Jan Jedlička nasceu em 1944, em Praga, e, após terminar os estudos na Academia de Belas-Artes, partiu em 1969 para a Suíça, onde ainda hoje reside. De acordo com o retrato que o historiador de arte Heinz Liesbrock traça num artigo publicado numa edição de 2014 do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, Jedlička sentia-se, já nos anos 70, desenquadrado no panorama artístico e cultural suíço. Face à mundanidade e ao cosmopolitismo da comunidade artística local, Jedlička procurou o recolhimento, afastando-se do establishment.
Por esses anos que marcaram a viagem da Checoslováquia para a Suíça, Jedlička era marcado pelo virtuosismo técnico e por um realismo fantástico de influência simbolista e surrealista. Talvez não seja alheio a isto o facto de o artista ser bisneto do pintor František Ženíšek (1849-1916), pertencente ao grupo Generace Národního divadla, que advogava uma sensibilidade nacionalista. Ženíšek é um pintor célebre na República Checa, recordado pelas suas obras de temáticas histórica e mitológica, e pelo academismo da sua técnica, muito característico dos salões europeus do último quartel do século XIX.
Sentindo que as suas tendências simbolista e surrealista eram extemporâneas e desajustadas ao que então se passava no mundo da arte ocidental, Jedlička descobriu uma afinidade insuspeita com o movimento da Land Art, que despontava justamente por esses anos, e começou a conceber uma poética radicalmente nova.
Numa análise global, a obra pictórica de Jedlička investiga sobretudo a ideia de paisagem, situando-se na fronteira entre a figuração e o abstraccionismo. Liesbrock refere que a pintura de Jedlička remete para os desenhos que o homem pré-histórico gravou nas paredes das grutas, procurando assim explicitar o carácter essencialista e primitivo que a obra pictórica do checo contém. Mas, para além disto, esta obra pode remeter ainda — e seguindo novamente as pistas deixadas por Liesbrock — para o domínio da música, tanto para a abstracção expressiva das pautas musicais, quanto para o próprio carácter vibrátil, elusivo e intangível — porém, sugestivo e reverberante — do som. Um outro aspecto fundamental da pintura de Jedlička é o facto de o artista criar as suas próprias tintas com pigmentos por ele mesmo colhidos na natureza, partindo de fragmentos de rochas, argila, terra, areia.
Embora Jedlička tenha adquirido reconhecimento crítico principalmente enquanto artista plástico, também desenvolve trabalho como fotógrafo e cineasta. A fotografia entrou na sua vida enquanto auxiliar à realização de obras pictóricas. Porém, o artista acabaria por se aperceber de que a indexicalidade da fotografia a afasta do carácter subjectivo do desenho ou da pintura. E, consequentemente, ela permite a criação de imagens que, ainda que mais estritamente dependentes das formas do mundo tal como nós (e a câmara) as percepcionamos, respondem a uma gramática própria que encerra a possibilidade da expressão. Ou seja, Jedlička descobriu na fotografia um potencial artístico. O fotógrafo publicou o seu primeiro livro de fotografia em 2008, Il Cerchio: Maremma 2005-2006, pela Steidl, um livro que tem por base uma série de visitas mensais aos campos de Maremma, na Toscana, e a documentação fotográfica das alterações ocorridas nessa mesma região ao longo das quatro estações. Mais tarde, em 2020, publicou 200m, na mesma Steidl, composto por fotografias captadas numa mesma, geograficamente limitada (donde, o título), praia em Maremma (o filme aqui em foco documenta, aliás, a captação de algumas destas imagens).
Maremma é uma área costeira de Itália, maioritariamente localizada na região da Toscana, embora abranja, ainda, a zona norte da região de Lázio. É uma zona toscana ligeiramente diferente da Toscana dos bilhetes-postais, pois oferece uma paisagem mais selvagem e menos ordenada. Uma jornalista do The Guardian descreveu-a do seguinte modo: “Sugary sands are framed by pine groves and low-slung hills, revealing serene, post-impressionist landscapes. In the Maremma, south of Grosseto, set designers are seemingly in charge of the sunsets and rosemary-scented scrubland running down to the sea”. Jedlička visitou esta região no final da década de 1970 e encontrou nela o tema ideal para a sua poética da terra. Desde então, Maremma e a sua paisagem tornaram-se o objecto paradigmático da sua obra. E, por conseguinte, tanto o artista quanto a sua obra tornaram-se perfeitamente indesvinculáveis de Maremma.
Traces of a Landscape é de 2020, da autoria do documentarista checo Petr Záruba, construído, todo ele, em torno dos dois elementos sobre os quais me detive até aqui: por um lado, temos o retrato do artista; por outro lado, temos a região e a região de Maremma. Devido a esta dupla temática — o artista e a paisagem —, o filme pode ser percepcionado de maneiras ligeiramente distintas.
Em primeiro lugar, podemos inseri-lo numa vasta tradição de documentários sobre artistas da qual os casos mais célebres serão, porventura, Le mystère Picasso (O Mistério Picasso, 1956), de Henri-Georges Clouzot, e El sol del membrillo (O Sol do Marmeleiro, 1992), de Víctor Erice. Para tal, muito contribui a dimensão biográfica do filme. Através da voz do artista, tomamos conhecimento da sua história pessoal, desde a infância e as suas primeiras experiências criativas com os materiais do avô e da tia, também pintores, à fuga de Praga, à entrada no panorama artístico de Zurique, à descoberta de Maremma. A acrescer a isto, e tal como nos filmes de Clouzot e Erice, Traces of a Landscape oferece aos espectadores a possibilidade de testemunhar o artista em acção, a pintar e a fotografar. O acto artístico é tornado, assim, um acontecimento que o filme eleva, também, ao estatuto de evento cinematográfico.
Em segundo lugar, Traces of a Landscape é, também, uma espécie de eco-filme. Pois se as pinturas, as fotografias e os filmes de Jedlička têm, todos eles, Maremma como tema e objecto, e possuem também uma vertente ecológica de relevo, também Záruba, no seu documentário, filma esta região italiana, e torna-a assim, finalmente, matéria do filme. Trata-se de um filme-paisagem — e, aliás, desde o título: Traços de Uma Paisagem. E deste modo, Záruba pratica em cinema uma poética análoga à que Jedlička desenvolve na sua arte: uma obra que tem o real natural no seu centro. Ao tomar como tópico uma paisagem de natureza inconstante e metamórfica, o filme desenvolve uma poética da paisagem que se afasta das ideias de fixidez e estabilidade que mais tradicionalmente associamos a este género pictórico, passando a conceptualizá-la como algo fugaz e inapreensível em termos definitivos.
Ao afirmar que podemos ver o filme como uma espécie de documentário biográfico e, ao mesmo tempo, como um documentário sobre a paisagem, pretendo salientar o facto de Traces of a Landscape procurar uma simbiose tanto temática, quanto formal, com a obra de Jedlička. Ou seja, o filme não é apenas sobre Jedlička, mas é, também, feito à maneira do artista checo.
Deste modo, se a obra do artista atenta nas matérias de que o mundo natural é feito, nos processos metamórficos que subjazem à tessitura do real, ou na importância da luz solar no processo de transubstanciação do mundo em imagem, por exemplo, também o filme de Záruba se constrói a partir de preocupações partilhadas. Pois, na verdade, também Záruba identifica a natureza como um dos seus principais interesses.
Desta questão é símbolo maior as próprias tintas que Jedlička usa, e que, aliás, marcam presença desde o cartaz promocional do filme.
Numa das sequências iniciais, vemos Jedlička a recolher materiais da paisagem, depois a dispô-los numa superfície de acordo com as suas diferentes colorações, mais tarde a limpá-los, depois a moê-los num almofariz, depois a diluí-los em água e, por fim, a secá-los ao Sol até obter o pigmento filtrado.
Posteriormente, surge um travelling sobre uma grande variedade de pigmentos prontos a serem usados pelo pintor. Tendo o espectador antes visto todo o processo de recolha e feitura das tintas, este travelling não pode senão remeter para a própria paisagem de Maremma, que está na origem das tintas, porque é nela que os pigmentos são encontrados e extraídos. Com estas duas sequências, Záruba sublinha que a matéria de que a pintura é feita (as tintas) é, com efeito, a mesma matéria que a pintura representa (a paisagem). Isto significa que as paisagens pintadas por Jedlička são, metonimicamente, a própria paisagem que representam. Ou seja, o real e a arte partilham a mesma matéria e são, por isso, consubstanciais.
O próprio filme parece inscrever-se nesta mesma lógica do palimpsesto, em que as coisas e as suas representações procuram confundir-se. Regra geral, Záruba trabalha justamente a relação de afinidade entre o seu filme e a obra de Jedlička. Deste regime de aproximação é um exemplo eloquente uma breve sequência que gostaria de convocar:
Começamos por ver Jedlička a pintar uma aguarela in loco. Vendo um homem pintar uma paisagem que também estamos a ver em campo, o próprio processo da representação é colocado en abîme. No seguimento da breve cena, uma montagem paralela dá a ver, alternadamente, fragmentos da paisagem de Maremma, nomeadamente pequenos carreiros de água, ora directamente captados no real (a imagem cinematográfica), ora transfigurados em pintura por Jedlička (em grandíssimos planos sobre algumas das suas obras). O que também está aqui em causa, evidentemente, é o próprio processo de representação. Ao transitar entre as pinturas, as fotografias e os filmes de Jedlička — todos eles, note-se, tendo Maremma como tema e objecto —, e justapondo-os às suas próprias filmagens desta região toscana, Traces of a Landscape questiona, necessariamente, as especificidades e as singularidades dos diferentes meios de representação enquanto formas de aproximação ao real.
Para que esta questionação seja desenvolvida pelo filme, é crucial que a figura no seu centro seja um artista polivalente com as características de Jan Jedlička. A certa altura, o artista afirma em voz over: “Sempre tive dificuldades em encontrar, tanto na fotografia quanto no desenho, as técnicas mais adequadas para encontrar a precisão da forma. É por essa razão que a minha obra é tão multiforme”. Com efeito, e como comecei por avançar, a obra deste artista estende-se a diferentes práticas, em especial à pintura, ao desenho e à fotografia. Ao acolher em si diversas manifestações da obra multifacetada de Jedlička, o filme de Petr Záruba adopta, também, uma estrutura heterogénea e compósita. O filme começa com um plano sobre uma pintura abstracta de Jedlička, e volta a mostrar diversas vezes, no seu decurso, pinturas e desenhos do artista, do que é exemplo o breve excerto que descrevi acima. Ainda no campo das artes plásticas, vemos, na fase final do filme, o processo de feitura de mezzotintos, que é uma forma de gravura que data do séc. XVII, hoje largamente caída em desuso, mas que Jedlička pratica há várias décadas.
A acrescer a isto, o filme dá-nos a ver uma quantidade assinalável de fotografias. E não só vemos as fotografias, como também o artista a fotografar, e, noutros momentos, a falar sobre a sua relação com esse medium. A dada altura, Záruba faz uma montagem de várias fotografias polaroid da autoria de Jedlička, presumivelmente tiradas há décadas atrás; e, mais tarde, podemos ver o artista munido da sua câmara Polaroid, a fotografar um campo em Maremma. Numa outra sequência, o artista fotografa uma praia com a sua máquina fotográfica de médio formato. E a montagem intercala, então, o acto fotográfico com as fotografias propriamente ditas (o primeiro conjunto de imagens a compor este texto, acima).
Por fim, Traces of a Landscape inclui, também, fragmentos de filmes. Logo de início, vemos home movies da infância do artista, e, mais tarde, breves sequências por ele filmadas, em 8mm ou 16mm. Tanto quanto pude apurar, Jedlička nunca procurou afirmar-se enquanto cineasta, mas ao incluir fragmentos dos filmes de Jedlička em Traces of a Landscape, Petr Záruba lembra-nos que o cinema também faz parte da actividade artística do checo. E assim, o filme desenha-se como uma obra sobre um homem que é simultaneamente pintor, desenhador, gravurista, fotógrafo, e, também, por fim, cineasta.
Gostaria de concluir sublinhando esta ideia de que, partindo da multiplicidade de matérias e processos em jogo na prática artística de Jan Jedlička, Traces of a Landscape se torna, também, um filme feito por estratos de matérias: a matéria das tintas, dos suportes (telas, papéis, etc.), até da tecnologia por detrás dos mezzotintos, das polaroids, da fotografia analógica, dos home movies. É um filme sobre um homem, mas também sobre as muitas artes que esse homem pratica, e, consequentemente, sobre a arte enquanto prática que, na sua mais alta expressão, pode mediar, efectivamente, a relação entre o humano e o mundo. E, na base de tudo isto, é, também, sobre a paisagem de Maremma, o elemento do real que, aberto à projecção, à criação e ao imaginário, motiva o concerto das artes que, no fim de contas, é Traces of a Landscape.
Mais importante do que tudo isto: é um filme extraordinário.