Não constitui novidade para ninguém que Pedro Almodóvar gosta das mulheres. Não no sentido mais elementar, ou talvez mesmo nesse sentido em que os homens não pensam em primeiro lugar, quando pensam nas mulheres. Almodóvar adora-as, percebe-as (por dentro e por fora), compreende-as em todas as idades e independentemente do seu estatuto social, consegue escrever personagens femininas que se definem por uma linguagem corporal própria, pelas palavras que usam, pelas emoções que deixam transparecer, que até quando são fingidas podem ser ainda mais verdadeiras. Ele interioriza as mulheres, diferentes mulheres, todas as mulheres, compósitos de várias mulheres que Almodóvar terá encontrado na sua vida, nos filmes e na vida real.
Dois anos decorridos sobre a estreia do óptimo Dolor y gloria (Dor e Glória, 2019), este mais centrado num mundo de homens, e em vivências, sentimentos e relações do próprio Pedro Almodóvar, o realizador está de volta ao seu tema de eleição: o universo feminino, feminista, feito das alianças que as mulheres estabelecem entre elas, na vida familiar e no seu espaço de intimidade. Filme de mães, de avós, de filhas, de amantes, Madres paralelas (Mães Paralelas, 2021) é Almodóvar a filmar no seu meio natural de sempre.
(…) é impossível resistir ao modo como o filme está contado, à elegância e à agilidade que faz avançar a narrativa, ao equilíbrio das cores no ecrã, à sabedoria de Almodóvar para fazer descrições humanas ternas e vivas de cada personagem (…)
Um aspecto interessantíssimo na evolução do trabalho do realizador manchego é que podemos nele descortinar três períodos: o do Almodóvar adulto embora irreverente, que abarca as suas obras de afirmação e ruptura, assentes em pulsões e sentimentos exacerbados, que se prolongam até Kika (1993); vindo em seguida a fase do cineasta plenamente maduro, que abre com La flor de mi secreto (A Flor do Meu Segredo, 1995), e que é preenchida com filmes mais elaborados do ponto de vista estrutural, acompanhados de um rigor estético absoluto, obtido graças ao profissionalismo topo de gama em tudo o que concorre para o resultado em projecção, e que granjeou reconhecimento universal para títulos como Carne trémula (Em Carne Viva, 1997), Todo sobre mi madre (Tudo Sobre a Minha Mãe, 1999) ou Hable con ella (Fala com Ela, 2002).
O Almodóvar na casa dos 50 anos reunia apuro artístico a prestígio e popularidade internacionais. Daí que talvez não antecipássemos que a terceira idade do cineasta (contabilizada por volta dos 70 anos), trouxesse uma segunda maturidade ao seu cinema. Seria possível aperfeiçoar os sentidos de afinação de escrita (economia, clareza) e de estética (harmonia, sobriedade), indo ao encontro de um cinema marcado pela serenidade da exposição e dos ambientes (são maravilhosos os frequentes fundidos a negro que deixam ver no instante final a silhueta do rosto de Penélope Cruz), e por uma trepidação emocional mais terra a terra? Almodóvar provou que sim, e Madres paralelas aponta esse sentido.
Fiquemos com este exemplo esclarecedor. O espectador de Madres paralelas andará frequentemente à frente dos acontecimentos narrados, a previsibilidade da narrativa parece assumida. Com a nossa bagagem de filmes deste e de outros artistas do melodrama, conseguimos antever cada revelação, cada nova guinada do argumento, a explicação para um nome (Janis, de Janis Joplin), a situação da troca de bebés na maternidade, a relação amorosa que nascerá de um reencontro desejado ou de uma investidura solidária de papéis, em todos os episódios que compõem Madres paralelas até à exumação das ossadas das vítimas dos falangistas.
Mesmo que assim seja, e é, é impossível resistir ao modo como o filme está contado, à elegância e à agilidade que faz avançar a narrativa, ao equilíbrio das cores no ecrã, à sabedoria de Almodóvar para fazer descrições humanas ternas e vivas de cada personagem (é um filme de conversas, onde as personagens falam de si e das suas razões), e ao modo sintético e sentido usado para dar significado aos momentos de maior emotividade, aqui representados de forma contida e elíptica (uma cena de sexo pode ser mostrada com o esvoaçar de uma cortina vista do exterior do quarto onde o casal faz amor, e que terá por consequência o nascimento de uma das crianças do filme). Abraçamos a terceira idade do cinema de Pedro Almodóvar com os braços da nossa maturidade acrescida. A experiência vivida que os filmes recentes traduzem, comunica com a nossa maior experiência de vida.
Madres paralelas (Mães Paralelas, 2021) de Pedro Almodóvar é exibido em estreia nacional no dia 18 de Novembro, no Lisbon & Estoril Film Festival. O filme estreia nas salas de cinema no dia 2 de Dezembro.