Há algo de encantatório, ou talvez seja algo de aterrador, nas vozes dos sistemas GPS que são capazes de conduzir alguém através do desconhecido, levando a que o condutor se demita de qualquer impulso de acção, mero autómato que obedece a uma voz de comando. Talvez sejam novas incarnações do computador HAL 9000 de 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) ou, numa versão mais simpática, de Edgar, o computador apaixonado de Electric Dreams (Amor e Música, 1984). Era uma inquietação que adivinhávamos no rosto de Ewan McGregor, no The Ghost Writer (O Escritor Fantasma, 2010) de Polanski, quando se sentava ao volante e era guiado por uma voz sem saber aonde ela o levaria. Pois aqui, esta voz do além conduz o casal Chris (Vicky Krieps) e Tony (Tim Roth) a um paraíso cinéfilo (ou será um parque de diversões cinéfilo) – a ilha de Fårö, onde Ingmar Bergman viveu, filmou e morreu.
Apesar de este casal, durante alguns dias, habitar a ilha de Bergman, um espaço todo ele impregnado da memória do mestre sueco, Chris e Tony têm o seu mundo próprio. Mia Hansen-Løve vai-nos deixando entrar neste mundo, dá-nos pequenos vislumbres da intimidade deste casal – uma risada partilhada, uma conversa apanhada a meio caminho e que remeterá para outras conversas a que não tivemos acesso.
Tony e Chris são ambos cineastas e procuram em Fårö um retiro, um local onde possam escrever, e terão, sem dúvida, a esperança de que este local “mágico” possa oferecer-lhes também inspiração para a escrita, que esta ilha funcione como um combustível para o processo criativo. No fundo, uma promessa de que os deuses do cinema (em particular, um dos seus deuses) sobre eles desçam e lhes concedam as ferramentas, o alimento para a criação do objecto cinemático.
Bergman Island não sucumbiu ao espectro de Bergman (…) a invocação da obra de Bergman, da sua vida, das pequenas anedotas, funciona antes como um cobertor confortável que envolve Chris e Tony na sua vivência como casal (…)
Aparentemente, este plano corre bem para Tony. Ele abraça o processo de escrita de forma quase mecânica, como se fosse suficiente ligar o botão “produzir”. O que nos leva também a duvidar que ele se deixe verdadeiramente contagiar pelo lugar em que se encontra, já que ele parece escrever de forma alheada do ambiente próprio daquela ilha. Mas Chris cedo se apercebe de um poder diferente deste lugar, o poder opressivo que uma natureza demasiado bela pode exercer, uma natureza demasiado perfeita que possa bloquear o processo criativo, colocando o criador numa ligação demasiado íntima consigo mesmo. E não será só esta natureza demasiado bela que pode ser opressiva. Opressiva pode ser também a partilha entre o casal – a partilha de uma mesma actividade, profissão, porquanto coloca em colisão os diferentes métodos de criação. Tony parece encontrar facilmente o seu tema, o desenrolar da sua história, enquanto Chris, claramente mais sensível, mais permeável a tudo aquilo que a rodeia, luta para encontrar um fio narrativo. E Tony, contrariando de forma brutal a cumplicidade que existe no casal, não percebe esta luta, negando o apoio de que Chris necessita, oferecendo a solução “simples” e pragmática de abandonar tudo, sendo incapaz de compreender que essa opção não existe. Se Tony encara a sua tarefa de construção narrativa como algo que é feito assim mesmo, como tarefa, já Chris depende de um processo doloroso que implica escavar nas suas memórias, passar em revista os seus sentimentos, apreensões, incertezas.
Passado este período de tensão, do bloqueio criativo de Chris, somos chegados ao momento em que o filme se parte para nos revelar uma outra história. Isso acontece num olhar que se perde no horizonte, na imagem do mar. Este corte, em que o olhar se turva e o mar inunda o imaginário, conhecemo-lo da história da rapariga da praia de areia cor-de-rosa, que Giuliana conta ao filho em Il deserto rosso (O Deserto Vermelho, 1964). Mas se a história de Giuliana encontra ouvidos ávidos, a narração de Chris serve apenas para descobrir a solidão, descobrir que, apesar da intimidade, é possível que ela e Tony habitem, cada um, a sua própria ilha – o que nos remete para as “coisas invisíveis que circulam entre um casal”, que Tony havia ter dito ser matéria do argumento que se encontrava a escrever. Como dizia a música, “vem-nos à memória uma frase batida”, frase que foi outrora slogan publicitário para o perfume Fidji de Guy Laroche: “La femme est une île, Fidji est son parfum”. A mulher como ilha, uma imagem imensamente bela, que Chris ocupa de pleno direito, prodigiosamente.
Tony abandona Chris para atender uma chamada, revelando uma absoluta insensibilidade face àquilo que é o resultado do doloroso processo de criação, criação que é também um acto de mundificação (entrevistado em 1968 por Stig Björkman, Jonas Sima e Torsten Manns, Ingmar Bergman refere-se ao esforço artístico como adjuração). Se o processo criativo é penoso, não o será menos o momento de partilha do resultado, de exposição à avaliação, à crítica de algo que será, sem dúvida, muito pessoal, adivinhando-se muito de autobiográfico na história que é narrada por Chris. Essa narrativa leva-nos à revisitação de um amor de adolescente – “un amour de jeunesse” -, à tentativa de dar nova vida a um momento de promessa de felicidade que ficou perdido no passado e ao confronto com o facto de essa ser uma vontade impossível de concretizar, a vontade de voltar ao lugar em que se foi feliz. É a vida real que se confunde com a história narrada, e a história que se confunde com o sonho, na forma obsessiva como vai correndo o fio narrativo do vestido branco, uma obsessão com o facto de a cor do vestido de Amy (Mia Wasikowska) não ser apropriada, sendo ela convidada do casamento. E há algo de anacrónico neste vestido, ele parece evocar uma outra época, a tal época de um amor que não teve o seu ponto final, pelo qual não foi feito o devido luto.
Se Chris pretende libertar-se dos seus fantasmas através da escrita, Amy procura essa libertação entregando-se à música, numa cena em que abraça o acto de dançar em modo de vingança e sedução, no prazer despreocupado de uma música que pode ser kitsch mas que a preenche de felicidade – afinal, o que interessa o que os outros possam pensar? E isto faz-nos reconhecer que, desde o início, Bergman Island (A Ilha de Bergman, 2021) não sucumbiu ao espectro de Bergman como seria de esperar. A invocação da obra de Bergman, da sua vida, das pequenas anedotas, funciona antes como um cobertor confortável que envolve Chris e Tony na sua vivência como casal, nesta estadia em Fårö. O tom porventura mais grave não provém de Bergman, das inquietações que a sua obra poderia justamente inspirar, mas antes dos temas sempre presentes no cinema da própria Mia Hansen-Løve, a começar pela melancolia e pelas feridas perenes da adolescência, e que acabam por impregnar o solo desta ilha.
O elo que liga as diferentes camadas de narrativa reconduz-se à natureza – a sua beleza oferece a promessa da consagração do amor perdido ou fragilizado, mas impõe igualmente o confronto com a insignificância do ser humano. A natureza avassaladoramente bela revela-nos uma certa arrogância do nosso criar, um despique do qual o humano sairá sempre perdedor.
Não resistindo a sucumbir, tal como o filme sucumbe, à inevitável referência sueca – The winner takes it all?