissão de Patience não será facto despiciendo neste que é, afinal, um filme sobre questões de linguagem. Não apenas as questões de linguagem que decorrem das diferentes origens geográficas daqueles que habitam o mundo de Patience, mas também a linguagem do dinheiro (money talks!) – que quebra a falta de comunicação entre ela e a administradora de condomínio chinesa, Colette (cabendo aqui referir que e o que se passa em La Daronne com os nomes das personagens, entre o humor e a ironia, parece próprio de um filme saído da pena de Preston Sturges) -, ou a linguagem do crime, que a simpática e angelical Patience fala incrivelmente bem, deixando mesmo boquiaberto o seu namorado polícia, perante a calma total que ela demonstra ao subtrair um brinquedo numa loja de museu. Ou ainda uma certa linguagem feminina, que constrói o elo de ligação entre Patience, Colette e Kadidja.
Isabelle Huppert parece divertir-se tremendamente neste jogo de transformação dentro do próprio filme, encarnando uma espécie de Tootsie que, conhecendo bem os meandros do sistema (um jogo de polícias e ladrões, feito de estratagemas e de ensaios de fuga), é capaz de nele se infiltrar para o fazer soçobrar a partir do seu interior. O que resulta deste delírio, de toda a inebriação do dinheiro que parece jorrar inesgotavelmente é, todavia, bastante terra-a-terra – as suas prioridades residem em pagar o lar (caríssimo, aliás) onde a mãe reside, saldar as dívidas de condomínio, beber uma garrafa de bom champagne. E Patience vai, entretanto, transitando do mundo da criminalidade fácil, mais suja, menos inteligente, para a esfera de uma criminalidade sofisticada – onde o preço de venda do seu apartamento é falseado em ordem a dissimular os seus ganhos ilícitos. Quanto às possíveis vítimas, vão-se tornando uma abstracção cada vez maior. Fica apenas o dinheiro – e umas quantas caixas de biscoitos de laranja.
Daniela Rôla, 11 de Outubro
Devo confessar a minha total falta de entusiasmo pelos filmes de 007 pós-Casino Royale (2006). Entrei em Quantum of Solace (2008) convencido de que ia ver o 22.º filme de James Bond, para apenas me deparar com o que era o 4.º volume de Jason Bourne (bastava olhar para as cenas de acção, da câmara tremida à montagem hiperactiva), com um Bond taciturno e quase agelasta, e onde a Bond Girl já nem era convidada a compartilhar do leito do guerreiro (e logo a Kurylenko, yeah right, depois digam que estes filmes eram mais “realistas”). Mas o maior choque foi com Skyfall (2012), onde já não havia diferença entre sair de um filme de 007 e de um Batman de Christopher Nolan: eram as pretensões metafísicas do argumento, era a chatíssima sisudez e seriedade com que tudo era encarado, era a densidade psicológica e emotiva rebuscada, era a psicanálise de pacotilha com pozinhos de existencialismo magoado. Desvelava-se a infância do espião mais famoso do mundo – orfã e passada numa mansão gigante a ser criado pelo caseiro após a morte dos pais – e era o suficiente para levantar a infeliz suspeita de que a saga estava a tornar-se um rip-off da trilogia do Cavaleiro das Trevas. Como podia uma saga dispendiosa, e que corria o risco de passar por antiquada pelo seu meio-século de existência, ainda sobreviver financeiramente com uma audiência que só adere em massa aos filmes de super-heróis? A resposta encontrada foi a de transformar Bond num deles, e o resultado nas bilheteiras de Skyfall provou que tinha sido a estratégia economicamente acertada. Spectre (2015) limitou-se a prolongá-la.
Dito isto, No Time to Die (007: Sem Tempo Para Morrer, 2021) começou por surgir-me como uma agradável surpresa pela forma como parecia reencontrar o que há muito havia desaparecido do agente do MI6: o sentido de humor. Olhemos para a primeira metade. Se excluirmos tudo o que antecede os créditos iniciais (do prólogo trágico à lua-de-mel terminal), é aí que o filme é mais forte porque é quando é mais fiel ao espírito de Bond: há charme, há sedução, há espirituosidade. Que dizer da química explosiva entre a inadjectivável Ana de Armas e Craig na sequência foliadora de Cuba? Onde é que há um equivalente, nos filmes de Sam Mendes, para aquele “Não era a primeira coisa que esperava que tirasse.” quando a mulher com quem Bond pensa ir ter relações remove uma peruca? Este é o 007 de que gosto, o mais ligeiro, o mais sexy, o mais engraçado, o mais bondiano. É, por isso, uma pena que a segunda metade decida retornar ao tom dramático e carregado dos filmes anteriores (é ver Seydoux a chorar que nem uma Madeleine arrependida), fazendo Bond um homem de ambições conjugais e sentimentos familiares, acabando-se o espião namoradeiro e de tiradas chistosas, regressando os dramas pessoais mal explorados que passam a tantos como espessura humana, tudo isto a levar a um desfecho que é [spoiler alert!] derivativo do de The Dark Knight Rises (O Cavaleiro das Trevas Renasce, 2012) no modo como o herói aceita ser sacrificialmente rebentado em nome do bem-estar colectivo.
Por isso, em verdade, em verdade vos digo: é inútil lamentar que a saga tenha acabado quando ela terminou há já alguns anos. Porque o 007 de Craig, pelo menos a partir de certa altura, pode ter sido várias coisas – um Avenger marvelesco britânico, um Batman nolaniano sem a voz rouca, um super-herói com smoking no lugar da licra – mas não foi, com toda a certeza, Bond, James Bond.
Duarte Mata, 18 de Outubro
O texto do Ricardo Vieira Lisboa sobre este filme é de leitura obrigatória, pela examinação do que será um cinema de abjecção, e pela forma como esse conceito se poderá aplicar ao filme de Michel Franco. Concordando com uma grande parte do que é enunciado por esse texto, e partilhando igualmente de uma atração por esse cinema, permitam-me partilhar alguns pontos de diferenciação em relação à leitura do filme – não pontos de uma certeza absoluta, porque as dúvidas em relação ao filme são muitas (o que, se por vezes não abona muito em relação ao filme, neste caso parece-me ser uma discussão que o filme convida, e isso é raro). Não encontro – como o Ricardo – no filme uma impassividade em relação ao que mostra, e muito menos um louvor à estagnação, mas sim uma espécie de constatação de uma realidade, mesmo que essa constatação seja pessimista. O filme retrata um acto de insurreição da população desfavorecida contra o poder instalado e a sua elite, uma revolta que acaba por resultar numa contra-reacção violenta pelas autoridades, com o exército a assumir o vazio de poder para instalar um regime, uma “nova ordem”, ainda mais opressiva que a anterior, com a instalação de recolheres obrigatórios e senhas para trabalho. Ora, se isto pode ser lido como um aviso de que o melhor é deixar as coisas como estão, porque qualquer tentativa de abalar o sistema irá resultar numa repressão ainda mais violenta (mais explícita), também pode ser lido como um lamento pessimista, a tal constatação de que a estrutura instalada pela classe dominante (económica) e interesses (económicos) é como uma doença que é impossível curar, porque a desigualdade instalada leva a um exacerbar do individualismo, do ressentimento em relação a todos (e não apenas contra quem tem o poder), de um selvático cada um por si, o que condena qualquer movimento com aspirações fraternais – quando o organismo que é suposto ser um garante da defesa da população é composto por unidades (soldados) que são igualmente exploradas e abusadas pelo sistema vigente, e comandadas por um elite que procura a apenas a sua auto-defesa e manutenção do statu quo, qualquer vazio de poder levará a uma forte reacção desse derradeiro controlo de poder – que enquanto não se antever outra solução para abalar o sistema, o individualismo parece garantir a sentença da impossibilidade do fim do capitalismo (como uma infecção que incapacita a população) – será esse aviso o objectivo de Franco, ou estamos a ser demasiado generosos para com o realizador?
Franco parece consciente do jogo perigoso que aqui se predispõe a jogar (pela possibilidade de ser lido de outra forma, de ser mal interpretado), desde logo por jogar com uma série de conceitos – como a bondosa e ingénua (e rica) rapariga loira que quer ajudar os pobres dos seus empregados e que acaba vítima e também como guia (espécie de Capuchinho Vermelho) da narrativa do filme, porque a tragédia sobre este tipo de vítimas desperta sempre mais fascínio (interesse) mediático. Se o cinema de abjecção joga com o desconforto do espectador para criar alguma reacção-choque, será que as imagens de violência e tortura contra os ricos que estão agora despojados e reclusos causam realmente desconforto? Será que mais de vinte anos depois de Funny Games (Brincadeiras Perigosas, 1997) de Michael Haneke, estas imagens de violência ainda têm o mesmo efeito, ou será que Franco, através de um olhar clínico e dessensibilizado e a forma fria como filma algumas das cenas violentas, chama a atenção para a própria dessensibilização do espectador perante a normalidade destas imagens violentas no nosso dia-a-dia, usadas como entretenimento pelo sistema capitalista vigente que se procura colocar em causa? Levando esse raciocínio ainda mais longe, será que a falta de empatia pelo próximo que é exponenciada por um sistema que fomenta o individualismo, é espelhada na mesma falta de empatia que desagua na dessensibilização perante imagens de sofrimento de outros? Em defesa de Franco e da sua visão pessimista da humanidade, só através da reflexão e constatação do problema será possível entrever uma outra possibilidade, um outro caminho.
João Araújo, 18 de Outubro
Worth faz parte de uma espécie em extinção no cinema americano mainstream: os filmes de “média-gama”, entre as produções apressadas para estrearem nas plataformas de streaming, que se sucedem umas às outras sem deixar grande rasto, e as produções de larga escala, com pretensões grandiosas e dominadas por efeitos especiais (e que se confundem igualmente umas às outras); é por vezes neste campo intermédio que acabam por surgir algumas surpresas, e onde podemos encaixar este segundo filme de Sara Colangelo [depois do curioso The Kindergarten Teacher (A Educadora de Infância, 2018), remake do filme de Nadav Lapid], e que, pelo seu âmbito político e retrato de um caso real, podemos comparar ao igualmente sóbrio e competente Dark Waters (Dark Waters – Verdade Envenenada, 2019) de Todd Haynes. O filme aborda a criação de um fundo de compensação aos familiares das vítimas do 11 de Setembro, e do papel central do homem encarregado dessa tarefa, o advogado Ken Feinberg, que irá tentar convencer esses familiares a aceitarem a compensação, ao invés de uma longa e custosa batalha judicial. A tarefa ingrata de Feinberg passa por responder à questão incómoda de encontrar um montante monetário para definir o valor da vida de cada uma das vítimas, de forma a que seja aceite pela maioria dos familiares – deverão todas receber um valor igual, ou será mais justo fazer essa valorização com base nos rendimentos de cada um?
O filme acaba por não se preocupar muito com a questão ética da mercantilização do valor da vida – na sociedade americana parece ser algo comum – cedendo antes a sua atenção a um sentimentalismo maior em relação às vidas perdidas e aos que ficaram, limitando o alcance do filme. Mesmo assim, nunca é condescendente ou paternalista com o espectador, como por exemplo na sequência que anuncia o 11 de Setembro, e acima de tudo consegue criar admiráveis momentos de empatia com as suas personagens, particularmente através do retrato do advogado Feinberg, uma impressionante performance de Michael Keaton (uma das melhores da sua carreira, secundado pelos sempre competentes Amy Ryan e Stanley Tucci), que só por si transforma o filme em algo bem mais complexo. Apesar das tais limitações sentimentalistas e tentações patriotas e de simplificação, o filme respeita o seu maior atributo, dando-lhe o espaço que necessita – uma história que merece ser conhecida.
João Araújo, 18 de Outubro
Annie Ernaux não precisou dos holofotes do Nobel para que os seus livros fossem adaptados ao cinema. Enquanto aguardamos a estreia de L’événement (2021) de Audrey Diwan (que recebeu o prémio máximo na última edição do Festival de Veneza), chega com um ano de atraso Passion simple (Uma Paixão Simples, 2020), que adapta a novela com o mesmo título, este ano reeditada entre nós pela Livros do Brasil. A obra de Ernaux, como menos de 100 páginas, é um relato na primeira pessoa que tal como outros livros desta autora, somos tentados a ler como uma narrativa autobiográfica. O principal desafio da realizadora Danielle Arbid terá sido o de transportar para a linguagem feita de imagens, esta literatura curta de acção e que se expande pelo estado psicológico e emocional de uma mulher que recorda a dependência motivada por uma relação de meses com um homem estrangeiro, casado, que com ela se encontrava para terem sexo quando ele queria.
Hélène Auguste (Laetitia Dosch), professora universitária de literatura, divorciada e com um filho adolescente, inverte as prioridades da sua vida, para estar sempre disponível para Aleksandr Svitsin (o bailarino ucraniano Sergei Polunin, cuja notoriedade também se liga às suas muitas tatuagens visíveis no filme), funcionário da embaixada russa em Paris, que veste sempre de negro e conduz o seu Audi a alta velocidade. O que Arbid mantém da novela para o filme é a natureza abstracta desta mulher e do seu amante, nunca tomando a liberdade de os desenvolver para que se tornem personagens. No livro o leitor criava personagens por si próprio, e isto empobrece o filme de Arbid que genericamente alinha cenas de sexo de uma explicitude que não transgride, com os momentos de espera e dúvida da professora, ilustrados com canções de um cardápio culto e heterogéneo (Suicide, Ingrid Caven, Helen Merrill e Stan Getz, Leonard Cohen).
Música a mais e com um uso demonstrativo, muito sexo sem nada de mais, talvez não fosse simples fazer melhor dada a natureza do material literário a adaptar, mas Passion Simple fica-se por uma mediania sem rasgo, furos abaixo da referência que mais rapidamente ocorre para aproximar deste filme, o Intimacy (Intimidade, 2001) de Patrice Chéreau, mais palpitante de carnes e de ficção.
Ricardo Gross, 24 de Outubro