Se me prendo ao teu rumor ausente
não é que me consuma numa imagem
ou deseje real o imaginado;
é por outro real em ti presente.
António Franco Alexandre, em Poemas
O emaranhado de episódios picarescos relativos ao paradeiro de “colecções de arte” que, nos tempos recentes, chegaram ao nosso conhecimento, talvez, não seja o melhor ensejo para considerar os motivos e os critérios para fazer uma colecção, para mais quando alguns dos traços, como seja, a sistematicidade, a consistência, a coerência que fazem com que obras de arte possam condizer umas com as outras e constituírem uma boa explicação para as manter juntas, rareiam bastante.

Será, portanto, necessário afastar do nosso horizonte, sem concessões, enquanto perfil para o exercício dessa atividade, os que enxameiam esse universo de “investidores” em arte, para ganharmos a condição de possibilidade de voltarmos a interessar-nos pela caracterização do impulso de coleccionar e pela singularidade do método dos que a essa actividade se dedicam.
Esse método designa-o Hannah Arendt, com extraordinária propriedade, “o dom de pensar poeticamente”, qualidade que transforma o coleccionador num pescador de pérolas: “o que anima este pensar é a convicção de que embora tudo quanto vive esteja sujeito à destruição do tempo, o processo de corrupção é ao mesmo tempo um processo de cristalização; de que no fundo do mar, onde se afunda e se dissolve o que outrora viveu, certas coisas sofrem uma transmutação e sobrevivem sob novas formas e configurações cristalizadas que permanecem imunes aos elementos, como se apenas esperassem pelo pescador de pérolas”[i].
Trazer para aqui essa exigência, como assunto prévio a esta nova série de crónicas, constitui uma forma de tornar explícito que, semelhante ao risco inerente a essa actividade de mergulhar à procura de tesouros, que pode ser pago com a própria vida, se quis fazer do acto de eleição de um lote de filmes, no vasto património cinematográfico, uma questão de vida ― a forma vitae cinematográfica, bem entendido ― cujo sopro inicial terá partido de versos de António Franco Alexandre[ii], nos quais encontrei o motivo para o título da série.
Há um risco suplementar que resulta do facto deste Álbum que me coube em sorte fazer depender a sua inteireza de uma imagem em falta: e não é seguro que assim não permaneça, ao tratar-se de confrontar a afirmação de Guido Ceronetti quando diz que “a mulher é imagem”, sendo certo, no entanto, que o que se procura trazer à superfície ― a bem dizer, a esse ecrã em que as imagens se sustêm ― de forma cristalizada, irredutivelmente fragmentária, são figuras que se impõem ao amor de um fetichista.
Qual coro da tragédia, a voz off de Sternberg, percorrendo todas as pessoas do eu ao nós, narra, comenta, resume, interroga, mostra o que os participantes não testemunharam, e estabelece um ponto sem retorno na aventura: «Foi assim que encontrámos Keiko (…)
Pertencente à primeira vaga de emigrados europeus que cedo se integraram na produção cinematográfica em ascensão na América, o austríaco Jonas Sternberg, tendo começado por realizar um primeiro filme, The Salvation Hunters (Caçadores de Salvação, 1925), no qual, já sob o nome de Josef von Sternberg, a marca do cinema de poesia que melhor o distinguirá se revela, e depois de um curto período em que, com Marlene Dietrich como protagonista, se afirmou de forma absoluta na Paramount (1930-1935), nunca mais encontraria condições para que os projectos em que esteve envolvido fossem inteiramente bem sucedidos.
Contudo, vinte e cinco anos volvidos sobre o início, o círculo encerra-se com uma “obra realizada em condições quase ideais”. E, conforme declarações do próprio em páginas da sua autobiografia, fica-se ainda a saber: “Tendo ido procurar bastante longe as condições, acabei por encontrá-las no Japão: rodei aí o meu melhor filme, se bem que o mesmo tenha sido o meu maior fracasso comercial”[iii].
O filme que também nunca fora comercialmente distribuído entre nós, teve a sua primeira exibição no Ciclo de Cinema Americano dos Anos 50, organizado pela Gulbenkian em 1981. Foi, depois, possível voltar a vê-lo em 1984 por ocasião da retrospectiva dedicada ao realizador e, mais tarde, num ciclo da RTP.
É, pois, relativamente a esse “insólito tesouro”, com o título de The Saga of Anatahan (A Saga de Anatahan, 1953), sobre o qual João Bénard da Costa escreveu páginas que não deixam dúvidas sobre os motivos da sua eleição para “os filmes da minha vida”[iv] que, no entanto, aqui, reservo para Claude Ollier, por inteiro mérito seu, o papel de pescador de pérolas.
“Novo romancista”, que dispunha da rara capacidade de recorrer a uma compreensão íntima, interior ao cinema, e não de um ponto de vista literário como bengala, que durante cerca de uma década se dedicou à crítica de filmes, Claude Ollier publicou em 1965 nos Cahiers du Cinéma (em que, conforme Jean Narboni o confirma, nunca tinha havido um particular entusiasmo em relação a Sternberg), com o título de “Une aventure de la lumière”, uma análise de extraordinária precisão e beleza de A Saga de Anatahan.
“Escritor da descrição”, na caracterização feita por Jean Ricardou, sabe que a descrição já não é, como na idade clássica, aquilo que suspende a acção, ao contrário, é ela mesma acção operando o seu relançamento e, simultaneamente, terá compreendido as razões da convicção expressa por Sternberg sobre “a importância da abstracção no cinema quando se procura que as pessoas se recordem do filme” e, desse modo, foi tão fundo na sua análise da “redução do espaço por abstracção, essa compressão do lugar por artificialidade, que define um campo operatório e nos conduz por eliminação do universo inteiro a um puro rosto de mulher”[v].

Qual coro da tragédia, a voz off de Sternberg, percorrendo todas as pessoas do eu ao nós, narra, comenta, resume, interroga, mostra o que os participantes não testemunharam, e estabelece um ponto sem retorno na aventura: «Foi assim que encontrámos Keiko. Ao princípio não passava de mais um ser humano encalhado naquele ponto perdido do mapa. Depois, tornou-se numa fêmea para nós. Por fim numa mulher ― a única mulher na terra.»
Ciente de que os resultados mais verdadeiros são aqueles que, na dobra do ato histórico, são rescritos com o pincel, a caneta ou a câmara, Claude Ollier, num outro texto, de carácter monográfico sobre Sternberg, retoma o método da redução, afirmando: “O processo de ‘redução’ espacial e temporal é particularmente óbvio aqui. Um estreitamento de círculos concêntricos ocorre no início: círculo do Pacífico (teatro geral da guerra), círculo da ilha onde os náufragos encalham (teatro de guerra também, mas encolhido, irrisório), círculo da selva (cena abstrata, homogénea), círculo da cabana sobre palafitas (santuário onde oficia a “animadora” do espaço). Ao mesmo tempo, o objeto da luta transforma-se, paulatinamente: abastecimento dos postos japoneses espalhados pelos arquipélagos; após o naufrágio, defesa simbólica da ilha; repulsão de um eventual invasor cada vez mais mítico; sobrevivência diária simples; finalmente, após a descoberta da mulher, luta contra a cobiça e o ciúme. Ao mesmo tempo, o inimigo muda: é o adversário oficial, americano, no início; depois aquele, imemorial, do Império; a natureza selvagem a seguir, e o casal de colonos que a domestica; finalmente, uma vez eliminado o homem, é a mulher, o obstáculo para a concórdia, desafio de paciência e de agressão”[vi].


Como se, de alguma forma, se tratasse de dar continuidade à primazia concedida às ninfas, o narrador anota que sendo “ave rara na nossa selva, às vezes olhávamos para Keiko”, sendo que o que se impõe de forma mais marcante, perante o facto de nos ter sido intencionalmente barrado o sentido das palavras trocadas entre os habitantes da ilha, é o nome de Keiko ser reiteradamente proferido, numa invocação que ecoa inteligível e de molde a transformar Anatahan numa “ilha de mulher” ― a ilha de Keiko.
Será de ter em conta que “percebidas como ‘mundos fechados’ e ‘diversos’ do continente, a representação das ilhas no imaginário grego antigo ― frequentemente vistas como lugares do sobrenatural e do estranho ― oscila entre dois extremos de conectividade e isolamento. É assim que, das que aparecem na Odisseia, marcando etapas da jornada de Odisseu, sete são explicitamente conotadas com ilhas: a ilha das cabras, Eólia, Eeia, a ilha das Sereias, Trinácria, Ogígia e, evidentemente, Ítaca. Destas, mais de metade está associada a figuras femininas ― Circe (Eeia), as Sereias, Calipso (Ogígia) e Penélope (Ítaca) ―, sendo que o encontro do herói com esses seres adquire muitas vezes traços sensuais, lançando assim as bases de um motivo destinado a continuar no mundo antigo e em literaturas posteriores e em que a descoberta de uma ilha pode assumir conotações eróticas”[vii].
Keiko, violentamente disputada ou tirada pacificamente à sorte, não está ao alcance de naufragados o poder de retê-la à sua mercê. Abandonando antecipadamente a ilha, de modo a transformar-se em fonte confiável de que a guerra acabou, por pouco mais que dela se saiba, não há dúvida que, no regresso a casa, Keiko está lá à espera, para receber quer os vivos quer os mortos.

«Era impossível que fosse verdade. A guerra ainda mal tinha começado. Estávamos preparados para combater mil anos. Dominávamos a Ásia, dominávamos quase todo o Pacífico. Como é que podíamos ter perdido tudo tão depressa?» Palavras do narrador.
Claude Ollier, “dissidente secreto” no retrato que dele faz Christian Rosset, “generalista da linguagem”, como o próprio escolheu apresentar-se, lembra que, se prestarmos atenção, veremos como “tudo recomeça”. É numa aventura improvisada ― da linguagem ― que Cloé, com cinco anos, ao passar as férias de Verão na Malásia com o pai que tem mais cinquenta do que ela, no jogo de juntando letras aprender a ler, começa pela palavra “WAR”, pois a guerra estava por todo o lado.
Claude Ollier, que reunira uma parte das suas críticas de cinema num livro com o título de Souvenirs écran, não esqueceu a ligação profunda entre infância e cinema: “Sem rodeios, eis a vida de criança, por algum tempo ainda dada de forma límpida a ler, à primeira vista, aos cinco anos: a expectativa sem medida, permanente, louca, o vínculo carnal com o espaço como campo de jogo, a vontade de explorar, de apreciar, a necessidade de dar, o ímpeto incomensurável de conhecer, a soberania, o efeito violento da presença. Ele gostaria de fazer este retrato, desenhar essas linhas”[viii]. Estamos em directo?, pergunta ela, fazendo lembrar metálogos, inventados por Gregory Bateson[ix].
[i] Hannah Arendt, «Walter Benjamin: 1892-1940», em Homens em Tempos Sombrios, trad. Ana Luísa Faria, [1968] (Lisboa: Relógio d’Água, 1991), 238.
[ii] António Franco Alexandre, «Duende», em Poemas (Porto: Assírio & Alvim / Porto Editora, 2021), (10), 488: «E falta-me esta imagem para ter / inteiro o álbum que me coube em sorte / como um cinema onde passava “a morte”».
[iii] Josef von Sternberg, De Vienne a Shanghai: Les tribulations d’un cinéaste, [1965] (Paris: Flammarion, 1989), 304.
[iv] João Bénard da Costa, Os filmes da minha vida – Os meus filmes da vida (Lisboa: Assírio & Alvim, 1990).
[v] Gilles Deleuze, A Imagem-movimento, trad. Sousa Dias (Lisboa: Assírio & Alvim, 2009), 146.
[vi] Claude Ollier, «Aquarium – Josef von Sternberg», em Ce soir à Marienbad et autres chroniques cinématographiques, ed. Christian Rosset (Bruxelles: Les Impressions Nouvelles., 2020), 168–69.
[vii] Morena Deriu, «Odisseo, Penelope e Itaca: la homophrosyne nell’isola», em Isole settentrionali, isole mediterranee: letteratura e società, ed. M.E. Ruggerini, V. Szőke, e M. Deriu, Biblioteca Universitaria Italiana 24 (Milano: Prometheus Editrice, 2019), 151–52.
[viii] Claude Ollier, Mon double à Malacca (Paris: P.O.L., 1982), 210.
[ix] Essas conversações (entre pai e filha) sobre assuntos problemáticos, cuja estrutura assume uma pertinência decisiva para o tratamento do assunto, que foram publicadas em português sob o título de «Metadiálogos», constituem a primeira parte de G. Bateson, Steps to an Ecology of Mind (University of Chicago Press, 1972).