Se uma fotografia do futuro incomoda muita gente, várias fotografias do futuro incomodam muito mais. A ideia aplica-se às mil maravilhas à narrativa thrillesca de Time Lapse (Lapso Temporal, 2014), obra que vive quase exclusivamente da brilhante premissa que faz inverter a relação que costumamos manter com o objecto fotográfico. Inclinamo-nos sobre ele, por exemplo enquanto folheamos um velho álbum de fotografias da nossa família, para contemplarmos o passado ou aquilo que as fotografias na sua sucessão, página após página, dizem sobre as nossas origens. Na imagem, ou na sua sucessão, encontramos sempre pistas sobre “como era antes”. E, nesse olhar para trás, não raras vezes nos sentimos interpelados no presente, porque o “como era antes” poderá dar pistas, hoje, sobre um “como serei eu no futuro”. Portanto, nunca este olhar para trás se esgota num passado perfeitamente acondicionado, delimitado ou auto-contido. O que um filme tão dramaticamente pobre ensaia, do ponto de vista teórico, pode ser muito surpreendente: é que a temporalidade fotográfica é, ou pode ser, “transbordante”, misturando passado, presente e futuro, futurando o passado ou datando o futuro ou simplesmente tratando-nos por tu e disparando, à laia de um Alberto João Jardim: fuck you!

Neste filme, a fotografia surge como uma espécie de presente envenenado, artefacto encantado ou amaldiçoado em torno do qual tudo gira, vórtice vicioso. O filme de Bradley King é, no papel, um brilhante tratado sobre a maneira como a fotografia pode, como coisa que se transacciona, que “se leva a jogo” nas relações humanas, “foder com o tempo” – frase referida mais do que uma vez por uma das personagens. Roland Barthes e Susan Sontag, filósofos da fotografia, amariam o produto, no papel. Já o resultado fílmico é tão canhestro quanto sedutor no seu mal disfarçado – propositado? – gosto a série B. Mas vamos por partes.
Começa assim a história: são três amigos ou um demasiado óbvio triângulo amoroso (dois formam um casal, mas o terceiro elemento é o arquetípico bad boy, qual James Franco da loja dos 300, capaz de roubar a rapariga a qualquer momento). Esta troika vai-se, por assim dizendo, transmutando à medida que a narrativa progride. O motor da narrativa é uma gigantesca câmara fotográfica que “cospe” polaroids de assunto recorrente. Por se situar na casa em frente, a misteriosa máquina produz uma (involuntária?) reportagem fotográfica do dia-a-dia da sala de estar onde os três comparsas passam grande parte do tempo. Começa aqui o lado engenhoso desta premissa, produzindo uma espécie de jogo visual, algures entre Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) e Wavelenght (1963), entre a câmara voyeur e a grande janela rectangular que expõe a vida desse trio, como se fossem produtos dispostos numa vitrina. A janela/vitrina é, em si mesma, uma espécie de fotografia pronta a ser materializada. A monstruosa câmara fotográfica aponta a sua mira para aí, para esse décor-mundo, mas não produz fotografias normais, pois cedo os protagonistas vão descobrir que tem a capacidade – não sabemos se é magia branca ou negra – de fotografar o futuro, portanto, “regista” o que ainda não aconteceu naquela sala, sempre à mesma hora. Este é o ponto de partida – de novo, extraordinariamente estimulante – deste thriller sci-fi.
A história vai-se complexificando, e estupidificando do ponto de vista dramatúrgico, quanto mais elementos vão sendo revelados ou acrescentados à intriga. Aliás, a revelação sobre o estado actual do proprietário daquele apartamento – e inventor da referida máquina-fotográfica-do-tempo – é muito rápida e mal amanhada tal como é pouco interessante a intriga sobre o que as personagens vão fazer com tamanha descoberta. Para mais, nunca acreditamos naquilo que liga os três jovens entre si – tudo acaba por ser devorado pelo bad acting aflitivo e dificilmente podemos ignorar a fotografia propriamente do filme, muito lisa, de cores deslavadas e de claridade ofuscante, próxima de uma sitcom. Ao mesmo tempo, agora que penso, pode ser que Bradley King esteja ciente das suas limitações ao nível da produção e esse lado série B, declaradamente VOD, servir, inclusive, para facilmente nos acomodarmos à história e às suas múltiplas peripécias…. Será isso? Será que Time Lapse vale o esforço de ser visto como um desses muito espertos bad movies? Eu penso que pode valer tal esforço. Mas – alerto! – sem grande compromisso.
A possibilidade teórica fica a anos-luz de ser devidamente vertida numa linguagem fílmica igualmente engenhosa e desafiante, mas isso não quer dizer que devemos “deitar fora o bebé com a água do banho”.
Se virmos a coisa por certo prisma, nomeadamente o da filosofia da fotografia, diria que estamos nos antípodas de Memento (2000), filme-tese em que a fotografia, precisamente a polaroid, muito difícil de manipular ou destruir, é usada como essencial ferramenta de reconhecimento, espécie de bússola que permite ao protagonista situar-se na sua própria narrativa – o mesmo podemos dizer acerca do espectador que, mais ou menos desorientado, quiser encontrar-se ou encontrar algo na encruzilhada pós-noir redigida a meias pelos irmãos Christopher e Jonathan Nolan. Todavia, ainda que me pareça injusto reduzir Memento à condição de filme-gimmick, é verdade que Nolan tende para um certo enfatuamento, convertendo boas ideias num showcase de virtuosismo técnico e filosófico – como naquelas típicas TED Talks, há mais “gestos de mãos” do que propriamente lições profundas a debitar. No caso de Time Lapse, parece que vigora uma assumida (será mesmo?) vontade de complicar o que é complexo for the fun of it, transformando, do ponto de vista da construção dramática e da própria estética do filme, as múltiplas equações temporais em choque com o livre arbítrio do trio de protagonistas numa espécie de episódio bem sombrio da série Friends.
O dilema, como digo, não é “coisa pouca”: quererão os três “amigos” – que amizade é esta, afinal, que se revela, se desconstrói no filme, quer dizer, nas fotografias que vão preenchendo a narrativa do filme? – fazer corresponder as suas acções – a condução do seu destino… – àquilo que aparece na fotografia “futurada” ou, pelo contrário, deverão “foder com o tempo” ao simplesmente fingirem que não é “nada com eles” esse pretenso poder premonitório da imagem fixa? O dilema é enunciado e esmiuçado, mas, de novo, de maneira apressada e complicando a intriga para lá do desejável, ao mesmo tempo que descomplexificando o mundo das personagens, cujo destino nos é cada vez mais indiferente. As ideias permanecem bem à superfície, num filme de estética declaradamente “plastificada” – apresentação oca para um conteúdo recheado de potenciais leituras! Também é verdade – e não me canso de sublinhar – que, aqui, as ideias cintilam intensamente, mesmo para lá do filme terminar. Podem as ideias que motivam um filme serem a obra-prima que este filme não é e, reforço, não é de jeito nenhum? A possibilidade teórica fica a anos-luz de ser devidamente vertida numa linguagem fílmica igualmente engenhosa e desafiante, mas isso não quer dizer que devemos “deitar fora o bebé com a água do banho”. Se não é um bom filme ou se nem quer ser um bom filme, uma coisa é certa: Time Lapse, mesmo que…, brinda-nos com um enredo de ideias cativante e aberto a um sem-número de possibilidades teóricas. Posto isto, e a um nível, digamos, estritamente cinematográfico, o que faria David Cronenberg com uma premissa destas? Até tenho medo de sonhar…
Time Lapse está disponível para aluguer na plataforma Filmin.