Então, o que se passa? O Duarte releu um texto do Andrew Sarris, “Dialogue of a Schizocritic“, e decidiu semi-plagiar o formato para falar do último Edgar Wright. Esse não é aquele em que o Sarris simula um diálogo com ele próprio a propósito de uma série de filmes medianos que tinha visto? Estás bem informado. E não termina com aquele remate memorável onde o Sarris se desafia a sumarizar o seu conceito de cinema em 3 palavras, ao que responde “Girls! Girls! Girls!”? Correcto outra vez. O que é que isto tem a ver connosco? É uma maneira de colocar em conflito os sentimentos mistos que o Duarte teve com o filme. Explica lá isso melhor. Parte dele gostou, parte dele não gostou. Portanto, as frases em itálico servirão para expressar uma delas e a outra não? Precisamente. Achas que o leitor alinha nesses dispositivos retóricos presunçosos e auto-indulgentes? A ver vamos. Então, qual de nós tomará a defesa do filme? Se não tiveres outros planos, podes ser tu. E tu serás a parte menos agradável? Chamemos-lhe “a mais franca”. E porquê este preâmbulo todo? Se queres brincar com o leitor, dá-lhe no mínimo as regras do jogo. Está feito. Avancemos.
Deixa-me começar. Em termos de comédia actual, poucos fazem um uso tão inteligente dos utensílios cinematográficos como o Wright. Queres dar um exemplo? Há um momento no The World’s End (É o Fim do Mundo, 2013) onde um grupo de amigos quarentões entra num bar para beber um copo. Há vários, se bem me lembro. É um gag recorrente. Um destes homens é abstémio e só irá pedir água... O que é que há de extraordinário nisso? O seguinte: ao invés de Wright executar uma cena de exposição insonsa onde este amigo abstémio dirá que já não bebe álcool ao grupo e ao bartender, serve-se da montagem para explicitar essa ideia e, a partir dela, criar um efeito cómico. Descreve-me como. O empregado começa a servir o grupo e Wright monta a cena da seguinte maneira: plano da alavanca de cerveja à pressão a ser puxada, corte para um plano visto do fundo do copo de cerveja com a bebida alcoólica a cair, novo plano da alavanca, plano com outro copo, alavanca outra vez, copo outra vez, e depois… E depois…? Botão com água de torneira a ser premido, corte para a base de um pequeno copito com o líquido límpido a descer. Não me cheira a nada de mais. Enganas-te: no cinema, é tudo. Não são diálogos ilustrados, é o uso de uma ferramenta cinematográfica – neste caso, a montagem – para passar uma ideia, uma emoção ou, na comédia, provocar um resultado humorístico. Qual é o teu ponto? Wright é um cineasta, não um ilustrador, e isso sente-se particularmente nas suas comédias onde a montagem, a realização e a fotografia são verdadeiramente parte do gag. É isso que o faz estar num patamar bastante superior de um Paul Feig ou um Adam McKay.
Baby Driver era um filme de acção musical, Soho é um filme de terror musical.
Mas Last Night in Soho (A Noite Passada em Soho, 2021) não é uma comédia. Eu sei, mas tens esta inteligência presente nele. Como no caso de… Como no caso daquela cena de dança onde ocorrem transformações alternadas das principais personagens femininas de diferentes épocas pelo manejo do fora-de-campo e do blocking, usando a saída de uma delas para fora do enquadramento ou a obstrução da câmara como motivo de troca entre uma presença e a outra. Recorda-me, como é que ele consegue isso? Uma pirueta e temos uma personagem, uma volta ao parceiro e temos outra, uma saída e reentrada para o interior do enquadramento e voltamos à primeira, um figurante que obstrói a câmara e regressamos à segunda. Porque é que isto é importante? Porque sugere a ligação entre ambas e a liberdade que encontram numa pequena dança, tudo num virtuoso e elegante plano-sequência. Provavelmente, um falso plano-sequência com batotas de pós-produção. Na maioria, não é. Mas, mesmo que fosse, não importa o que é falso no cinema. O que importa é a verdade que essa falsidade acarreta. Não te ponhas com aforismos que não tens jeito nenhum.
De seguida, há o sentido de ritmo polido característico de Wright. Sobrestima-lo. Palavra que não. Outra vez a cena de abertura do Baby Driver (2017)? Gloriosa, com a coreografia das manobras de street racing motivadas pelo tema de fuga: os movimentos rápidos, as derrapagens audaciosas, as curvas apertadas, as paragens bruscas, sempre ao som das notas, acordes, pausas e suspensões dos Jon Spencer Blues Explosion. O ritmo da acção é o ritmo da canção. E sobre o Soho…? A primeira noite da protagonista na nova casa, com os sinais de néon no exterior a iluminarem em cores alternadas o quarto e a caírem sobre o corpo da actriz, assim como o curto bailado dela rumo à cama, tudo com uma cadência calibrada por um tema de Cilla Black. Ai tão lindo. Troças, mas é essa interconectividade e sintonia rítmica entre a música e o cinema que me leva a afirmar: Baby Driver era um filme de acção musical, Soho é um filme de terror musical. As más-línguas dirão que se tratam de aglomerações de videoclipes. Não há nada da linguagem de videoclipes em Edgar Wright, pois essa limita-se ao bombardeamento imagético sensorial, à acumulação estroboscópica de imagens com pouco (ou nenhum) tecido conectivo e que podem ou não estar providas de um sentido rítmico-narrativo relacionado com a música. Se os filmes de Wright são videoclipes por terem uma playlist associada, então todos os musicais já feitos são videoclipes de duas horas. Em suma, é o sentido de ritmo da acção inspirado pelas canções que, para ti, torna o filme num musical? Percebeste o meu ponto.
É tudo? Não. Há o trauma do passado, a ambiguidade psíquica que paira como incógnita sem solução, a ambição ingénua e a decadência a que pode conduzir, os sonhos febris feitos de planos subjectivos caleidoscópicos e sobreimpressões fantasmáticas, Repulsion (Repulsa, 1965), Suspiria (1977) e “Alice do outro lado do espelho”. Pára com o delírio. Sabes que não basta citar. Mas Wright não o faz. Cita para criar algo seu. É um realizador que não ignora os que vieram antes de si, mas que também não se limita a organizar uma parada de referências para massajar o ego cinéfilo do espectador. Se tu o dizes… Já me alonguei demasiado. Avança tu.
Pego no sítio onde ficaste. Sim, Wright é um cineasta culto e que pretende empregar essa cultura para fazer algo com a sua marca. Suspeito é que, fora da comédia, lhe falta criatividade para contornar lugares-comuns dos géneros que trabalha. Quem precisa de exemplificar agora és tu. Se se vê uma chávena de chá numa cena cujo tom ominoso revela que é o clímax, não é preciso ter visto muitos filmes para compreender que ela está envenenada. Acho que vou citar a Diane Keaton no Annie Hall (1977): La-di-da, la-di-da… Wright, talvez por estar ofuscado com essa vontade de seguir as suas referências, não compreende que está a lidar com um cliché, que alguns dos filmes que viu são também conhecidos pela audiência, e que, por isso, a tensão que cria é não-intencionalmente desfeita pela reciclagem de elementos passados e como estes permitem antecipar o desenvolvimento da situação. Muito bem. Qual é a tua proposta? Arranjar equivalentes alternativos capazes de providenciar uma progressão semelhante. Vou citar a Keaton outra vez. Falo a sério, 125 anos de ficção cinematográfica e ainda há quem acredite que chá envenenado seja algo inesperado? Deve-se, então, acabar com chávenas de chá envenenadas no cinema? Não digo tanto, mas pode-se passar a usá-las de formas menos previsíveis e em cenas menos expectáveis. Não pensas que te estás a deixar levar só por um pormenorzinho? Ainda não acabei. Continua.
Wright teme a simplicidade e está ilusoriamente convencido de que quanto mais barulho, velocidade e pirotecnia tiver nos últimos minutos, melhor o final obtido.
Estás familiarizado com a expressão “menos é mais”? Um elogio à economia de meios e de como com ela se pode atingir o máximo efeito? Exacto, sou da opinião que Wright nunca a ouviu. Desenvolve, por favor. O meu maior problema com Soho, e que era o mesmo de Baby Driver, está no terceiro acto. Se neste último era demasiado acelerado e ruidoso, no primeiro é demasiado postiço no modo como sucumbe a todo aquele artificialismo tecnológico de VFX e CGI. Bom, é um filme mainstream, não é? Isso é ser condescendente para com a audiência, o de achar que só com um turbilhão de som e fúria é possível satisfazê-la. Tinha que vir Shakespeare. Para mim, Wright tem medo de ser modesto, sentindo necessidade de terminar com um estrondo, nunca com um gemido. E agora Eliot? Quando é que isto se tornou num diálogo com o Harold Bloom? O que quero dizer é que Wright teme a simplicidade e está ilusoriamente convencido de que quanto mais barulho, velocidade e pirotecnia tiver nos últimos minutos, melhor o final obtido. Concluindo, para ti, os últimos filmes dele são desequilibrados por uma necessidade de agradar à audiência com extravagâncias visuais e sonoras na última parte? Não só isso, como também o facto de a complexificar escusadamente com reviravoltas pouco lógicas e antagonistas de última hora, não se esquivando completamente a problemas de estrutura e caracterização.
Por onde passa a solução? Voltar a confiar nas personagens que tem, no envolvimento emocional que criou no espectador junto delas, e com isso um gesto de ruptura feito por elas, mesmo que simples, pode causar um grande resultado. Vês isso nas comédias dele? Sim. Nelas, para além da maior coerência do terceiro acto, há uma enorme atenção dada às decisões transformativas das personagens: o auto-respeito conquistado por um breve discurso de Scott Pilgrim ou a aceitação da idade adulta por alguns dos heróis em adolescência prolongada da “Trilogia Cornetto”. Em cada um destes casos, o envolvimento que tínhamos com o protagonista via-se recompensado pela mudança que este mostrava num momento-chave, tornando o estrépito que se acumulava à volta mero acessório. Infelizmente, nos seus últimos dois filmes, parece que é este estrépito o essencial e o protagonista o acessório. Pelo menos a partir de certa altura.
Podemos acabar em concordância e encontrar uma coisa que ambos tenhamos gostado sem reservas? Creio que podemos enumerar três. E quais são elas? Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy, Synnove Karlsen. “Girls, girls girls?” “Girls, girls, girls.”