De que se faz um festival de cinema? Essa é uma das eternas questões que cinéfilos, realizadores, programadores, críticos e demais interessados se fazem amiúde quando lhes cabe escolher onde descobrir um filme (para quem se demora a vê-los) ou onde exibir um filme (para quem se demora a fazê-los ou a gerir a sua circulação). Um lugar-comum deste debate prende-se com a localização: os melhores festivais tendem a não estar implantados nas capitais dos respetivos países (facto). Outro lugar-comum: para um festival ter sucesso há que ter praia (de mar ou de rio) por perto, e boa comida também é fundamental. Mais um: não ser demasiado grande; os melhores festivais centram-se num número reduzido de salas de cinema, idealmente próximas entre si, permitindo àqueles que o visitam ocupar os espaços do certame de um modo familiar. Ainda: a altura do ano, nem muito no Inverno, nem no pico do Verão – o cinéfilo é uma criatura de humores temperados. Por fim, mas não em último (e este não é um “lugar-comum”, é uma necessidade imperiosa): um festival de cinema faz-se da sua programação.
O galego PlayDoc cumpre tudo isto, em especial o último ponto. Talvez não haja festival que mais aposte na programação (em território português e na orla fronteiriça) do que o PlayDoc, certame onde a competição é reduzida ao mínimo e todo o trabalho se centra nos ciclos retrospetivos. Isto é, a competição costuma apresentar apenas cinco longas-metragens e pouco mais de meia dúzia de curtas (ao que se acrescenta uma secção local, dando destaque à produção galega recente). Tudo, em termos de dimensão e investimento, é vocacionado para os focos dedicados a realizadores vivos (tanto quanto possível presentes em Tuí – vila do outro lado do rio Minho, a fazer olhinhos para Valença). O prospeto do festival abre com longos ensaios sobre estes programas especiais, relegando o cinema contemporâneo para o fim da publicação – não com desprimor, mas com a correção com que se privilegia um ancião sobre um adolescente.
Este ano, as jóias da coroa pertenciam a dois cineastas norte-americanos (tendência costumeira no certame, que já organizou, em anos anteriores, programas dedicados à obra de realizadores como Albert Maysles, Ross McElwee, Peter Emmanuel Goldman, Charles Burnett ou Bruce Weber): o nonagenário Manfred Kirchheimer, documentarista extraordinário, herdeiro direto do grupo Nykino, dos anos 1930, tendo trabalhado com Hans Richter e Jay Leyda; e a “recuperada” realizadora Bette Gordon, dona de uma prática experimental, no início da carreira, mas mais lembrada pela sua estreia na longa-metragem ficção, Variety (1983). Será sobre estas duas retrospetivas, nada (e muito) presas à atualidade que discorrerei os seguintes parágrafos.
Manfred Kirchheimer, o entusiasmo das coisas presentes
Pois bem, do que consegui ver do audacioso programa dedicado a Kirchheimer (a primeira retrospetiva internacional do realizador, e a mais completa até ao momento) sugere-me um cineasta a quem, como alguém pronunciou, cai muito bem o apodo “o melhor documentarista de que nunca ouviste falar”.
Com uma obra esparsa (já que fez a sua vida como operador de câmara para televisão e, mais tarde, como professor), muito focada em questões arquitetónicas e de urbanismo, o seu cinema pode definir-se pelo entusiasmo como que olha o mundo que o rodeia. É, por aí, que melhor se pode – e se deve – entender o seu cinema. Há nos seus filmes um perpétuo maravilhamento pelas construções humanas. Tudo numa perspetiva muito positivista, à americana, sempre encantada com a human ingenuity. A esse respeito, o seu primeiro filme, Colossus on the River (1965), é uma ode à precisão, à engenharia, ao engenho e ao profissionalismo dos responsáveis pela atracagem de um transatlântico. E mesmo quando o retrato se pretende negativo e o filme se apresenta como objeto político de denúncia, como é o caso de Claw: A Fable (1968), sobre a destruição de um bairro nova-iorquino, antecipando-se já o sucessivo processo de gentrificação e uniformização arquitetónica (o realizador odeia a “glass boxes”), resiste no olhar de Kirchheimer uma inocência quase infantil que o impede de encarar a “garra” demolidora com maldade. De certa forma, Claw pode ser uma alegoria urbana do capitalismo como um eterno jogo de legos em que, volta e meia, a criança arrasa todas as suas construções para se poder divertir de novo.
Essa dimensão lúdica, do trabalho do realizador, reencontra-se no seu modo de filmar e montar as imagens que filma (em vários dos seus filmes Kirchheimer assume quase todos os postos técnicos e artísticos), algures entre as sinfonias urbanas do final dos anos 1920, agora em versão um pouco mais distendida, e o caminho para a geometrização abstrata da imagem fotográfica defendida pela Bauhaus. Nesse sentido, há qualquer coisa de fóssil vivo no trabalho deste documentarista (e na sua própria figura), último testemunho de uma certa forma de ver a cidade e de encarar o capitalismo: sempre cheio de esperança e exuberância sensorial.
Só que, à boa maneira americana, essa linhagem “europeia” cruza-se com um certo didatismo pueril à Ken Burns – particularmente evidente na sua última longa metragem, Tall (2004) – intercetado por uma improvável prática autofágica, na gestão dos seus próprios arquivos. Manfred Kirchheimer filmou milhares de horas de película nos idos anos 1960 e 70, aqueles da sua maior genica. Desse extraordinário arquivo vêm resultando múltiplos filmes que regressam aos materiais esquecidos ou descartados e neles descobrem novos interesses (e novos entusiasmos). Sequências cortadas de filmes anteriores juntam-se a outras imagens para compor uma nova obra – caso de Bridge High (1975) – ou os rushes secundários dos seus filmes clássicos recompõem – através da recente digitalização do seu acervo – numa renovada produção em pleno século XXI, estabelecendo linhas de continuidade e de rutura com esses mesmos filmes de origem (vejam-se One More Time e Up the Lazy River, ambos de “2021”).
De qualquer modo, o filme mais “entusiasmante” deste cineasta nova-iorquino (que só filmou uma vez, em toda a sua vida, fora da sua cidade natal) é também aquele que, apesar de tudo, era mais lembrado: Stations of the Elevated (1981) – o documentário seminal sobre o graffiti. Esta sinfonia sobre carris delicia-se com as linhas geométricas criadas pela complexa e densa trama do metropolitano (atualizando a excitação das sinfonias mudas pelo comboio e o motor a vapor, pela comodificação quotidiana do transporte urbano, democrático e acessível), para a partir dela estabelecer tangentes entre as inscrições gráficas da arte urbana (ou da delinquência pictórica) e a imagética dos cartazes e outdoors publicitários. Esse choque, entre uma prática anárquica e outra fundada na institucionalidade e no branding resulta num poema visual que, de certo modo, reduz tudo a um ponto de vista antropológico que parece incapaz de distinguir entre as duas coisas.
Essa espécie de ingenuidade proposicional é o que caracteriza o cinema de Kirchheimer, sempre disponível a ver o mundo com olhos limpos ou, como o referiu numa das apresentações, não é preciso fazer grandes viagens para filmar, há ainda muito para descobrir na nossa própria rua.
Bette Gordon, a radiofonia espacial
Sendo o PlayDoc um festival focado na prática documental, um programa dedicado à obra de Bette Gordon teria que se “ficar” pela primeira fase da sua filmografia. Isto é, incluir as suas co-realizações com James Benning (os filmes do início da carreira de ambos, eles que eram, à época, um casal) e os seus primeiros filmes a solo, já em Nova Iorque, ainda marcados pela prática experimental e underground. A retrospetiva culminou numa sessão memorável de Variety, quando subitamente se altera o tom do cinema de Gordon e este se abre a um entendimento mais clássico da construção narrativa e visual (mas através de um sistema de produção independente e subfinanciado que permite ao filme abrir-se, igualmente, à cidade, fazendo com que a realidade borbulhe nos interstícios da ficção).
Os primeiros três filmes de Gordon, co-realizados com Benning, são Michigan Avenue (1973), i-94 (1974) e The United States of America (1975), sendo que este último é dos três o exercício de maior fôlego da parceria e, também, aquele onde se estabiliza e anuncia, de forma mais declarada, aquilo que viria a ser “o método” Benning (já os primeiros são experiências interessantes com as impressoras óticas que permitiam tanto o hiper-slowmotion como a justaposição, fotograma a fotograma, de imagens de diferentes origens num efeito de flicker, aqui revestido de uma dimensão anti-romântica: um homem e uma mulher que vão ao encontro um do outro sem nunca se reunirem na mesma imagem).
Em The United States of America a câmara é instalada num carro que Gordon e Benning conduzem pelo país do título; o enquadramento é sempre o mesmo, o que mudam são as paisagens exteriores, a luminosidade e a disposição e postura dos dois passageiros. O filme descreve, em sucessivas elipses, a viagem entre as duas costas dos EUA, de Nova Iorque a Los Angeles. O que resulta é um panorama fragmentário de um país, aliás, do interior de um país dividido entre duas costas. Mas se a estratégia, apesar de impressiva na sua simplicidade, é puramente estruturalista (logo, mecânica, matemática e fria) na sua aplicação, o que surpreende é a banda sonora.
Naturalmente The United States of America não terá sido filmado com som direto (essa não era a prática à época). Ainda assim o filme apresenta-se como um coro de sonoridades automóveis, em particular, silêncios, ruídos de carros e, mais que tudo, diferentes estações de rádio que localizam e contextualizam o percurso deste road movie pelos vários estados norte-americanos. E essa relação com o rádio reveste-se de uma qualidade conceptual que se reflete na montagem: há no entendimento do jump-cut uma materialização visual do espectro radiofónico; muda-se de paisagem, de hora do dia e de localidade como quem muda de estação de rádio. Como se o filme fosse, afinal, uma pesquisa pela melodia certa, pelo mood que mais se adequa ao momento; como se a paisagem fosse um compêndio acessível, um catálogo de sensações e de relações com a natureza. E nesse ponto, a banda de frequências radiofónicas liga-se à materialidade da película, também ela contínua, também ela feita de uma sucessão de estações/ fotogramas, que se desenrolam, oferecendo diferentes sonoridades/ visualidades.
Esse entendimento radiofónico (ou musical) da montagem – que não encontro, de forma tão direta, no cinema que Benning viria a fazer depois – revelar-se-á, adiante, noutros filmes de Gordon, nomeadamente na sua primeira realização a solo (e talvez o mais tocante e misterioso dos filmes que dela vi no PlayDoc), Empty Suitcases (1981). Também ele um road movie imóvel, também ele sobre viagens pelos estados dos Estados Unidos, e também ele dono de uma noção da geografia mutante e maleável. Aliás, nesse filme, feito de fragmentos múltiplos e diversos da biografia de uma mulher, ouve-se, a dado momento, uma voz que descreve um relógio cujos ponteiros permitem que se mova o tempo back and forth possibilitando, assim, que a personagem possa estar, “no espaço de segundos”, entre Nova Iorque e Chicago, sem ter que atravessar os quilómetros que separam as duas cidades. Aqui literaliza-se o entendimento da paisagem que já se anunciava, de forma indireta pela montagem (de imagem e de som), em The United States of America.
Mas Empty Suitcases é um políptico, tão intimista quanto cubista, das peripécias do mundo artístico em Nova Iorque no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 (num reflexo do movimento que trouxe à cidade Gordon e Benning – tendo ela ficado, e ele fugido). Essa dimensão de retrato geracional encontra-se, também, nas aparições da amiga Nan Goldin (“our lives overlapped” explicou Bette Gordon na sessão de perguntas e resposta de Variety) e de Vivienne Dick. E, claro, na multiplicidade de materiais e estratégias convocados para o filme (que revelam a multidisciplinaridade das práticas artísticas, da fotografia à moda, da mail art ao cinema, da landscape art à música), onde se joga, de forma lúdica, com a repetição, os ecos e as reverberações de cores, sinais, palavras, ideias e sequências, num torvelinho de recorrências que acabam por construir o pretendido retrato apenas de forma retrospetiva.
Variety, o feminismo cinéfilo ou a cinefilia feminista?
Já Variety simplifica as relações entre os componentes fílmicos (que nos outros filmes se expõem e decompõem diante da câmara, deliciando-se na disjunção das coisas, e encontrando nos intervalos o exercício da subjetividade lúdica do espetador) numa narrativa linear e conduzida por uma atriz. Se é um filme improvável, feito na peugada das experiências anteriores, é também um filme que inaugura o investimento da realizadora na ficção de longa-metragem, que a irá ocupar, uma vez por década, daí em diante (recusando ostensivamente a prática experimental). Por ser um filme charneira, há nele o espírito dos filmes anteriores, só que formatados (ou des-formatados) numa outra linguagem, a do cinema clássico.
Como explicou na sessão de Variety, “quando cheguei a Nova Iorque no início dos anos 1980 estava à procura daquela cidade que conhecia do cinema, dos filmes noir como Pickup on South Street (1953) e The Naked City (1948), só que, subitamente apercebi-me que a cidade era a cores.” O seu desejo era o de fazer cinema noir, na cidade de Nova Iorque nos anos da “sujeira” de uma perspetiva feminista. “O filme surgiu como uma espécie de resposta ao artigo Visual Pleasure and Narrative Cinema, da Laura Mulvey, onde eu tentei provar que era possível fazer um filme em que a mulher fosse sujeito e não objeto”, ou posto de outro modo, Gordon queria “turn the tables on the genre”. “A mera presença de uma mulher em certos espaços é já, em si, subversiva. No filme há vários espaços, reais, da cidade de Nova Iorque, como a lota do peixe, as lojas de revistas porno, o estádio de beisebol dos Yankees ou Wall Street, que são predominantemente masculinos. O filme serviu, até certo ponto, para encontrar formas e narrativas em que uma mulher se pudesse impor neles e os pudesse ocupar.”
Entre presença e inversão de pontos de vista, o filme acaba por se transformar numa reflexão sobre o cinema como forma de voyeurismo. Recorde-se que Variety conta a história de uma jovem artista que, necessitando de um emprego, acaba a trabalhar na bilheteira de um cinema pornográfico na Times Square (deixando-se perturbar pelas imagens e pelos visitantes desse cinema). “Queria fazer um filme sobre a experiência de ver, sobre o prazer de olhar”, sendo que “devolver o olhar [to look back] é algo muito poderoso”. Daí que “muitos planos tenham espelhos, janelas, portas, reflexos. Todas essas soluções procuravam implicar o espetador, fazer dele cúmplice do ato de observar, de salientar a sua dimensão voyeurista”. A escolha do universo do cinema pornográfico relaciona-se com aquilo que é próprio do cinema e de como este filme o desejo: “A pornografia substitui o toque pelo olhar. It keeps you wanting. Não te satisfaz. Agarra-te e intensifica o teu desejo. E isso é também o que faz a narrativa, deixa-te insatisfeito.”
Há, portanto, no classicismo formal de Variety uma dimensão ensaística que faz dele um objeto dialético: um filme que responde, que reage, que confronta a prática de muito do cinema clássico e do noir em particular (pelo menos à luz do que era esse entendimento em 1980). “Havia também um movimento de mulheres conservadoras que lutavam contra a pornografia. A luta delas era uma forma de censura. O meu filme procurou ser uma resposta a esse movimento, que não passava por uma componente censória.” Variety resulta, afinal, de um intenso amor pelo cinema e pelo prazer das imagens (o prazer de olhar para as imagens). Tudo o resto, toda a carga feminista, junta-se-lhe já filtrada pela cinefilia. Daí que Gordon tenha referido um exemplo de um noir que continha em si já a potência que a realizadora queria para a sua protagonista, Phantom Lady (1944), de Robert Siodmak, em que o simples olhar de uma mulher é – muito literalmente – capaz de matar. E, adiante, ainda na mesma sessão, acrescentou que quando descobriu a extraordinária Sandy McLeod, “andava à procura da minha Kim Novak, do Vertigo (1958)”. Ou seja, o olhar feminista e cinéfilo é aquele que abre espaço para o dialogo com o classicismo (e não aquele que o recusa liminarmente). Neste sentido, Bette Gordon é talvez a mais mulveyiana das cineastas americanas da sua geração – o que é, para os mais distraídos, um rasgado elogio.