Se alguns dos mais brilhantes cronistas da época de Weimar não sobreviveram o suficiente para presenciar o desfecho da II Guerra Mundial, ou apenas a ela sobreviveram por breves anos – autores como Joseph Roth, Hans Fallada ou Stefan Zweig – já Erich Kästner, o autor de Fabian, obra que Dominik Graf adapta ao cinema, viveu o suficiente para ser alvo de honrarias e prémios, para viver a Wirtschaftswunder, mas também para testemunhar, enquanto convicto pacifista, a remilitarização da RFA. Pensemos, pois, naquilo que fez a vida de Kästner e que é o tutano do filme de Graf – a palavra. A palavra que desde os primeiros segundos do filme cobre as paredes das escadas do metro [aquele prodigioso travelling em que vir à tona é mergulhar no passado – do nosso presente, ao presente de Fabian oder Der Gang vor die Hunde (Fabian, 2021), aos traumas da Grande Guerra], numa presença quase abjecta da publicidade, a mesma publicidade que constitui o ganha-pão de Fabian. Essa publicidade sempre presente em todas as paredes de todas as ruas percorridas, uma sobrecarga de mensagem. As imagens finais do filme de Graf têm, pois, uma força particular, no queimar do livro de Fabian – o acto obsceno e político de queimar cultura, reproduzindo cenas de outros tempos inquietos, retratados em outros filmes – pensamos no fogo que consome os livros em Fahrenheit 451 (Grau de Destruição, 1966), na obra de Thomas Mann que arde em 49th Parallel (Os Invasores, 1941) ou no mais recente J’accuse (J’accuse – O Oficial e o Espião, 2019), em que reconhecemos, nas chamas, o Nana de Zola, mas, além disso, pensamos no acto de queimar a palavra por parte de um regime que a muito curto prazo chegará ao poder e dela fará uma das suas armas maiores.
Estes tempos de “na iminência de” oferecem sempre algo de fascinante. Neste ano de 1931, o ano em que conhecemos Jakob Fabian (Tom Schilling) no seu ofício de publicitário numa empresa que comercializa cigarros, sentimos a inquietude da subida ao poder dos Nazis que se anuncia. Fabian vive num equilíbrio frágil entre a profissão que ele pratica com algum displicência, mas que lhe garante a sobrevivência, e uma vida boémia que ocupa as suas noites, puro escapismo de uma vida que nada promete, nada garante. Será justamente numa dessas incursões nocturnas que irá conhecer Cornelia Battenberg (Saskia Rosendahl), seguidamente conduzindo-se os dois num percurso pelas ruas de Berlim durante o qual tudo de transforma – ambos chegaram a casa. O que Cornelia traz à vida de Fabian é o sonho – o dela é ser actriz, o dele é Cornelia -, mas também a ideia de futuro, algo que não existia na vida de Fabian, que era feita unicamente de presente.
este convite ao passado que Graf nos dirige é também um convite ao presente. Isso fica claro, não só na sua câmara que parece tão intemporal (saltitando entre o retrato e a revivificação), tão inquieta, tão longe do típico “filme de época”, mas também no modo como deixa irromper uma contemporaneidade impregnada de passado,
Viver em Berlim, viver nesta Berlim (a Berlim que conhecemos também de Berlin Alexanderplatz de Döblin e de Fassbinder), é embriagar-se com a vida. Pensar em viver e nada mais, é esse o plano sem plano de Fabian, Cornelia e Labude (Albrecht Schuch), envolvendo-se os três em jogos inofensivos, despreocupados, pueris. Muito diferentes do jogo perigoso que acabará por vitimar Labude, uma brincadeira com consequências trágicas, não só nos seus efeitos directos, mas naquilo que nos dá a ver do futuro – o professor que reconhece o brilhantismo de Labude, mas que é incapaz de reagir contra aqueles que provocaram a sua morte (talvez o tenham feito num acto de inveja?), acomodando-se perante um “reino dos bárbaros” que começa a desenhar-se num futuro muito próximo. É o desprezo da excelência em proveito de um acanhamento cobarde.
Vemos, pois, Labude sucumbir a esse jogo de uma maneira idiota, inútil, sendo vítima da mesquinhez e da pequenez que causarão, a breve prazo, outras inúmeras vítimas.
Mas todo este convite ao passado que Graf nos dirige é também um convite ao presente. Isso fica claro, não só na sua câmara que parece tão intemporal (saltitando entre o retrato e a revivificação), tão inquieta, tão longe do típico “filme de época”, mas também no modo como deixa irromper uma contemporaneidade impregnada de passado, materializada nos Stolpersteine que contemplamos demoradamente à saída do apartamento da baronesa Reiter. Se esses pequenos paralelos de face dourada, que podemos hoje encontrar nas ruas de Berlim, são feitos para tropeçar na memória de um passado negro, feito de discriminação e extermínio, no filme de Dominik Graf eles intimam-nos a tropeçar no presente.
São as ruas de Berlim que nos parecem familiares, que temos a sensação de reconhecer tal como as vimos com os nossos olhos, mas que simultaneamente nos lembram aquela que seria talvez a cidade mais fascinante da Europa de há 100 anos, essa cidade cheia de vida, de agitação, de novidade, de movimento, de futuro, de cinema. O cinema a que Cornelia quer pertencer, seja como Referendarin, lidando com os aspectos jurídicos da produção cinematográfica, seja como actriz (“mais uma?”, diz Labude). Ser actriz é também jogar um jogo, já que “representar” e “jogar” se reconduzem a uma só palavra – spielen. E não há momento mais tocante, entre a máxima proximidade e o máximo alheamento dos dois amantes, do que aquele momento em que Cornelia lê um texto carregado de realidade, de uma descoberta triste de que o amor que os une não chega, porque há um mundo além do mundo que eles constroem para si. Há algo de prosaico que se intromete na poesia – é preciso dinheiro. Vemos então Cornelia sozinha no plateau, recitando o seu monólogo, quando duvidávamos já da viabilidade do seu sonho de ser actriz, do seu talento. Mas entre jogo e jogo – será talento representar a realidade?
Quando, apesar de tudo, a reunião Fabian e Cornelia parece ser possível, tudo acaba por cair por terra. Cornelia esperando, sozinha, na mesa do café em que tantas vezes se encontraram. E ficamos apenas com a visão derradeira das palavras de Fabian que Cornelia nunca irá ouvir naquela tarde, as palavras que se perdem na água. E as palavras escritas que se perdem no fogo.