Caderneta de Cromos é um questionário breve, impertinente quanto baste, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Vasco T. Menezes é tradutor, programador, antigo crítico do suplemento cultural do jornal Público, ex-proprietário da loja cinéfila e de culto Cinecittà, mas acima de tudo é um dos nossos cinéfilos favoritos (e, apesar de ser “portista ferrenho”, é um tipo mesmo fixe). Se dúvida do nosso fandom, leia, veja e ouça as inúmeras convocatórias que lhe temos impingindo, em rubricas tão diversas como o Filme Falado (em torno de Fulci, claro), o Steal a Still, o Dossier sobre os sentidos e ainda uma recente colaboração na rubrica Acção! em defesa dos suportes físicos, em que tivemos acesso à sua maravilhosa e inestimável colecção de filmes. A maneira de agradecer tudo isto? Dando-lhe mais trabalho ainda. Uma verdadeira “carga de trabalhos”, já que nesta Caderneta escapelizamos tudo e mais alguma coisa, quase ao nível escabroso de um “O que dizem os teus olhos?” do Dr. Daniel Oliveira. Vasco abre o baú da sua vida e conta histórias apaixonantes sobre críticos que trauteiam Phil Collins nos corredores do Público (fake news?), sobre pedidos estranhos envolvendo bananas, chicha e ganzas na sua mítica Cinecittà, sobre saídas à noite com os seus ídolos e João Botelho, um remake com betos de um all-time favourite de John Milius e ainda houve espaço para o terror mais hard, quando o Vasco se recorda do som dos sacos de plástico nas míticas sessões das 15h30 da Cinemateca Portuguesa. Deixe-se arrepiar!
1. Comecemos pela tua actividade como crítico do Público, nos tempo áureos de Kathleen Gomes, Luís Miguel Oliveira, Vasco Câmara e Mário Jorge Torres. Gostava que muito sucintamente descrevesses cada um deles, ou a sua ars poetica, mas tentando usar nessas descrições as seguintes palavras, pela menos uma vez: “supimpa”, “urbano-depressivo”, “destarte” e “Phil Collins”.
Bem, isso é que é entrar logo a pés juntos! Uma pergunta bastante “armadilhada”, já que estamos a falar de realeza, de referências que são também amigos. Vou tentar: Se a Pauline Kael e a Susan Sontag tivessem tido uma filha, seria a Kathleen. Esfíngica e tantas vezes incompreendida, foi um meteoro que atravessou a crítica cinematográfica portuguesa, semeando ódios e paixões. Basicamente, passou de uma sisudez inicial mais “canónica” para uma progressiva descoberta das potencialidades lúdicas do cinema, isto enquanto ascendia à “grande repórter” que sempre será. Não sei terá alguma vez usado a palavra “supimpa”, mas a verdade é que escreveu muito texto bem “legáu”, né?
O Luís Miguel é, para mim, o crítico português que melhor “escalpeliza” e “disseca” um filme, desmontando-o para em seguida o “abrir” ao leitor. Autor dos mais brilhantes (e rebuscados) jogos de cintura para defender os seus cineastas de eleição, é também um mestre da arte do “entre aspas” (de que me confesso mero aprendiz). E apesar de tanta reflexão analítica, se ele ama o Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993), curte o John Hughes e passa Waterboys, só pode ter sentido de humor, coisa de que, como todos nós sabemos, qualquer urbano-depressivo que se preze foge como o diabo da cruz…
O Vasco é o Senhor Cinema, aqueles olhos vêem coisas que mais ninguém vê (será por isso que já se lhe descolaram as retinas?). Sem medo de entrar pelos caminhos sinuosos do delírio cinéfilo, tão depressa está a incensar um nome como a deitá-lo abaixo ao filme seguinte (e vice-versa), mandando às malvas os protocolos do autorismo cego. Isso e aquela capacidade única que a dada altura parecia ter de se atirar ao verbo “vampirizar” em todas as suas declinações possíveis. Ou seja, perdão, destarte, o crítico mais aventureiro e corajoso cá da praça, ponto final.
Last but not the least, o Mário Jorge é o intelectual old school, dono de um conhecimento erudito enciclopédico, sempre pronto a enquadrar cada filme no seu contexto histórico e a pôr o cinema em diálogo com as outras artes, nomeadamente a literatura. A par desse lado “professoral” (pois claro), recordo a fina ironia, a assolapada adoração pelas suas “divas” – fossem as stars do firmamento clássico hollywoodiano ou o João Botelho – e a férrea aversão ao ex-colega Miguel Gomes (“A Cara que Mereces: Um Filme Que Não Merecemos”, salvo erro). Não me lembro de quantas estrelas deu ao “Miami Vice” e eu já nem sequer estava no Público, mas consigo perfeitamente imaginá-lo a trautear pelos corredores do jornal o “In the Air Tonight” do Phil Collins… Ufa, já está!
2. Uma coisa que trouxeste para o Público foi algo que, desde logo, nos chamou a atenção: um cuidado suplementar a tratar o cinema de terror e de culto. Hoje em dia a sensação que temos é que o terror voltou a ser varrido para debaixo do tapete. Para quando uma crítica séria que saiba apreciar o terror, pelo menos para lá dos grandes nomes, como Carpenter, Romero e João Botelho?
Ora aí está uma dúvida que me assola o espírito há imenso tempo… De facto, acho que na altura engraçaram comigo precisamente por ser “o puto das esquisitices e do terror”, mas desde então não houve a continuidade que seria de esperar tendo em conta o cardápio das novas gerações cinéfilas que entretanto se formaram, bem menos presas a hierarquias bafientas do que é “bom” e “mau”. Ou seja, espero que os “bárbaros” arrombem depressa as portas da “cidadela”, se bem que essa crítica séria e tão necessária até já existe, está no À Pala de Walsh! [P.S.: realmente, como portista indefectível que sou, o João Botelho tem-me dado pesadelos dignos de um esteta do terror, e isto apesar de ter renegado o famigerado Corrupção (2007)…]
3. Passaste muitos anos à frente de uma loja dedicada a essa grande religião chamada cinefilia: a Cinecittà, ali na Avenida de Roma. Vendias DVDs, cartazes, uma série de objectos alusivos aos recantos mais escondidos ou “de culto” da Sétima Arte. Qual foi o pedido mais estranho que recebeste nos anos em que estiveste lá, para lá daquela história envolvendo um massajador facial antirrugas com a forma da cabeça da família do clássico Coneheads (Os Cabeças de Cone, 1993)?
Estranhamente, acho que apaguei da cabeça a história que referes do Coneheads, mas não me importava nada de rever essa “obra-tia” (como diria o MJT), props ao meu querido Dan Aykroyd, sempre! Do que me lembro, e sendo uma loja dedicada a esses tais recantos mais obscuros do cinema, foram tantas as situações estranhas e as personagens excêntricas que por lá passaram que dava para escrever um belo romance de aventuras… Assim de cabeça, o pivot da Sport TV que só pedia filmes de arte e ensaio [do Hitler (1977) do Syberberg para cima] ou o rapaz que nunca cheguei a ver e que me encomendava, algures dos arrabaldes do Porto, tudo o que era bizarria, de caixas de pinku japonês à eurosploitation mais sleazy, estão de certeza no topo dos pedidos insólitos, mas o que leva a palma terá de ser o Up in Smoke (E Tudo o Fumo Levou, 1978) dos míticos Cheech & Chong, não tanto pelo filme (apesar de ser um genuíno clássico de culto) mas porque quem o quis foi um “mitra” dos NN Boys que passava literalmente os dias à porta da loja com os amigos, a beber e a fumar ganzas, e que nunca lá tinha entrado. Assim de repente, ganhei um cliente e protector, descobri um cinéfilo insuspeitado e o exterior da Cinecittà deixou de cheirar a xixi de manhã.
4. Ainda falando da tua antiga loja, quais os produtos que mais estimavas e que te custou mais vender, do género: “aquele tipo ou tipa não merecem isto!”?
Claramente, o monumental Thundercrack! (1975) do Curt McDowell, esse inacreditável porno-underground-horror movie que foi parar às mãos de um tipo que só estava interessado nos “filmes de sacanagem” que eu pudesse ter. Como era o único… E a t-shirt The Velvet Underground & Nico (batidíssima, é certo) que uma jovem e muito colunável apresentadora de TV levou porque procurava uma prenda de Natal para o pai (“Ai que giro, tem uma banana e tudo!”) também me ficou atravessada na garganta, confesso.
5. Imagina que ainda estavas na Cinecittà. E entrava o senhor João Carpinteiro – sim, aquele! E perguntava-te: “Vasco, queria comprar um DVD para ver hoje à noite, na companhia do meu amigo do cinema, Júlio Isidro”. O que é que respondias?
Quando recuperasse do choque e parasse de me babar, propor-lhe-ia o O Som ao Redor (2012) e/ou o Bacurau (2019), porque, entre outras coisas, têm lá uma escola com o nome dele e são homenagens lindas que, pelos vistos, o Senhor Carpinteiro (ou Deus na Terra) nem sabia que existiam… Mas tendo em conta a companhia ilustre de que falas, se calhar o melhor era mesmo uma caixa completa do DuckTales, para que o Júlio pudesse enquadrar teoricamente esse portento da animação infantil dos “80s” que ele ajudou a divulgar por cá no saudoso “Clube Amigos Disney”.
6. Imagina esta situação: ias sair à noite, porque estavas muito em baixo mas, mesmo assim, querias celebrar a conclusão de mais uma dessas traduções megalómanas que fazes. Qual aquele que, a teu ver, era mais capaz de te conseguir convencer a ires a um after: Abel Ferrara, Tsai Ming-liang ou João Canijo?
Sem dúvida, o Ferrara, por ser um herói de infância, por saber tudo o que há a saber sobre afters (imagino eu) e porque só de o ouvir a repetir constantemente “you know, you know, you know?” ia ficar logo em altas. E, provavelmente, arriscávamo-nos a dar com o João Botelho, seria um encontro giro entre dois “reis da noite”…
7. Já traduziste vários livros do autor da literatura de espionagem Daniel Silva. Com o teu pai traduziste, por ex., David Foster Wallace. Gostava de saber o que pensas sobre a polémica “o livro é sempre melhor que a adaptação ao cinema” e ainda, já que curtes terror, a polémica “o Continente é o maior livreiro do país”.
Por mais estranho que pareça, e que eu saiba, o Daniel Silva nunca foi adaptado ao cinema, mas aposto que um filme seria sempre melhor que o original, eheh; do Wallace, pelos vistos, já houve adaptações, que não conheço, mas imagino que não sejam grande espingarda porque não estou a ver como transpor para o grande ecrã todo aquele gongorismo delirante e excessivo, nem com um filme de 10 horas. Bem, quando vir o Pathos Ethos Logos (2021) do Joaquim Pinto e do Nuno Leonel talvez mude de opinião… Isto para dizer que essa polémica é como a história do ovo e da galinha, não vale a pena estar a perder muito tempo com isso porque há exemplos para todos os gostos [o Shining (1980) do Kubrick é maravilhoso, mas não é o livro do King, que quando foi adaptado por este para a TV deu num pastelão de todo o tamanho; o Naked Lunch (O Festim Nu, 1991) do Cronenberg capta de forma magnífica o espírito, ainda que não a letra, do Burroughs]. Filmes e livros são bichos diferentes e é assim que têm de ser analisados. Quanto ao Continente, obrigado por vender “literatura de hipermercado”; é que (infelizmente) um tradutor não pode viver só dos Foster Wallaces, Sontags ou Bowles (como é que se faz o plural?) desta vida!
8. Como grande fã de Walter Hill, gostava de te perguntar: Powers Boothe é ou não é o maior actor da história desde Raimu?
Concordo em absoluto, o Powers Boothe foi-nos levado demasiado cedo, RIP. Quem nunca chorou com todas as emoções que se escondem por trás daquele fácies patibular não sabe o que é o cinema. E para além dos mestres Hill e Milius [Red Dawn (Amanhecer Violento, 1984)], há que não esquecer que este verdadeiro man’s man agraciou clássicos da arte da pancadaria como o Rapid Fire (Fogo Rápido, 1992) ou o Sudden Death (Morte Súbita, 1995), onde mostrava que horas eram a meninos da mamã como o Brandon Lee e o Van Damme…
9. Sei que um dos filmes da tua vida é Big Wednesday (Os Três Amigos, 1978) de John Milius. Imagina que deixavam nas tuas mãos a decisão quanto ao realizador de uma versão portuguesa desse filme. Quem é que escolhias como realizador do dito remake filmado em Cascais e protagonizado pelo Diogo Morgado? Aviso: não podias escolher o Joaquim Sapinho, porque ele já tentou a coisa do surf lá à sua maneira e, como todos sabemos, a coisa correu… como correu.
Oh, não pode ser mesmo o Sapinho? Por acaso, sou fã do Deste Lado da Ressurreição (2011) e a ideia do “hot Jesus” como monge que se autoflagela parece-me bem divertida. Mas, pronto, optaria então pelo António-Pedro Vasconcelos, seria o realizador ideal para nos dar as dores de crescimento de um grupo de betinhos da Linha, numa versão “para toda a família” desse épico intimista e lírico, que, ainda por cima, com tanta acrobacia em cima das pranchas (e os custos de uma rodagem num sítio super chique como Cascais), teria mesmo de ter o arcaboiço e o fôlego de uma “superprodução à portuguesa” (se o sempre elusivo “grande público” apareceria ou não já é outra história).
10. Por fim, apelava à tua faceta de frequentador da Cinemateca Portuguesa. Sei que o Romero já não está entre nós, mas o que achas: dava ou não dava um belo tema para filme aquele público mais velho que frequenta a sessão das 15h30?
Ui, the horror, the horror, ou “A Matiné dos Mortos-Vivos”. Já estou a ouvir o barulho arrepiante daqueles sacos de plástico… O eterno Lenine nunca nos deixará!