Restícios de impulsos pulsantes persistem numa infiltração pelas fronteiras do carnal.
Hoje, enquanto fujo para o regresso do banal, penso nas ordens dos deveres do dia, procuro imagens na ordem do (des)conforto familiar. Relembro diálogos simples e evidentes sobre a experiência do cinema enquanto objecto vivido num (certo) tempo, num (certo) espaço. Da matéria da memória próxima, acaricio mentalmente as trocas possíveis nesses felizes encontros fulminantes com o desconhecido. Recordo as palavras que me aproximam da ordem invisível – sempre presente – do destino deste (e de outros) pensamentos.
Hoje, enquanto observo as passagens nebulosas do exterior, penso no ser que está por vir. Dedico o espaço que ocupo, como sempre, aos que estão presentes. Abro a janela deste – e para este – lugar – outrora solitário – de escuta, com o olhar sobre os movimentos que nos unem em mente.
Hoje, olho para trás: (re)encontro-me com o passado de refúgio pandémico. A história é, mais uma vez, simples: numa especialidade marcada pela claustrofobia de tectos de ângulos desfavoráveis, os encantos do universo das possibilidades do imaginário surgiram não só de (longas) caminhadas pelas ruas apagadas de vida, mas também (e acima de tudo) pelo contacto com (esse objecto partilhado e vivido d)o cinema. Uma expansão que atingiu o êxtase no ponto de encontro com Ulrike Ottinger. De uma entre várias propostas de programação semanal do arsenal 3 Berlim, surgiu a estrondosa oportunidade de entrada, após alguns toques no touchpad, num universo de incalculável familiaridade e calor. Com a sua proposta estética, formal e conceptual, sentiu-se um gesto de toque singular no individual que motivou uma sede de procura (quase obsessiva). Deixo aqui, neste lugar de leve (mas emocional) partilha, uma simples referência ao tremendo impacto pessoal de Ticket of No Return (1979), Madame X: An Absolute Ruler (1978), The Image of Dorian Gray in the Yellow Press (1984), Freak Orlando(1981) e Joana of Arc of Mongolia (1989) num tempo de desencanto com o real.
Ticket of no Return (1979) de Ulrike Ottinger Madame X: An Absolute Ruler (1978) de Ulrike Ottinger
Mas exploro aqui o objecto de primeiro contacto de experiência em comunidade, motivado por essa natural vontade de partilha daquilo que nos é próximo e querido, numa temporalidade já de si um pouco distante dos iniciais extremos pandémicos: Superbia (1986).
Superbia (1986) de Ulrike Ottinger
Hoje (re)encontro(-me com) este pedaço da nossa história: dos pecados e vícios que, a par e passo, moldam a nossa vivência. Uma parada de marcha lenta que nos obriga a engolir a podridão elegante mascarada do sistema patriarcal, colonialista, capitalista que habitamos, e que através da repetição dos movimentos em massa mantém a sua influência naquilo que rege as ondas do social. Uma breve e simples exposição da obscuridade inerente ao (suposto) padrão de existência através do exacerbar do carácter teatral forçado dos arquétipos vigentes. Num registo misto de formatos tácteis, somos levados da raiz aos frutos da fatalidade inerente: de um a sete pecados, de um rosto a outro, de um vestido a um uniforme, de um país a outro, de um extremo da fantasia a um plano do real. No espaço de deglutição, as fronteiras desvanecem e a transparência surge como uma pista para a natural intersecção dos universos. No campo da digestão, processamos os caminhos (e)rectos daqueles que prosseguem a manutenção do ridículo das doutrinas do expectável. Expelimos as so(m)bras da rigidez imposta, que em vias de desactivação, mantém insistentemente a sua influência até aos dias de hoje. Cantemos o hino que (res)soa deste passado: gritemos pelo encerramento deste (teatro do) absurdo.
Superbia (1986)
Hoje, enquanto escrevo, agarro-me à esperança de projecção de um primeiro impulso para a entrada nos campos por desbravar de Ulrike. Caminho convosco nesta ausência de pistas absolutas, ressalvando a urgência de percorrer as propostas que ecoarão nas telas familiares da Cinemateca, com o Doclisboa, a partir desta semana. Para partilhar, em comunidade, mais gestos essenciais de (des)construção do (ir)real.
Freak Orlando (1981) de Ulrike Ottinger