“É a vida que a gente quer. A vida da droga.”
Vanda Duarte, No Quarto da Vanda
No Quarto da Vanda (2000) inaugura a fase fulcral da obra de Pedro Costa. A introdução das pequenas câmaras digitais libertou o cinema do peso de um quotidiano, do aparato tradicional do cinema, dos períodos limitados no tempo para as rodagens, da rigidez dos horários, das grandes equipas de profissionais, agora num número ínfimo e disponível para uma ocupação quase permanente dos locais de rodagem, transformando o rotineiro set em lugar de vivência, num experienciar, do realizador e das suas personagens, dos seus modos de vida, dia a dia de um bairro nas Fontainhas a ser desmantelado, uma paisagem de destruição e de barulhos. Costa mostrou-se disponível para trocar a beleza tradicional das imagens registadas pela película (que uma década depois entraria em desuso, pela introdução do digital também na distribuição de filmes) e das luzes apontadas ao set, num aparente desvio da herança da Hollywood clássica. Essas opções traduziram-se numa decisiva ampliação da autonomia do realizador, auxiliado pela portabilidade das câmaras e do restante equipamento, que incrementaram a quantidade e a autenticidade das imagens em movimento registadas; uma produção, então, enquadrável num período em que se diluíam as fronteiras, já de si ténues, entre a ficção e o documentário.

O filme é um documento da demolição do bairro, onde apesar das agruras, as pessoas continuam a viver, a comer, a lavar-se. Uma obra alimentada da circulação de narrativas de criaturas que habitam um submundo, nas catacumbas ocultas da sociedade, submetidos ao rótulo de habitante, de um bairro problemático e atulhado de drogas, vidas invisíveis e apartadas da História. Habitação é uma palavra chave que liga todos os filmes de Costa, explicitado na curta-metragem O Nosso Homem (2010), realizada entre Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro (2014), em que o herói Ventura nos recordava a auto-construção de barracas, geminadas com barracas existentes, erguidas com materiais pouco nobres – madeira e chapas metálicas como se fossem portas e janelas, muitas vezes cercadas por pequenas hortas de onde se avistavam as torres da cidade, uma ilha nos arrabaldes, como se aqueles cabo-verdianos ainda estivessem na terra vulcânica de origem, acompanhados de memórias, de histórias de fantasmas recontadas no crioulo que lhes confere o estatuto identitário.
As imagens de Pedro Costa e as palavras dos personagens não os entregam ao fatalismo nem à autocomiseração, que se anteciparia da toxicodependência e da indigência, mas sim a uma dignidade,
No começo do mergulho nas Fontainhas, em Ossos (1997), primeira entrada em cena de Vanda, ainda saíamos do bairro e predominavam as zonas fronteira, havia personagens que asseguravam o vínculo com o mundo dos vivos. Em No Quarto da Vanda, certificando-nos de que não há um condicionamento imposto por uma narrativa, os enquadramentos fixos prolongam-se por durações por vezes inusitadas, repartidos por corredores exteriores às barracas, que as portas fechadas fazem parecer um presídio a céu aberto, e interiores em que as personagens entram e saem do plano como uma participação voluntária de um fluxo, simulando uma câmara ausente, em que o Cinema é uma negociação com o quotidiano, como uma reflexo do Estado do Mundo, que é também o titulo de um filme colectivo, produzido no âmbito das Comemoração dos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian, que Costa dividiu em 2007 com cineastas de várias latitudes: Ayisha Abraham, Chantal Akerman, Vicente Amorim, Wang Bing, Apichatpong Weerasethakul. Aliás, alguns planos, no exterior de No Quarto de Vanda, em volta de um fogareiro, lugar de encontros e de trânsito de moradores, colocam-nos noutras latitudes, lembram-nos a China de Wang Bing e a Taiwan de Hsiao-hsien, por exemplo, um sintoma da universalidade deste cinema: histórias que estão a acontecer em outros lugares do mundo.
O espectador é convidado a participar da ocupação das barracas e das galerias ensombradas que as ligam, sendo que por vezes nos relacionamos com um mundo exterior, quando a câmara de Costa coloca, por detrás da demolição e remoção dos destroços do bairro, uma envolvente de torres de habitação, ao longe, a salvo e em posição sobranceira, ou quando um outro plano parece negociar uma possibilidade de saída do bairro, em que uma árvore agitada pelo vento assiste à passagem de Vanda e do seu cesto de frutas e legumes. Os diálogos circulam como se cada imagem guardasse todas as histórias das Fontainhas, com conversas de várias proveniências, audíveis mas nem sempre de conteúdo percetível; um som cheio, onde predomina o fora de campo e em que os ruídos se mesclam com os protestos de pássaros encerrados nas suas gaiolas.
Apesar do contexto, enquanto separam objetos para a mudança, os personagens persistem em viver o bairro, sendo que alguns continuam a remodelar os compartimentos, a limpá-los e a embelezá-los. As drogas, a sua partilha, incrementam uma ideia de comunidade, onde muito excepcionalmente se consome sozinho. As imagens de Pedro Costa e as palavras dos personagens não os entregam ao fatalismo nem à autocomiseração, que se anteciparia da toxicodependência e da indigência, mas sim a uma dignidade, que na protagonista Vanda será de elevação, de distinção conforme o estatuto conferido pela linhagem dos aristocratas de Costa. Para a princesa Vanda e o seu corpo andrógino, muitas vezes estendido na cama, Costa trabalha um cinema de intimidade, um jogo com a realidade (a auto-representação), o sonho de um dormitar, ou a partilha de memórias de uma infância feliz no bairro.
A exposição Pedro Costa Companhia (Serralves) e o filme de Júlio Alves (Diálogo de Sombras, que serve de pretexto a este ciclo de crónicas) relacionam os retratos de Vanda e Ventura com as fotografias de Walker Evans, uma das companhias que concretiza afinidades, mas que também expõe uma filiação artística, de pendor estético e ético. A administração Roosevelt instituiu a Farm Security Administration (FSA), instituição federal que objectivou o desenvolvimento de programas de auxílio a pequenos proprietários e arrendatários de explorações rurais arrastados pelos efeitos da Grande Depressão. Evans que começara a fotografar arquitectura vitoriana no final dos anos 20, aderiu à FSA, para contribuir no projecto que juntava, aos interesses políticos e sociológicos, a ambição de documentar a pobreza extrema em âmbito rural, mas com um cuidado estético que permitisse a sua divulgação para lá do mero registo de prova de um dos períodos mais traumáticos do século XX norte-americano. O fotógrafo, no cânone como um dos mais talentosos do seu tempo, dizia pretender fazer fotografia documental, “estilizada” e que não traísse a “pureza da arte fotográfica”. Com um notável apreço pelo detalhe, estas fotografias registam desapossados – os trabalhadores e as famílias, a severidade do trabalho e das condições de vida, corpos esqueléticos e sujos, mas que resistem na sua gravidade, através de retratos, que dignificam o rosto e o tronco, tragédias individuais com valor universal que geraram arquétipos orientados pela frontalidade dos retratados e pelo enquadramento de Evans, a que se juntaram as palavras do poeta e escritor James Agee, na edição de Let Us Now Praise Famous Men (1941).

Um vocabulário que faz uso de enquadramentos fixos, entre escalas médias e apertadas nos close-up dos rostos, em que apesar dos recursos aparentemente minimalistas, os planos estendidos pelo tempo (e No Quarto da Vanda é também um filme em que a durée é determinante), possuem uma elevada carga pictórica e atmosférica, resultado da resolução da imagem digital, mas também do uso criterioso da iluminação, muitas vezes natural, mas também por vezes banhados por uma luz branda que induz uma quase abstração dos espaços e principalmente dos rostos, deixando grande parte da imagem na penumbra, uma névoa como um revestimento do quadro que depois é intensificado na escala e imponência do museu: na transposição para as projecções das galerias de Serralves os rostos de Vanda e Ventura, filiados nos retratos de Evans, alcançam propriedades e traços esculturais.
Na descendência dos Straub, ao invés de se atulhar o plano, intensifica-se a abundância, a materialidade que os lugares já dispõem, no uso e na manipulação da luz, na escolha criteriosa e ética do ponto de vista, que promove a verdade dos retratados; e ocupam-se os cenários mundanos, regista-se o mais possível dessas vivências, para resolver na montagem um mistério, um atlas em que se interligam as coordenadas. E paradoxalmente, um objecto em ruptura, faz uso de elementos clássicos da arte, como a presença de naturezas mortas nos quadros que dialogam com os óleos de Picasso da exposição, no caracter alegórico, de significado conceptual e moral, na presença por exemplo de alimentos, como um caixote que a luz rarefeita não permite ter a certeza se se trata de fruta apodrecida, mas que permite observar as cores – vermelha, amarela e esverdeada, talvez desejo de exibir carestia e de recusa da ocultação da decadência e da deterioração; ou a presença dos utensílios associados ao consumo de drogas, a que se junta um copo, um limão e uma garrafa, como quem ilumina e exibe objectos de elevado valor material.
Nas próximas crónicas há ainda espaço para Diálogo de Sombras, para o lugar de Chantal Akerman e para um puzzle com centro de gravidade em Hollywood.