Não poderíamos falar sobre este Ginza no onna (Mulheres de Ginza, 1955), de Kôzaburô Yoshimura, sem nos referirmos, antes de mais, ao gesto ousado de programar este ciclo dedicado a mestres japoneses desconhecidos, no qual o filme de Yoshimura é acompanhado de outros dois filmes do mesmo ano, Jochukko (O Menino da Ama, 1955), de Tomotaka Tasaka, e Jibun no ana no nakade (Cada Um na Sua Cova, 1955), de Tomu Uchida. Nada há de evidente na proposta de convocar o público, ainda que um público de cinefilia acérrima, para três títulos de autores cujo nome não provoca qualquer reconhecimento, filmes a preto e branco sem um factor “coolness” que possa oferecer stills apetecíveis para partilha. Nos dias que correm, vivemos na convicção de que aquilo que não vemos hoje, poderemos sempre ver amanhã num outro formato, e de que os eventos acabam mais por valer enquanto hábitos culturais / sociais do que pelo seu conteúdo (o que chama, não é o conteúdo, mas a situação – pessoas que vão a lugares onde encontram as mesmas pessoas que vão aos mesmos lugares). A este propósito, apetece convocar uma citação do Brideshead Revisited de Evelyn Waugh:
«Nunca vão ao Louvre», disse, «ou, se o fazem, é só porque uma das suas absurdas revistas “descobriu” subitamente um mestre que se adapta àquela teoria estética mensal. Metade faz manchas como Picabia; a outra metade quer apenas ganhar a vida fazendo anúncios para a Vogue e decorando clubes nocturnos. E os professores continuam a obrigá-los a pintar como Delacroix.» [Reviver o Passado em Brideshead, Moraes Editores, 1982, Tradução de Ana Maria Rabaça]
Num balanço final, podemos regozijar-nos pelo facto de ainda ser possível mostrar filmes que valem por si próprios, sem necessidade de outros “ornamentos”, e que tornam possível a reunião de uma “família cinéfila” numa pequena celebração do cinema. E fica a fome para descobrir de todo um mundo de filmes que permanece, ainda hoje, praticamente inacessível.
Feito este intróito, olhemos então para Ginza no onna. A nossa referência à família do cinema não era inocente, porque o conceito de família é, na verdade, uma das ideias fortes do filme de Kôzaburô Yoshimura.

Mais do que a família enquanto ninho acolhedor, o filme oferece-nos uma ideia de família em tudo perniciosa, desde logo na forma como conduz as mulheres que conhecemos na casa Shizumoto à sua condição de gueixas. Mulheres que foram entregues, logo em crianças, a uma casa de gueixas que pudesse assegurar a sua educação na arte de entreter os clientes masculinos. A família é ainda perversa no modo como condena estas mulheres a permanecerem neste estado, sendo disso exemplo a gueixa que, de forma inabalável, persiste em religiosamente comprar um bilhete de lotaria, numa tentativa vã de amealhar o dinheiro suficiente para que possa ter o filho a viver a seu lado. Paralelamente, a Madame que gere a casa de gueixas financia os estudos do seu protegido numa procura de criar artificialmente um laço materno, de forma quase ridícula, colocando um anúncio no jornal, em busca de candidatos à sua protecção. Mas esta relação é, na verdade extremamente ambígua, porque o papel do protegido Eisaku se confunde, algures entre protegido-filho e protegido-amante. Confusão que é tornada ainda mais clara quando a Madame e as restantes gueixas concorrem com a família de um cliente quando, chegando este ao aeroporto, chamam pelo “papá”, misturando papéis de filhos e amantes. Para esta ambivalência contribui ainda a postura extremamente blasée de Eisaku, comportando-se ele como um verdadeiro gigolô, esperando apenas o momento em que uma outra amante – neste caso, a literatura – seja generosa a ponto de poder financiá-lo e garantir a sua independência.
Aquilo que nos é dado a ver de Shizumoto, a residência de gueixas retratada no filme, é um mundo feito de pequenas e grandes preocupações, dos sonhos de família, de fama, de afecto, mas também de rotinas e minudências.
Atentemos agora numa outra família, menos evidente, mas que substitui, para estas mulheres, a família original. Não será também uma quase-família o grupo de mulheres que se reúne nesta casa, mulheres que entram e saem, que esperam, que comem, que conversam, que usam o telefone?
Ou não fosse a família o tema central do muito tchekhoviano Anjô-ke no butôkai (The Ball at the Anjo House, 1947), porventura o mais famoso filme de Kôzaburô Yoshimura, onde é narrada a decadência de uma família outrora abastada e enobrecida, vítima de um pós-guerra que já não guarda para esta família qualquer lugar, relegada para um último baile, ébrio de melancolia, onde se lembram os (bons) velhos tempos e se prepara o fim. Numa outra obra de Yoshimura, Itsuwareru seiso (Clothes of Deception, 1951), a família assume um poder condenatório, na medida em que as decisões do passado determinam a vida dos mais jovens. As duas irmãs, filhas de uma antiga gueixa, procuram, de forma diferente, conquistar a felicidade quase como vingança, mergulhando numa teia de relações que o passado teceu com perfídia. O nome que encontramos na assinatura do argumento de Ginza no onna, além de Niisan Takahashi, é o de Kaneto Shindô, o frequente colaborador de Yoshimura, e que com ele havia de fundar em 1950 a produtora Kindai Eiga Kyokai (assinando também o argumento de Anjô-ke no butôkai e de Itsuwareru seiso).
Quando falamos do constante regresso a uma ideia de família falamos também de dinheiro, já que se tratam de duas coisas que andam sempre de mão em mão – a necessidade de dinheiro para cuidar da família, para permitir formar família, tê-la por perto. Mas também como forma de afastamento, bem visível na magistral sequência em que a menina, Satoko, é vendida para uma vida de gueixa, de modo a que a família possa comprar uma vaca. A vaca passa a ocupar, na família, o lugar que era até então ocupado pela menina, por simples troca directa, a ponto de o animal vir até à estação de comboios despedir-se da jovem, quando esta parte em direcção à cidade.
Este mundo de mulheres é, em grande medida, um mundo desencantado, feito de um muito feminino pragmatismo.
Aquilo que nos é dado a ver de Shizumoto, a residência de gueixas retratada no filme, é um mundo feito de pequenas e grandes preocupações, dos sonhos de família, de fama, de afecto, mas também de rotinas e minudências. É, no fundo, uma desmistificação do deslumbramento e mistério que constituem a imagem da gueixa, os gestos de preparação dessa imagem, a lubricidade dos tecidos, da maquilhagem, dos ornamentos no cabelo – aquilo que é evocado numa belíssima passagem de O Cortador de Canas, de Junichirô Tanizaki, quando o autor enaltece o contraste entre o relevo e a leveza do crepe que envolve o corpo da mulher e a suavidade da sua pele quando tocada pelos dedos do homem. Este despertar dos sentidos, esta sugestão do tacto, não existem em Ginza no onna. Os quimonos que vemos têm um aspecto triste e pobre, expostos em manequins que não sugerem qualquer sedução, o seu rosto frio e vazio captado pela câmara num grande plano radicalmente desenlevado.
Este mundo de mulheres é, em grande medida, um mundo desencantado, feito de um muito feminino pragmatismo. As mulheres que aqui vemos, nas suas aspirações e na forma como perseguem os seus objectivos, por muito quiméricos que sejam, são em tudo semelhantes àquelas que conhecemos de filmes como Akasen chitai (Rua da Vergonha, 1956) de Kenji Mizoguchi (Kôzaburô Yoshimura é, aliás, frequentemente comparado a Mizoguchi, sendo muitas vezes considerado um “Mizoguchi menor”) ou Nagareru (Flowing, 1956) de Mikio Naruse. Ou, avançando um pouco mais no tempo e na geografia, as mulheres de Working Girls (As Profissionais de Sonho, 1986) de Lizzie Borden, em que o cenário é um bordel de Manhattan, mas em que as conversas, partilhadas no salão, giram em torno dos mesmos temas, uma espera permanente, enquanto o telefone não toca anunciando mais uma marcação de um cliente. Fazendo uso da frase com que recorrentemente a Madame de Working Girls saúda os seus clientes, “What’s new and different?” Aparentemente, não muito, apesar do correr dos anos.
Quanto aos ecos de Akasen chitai em Ginza no onna, cabe dizer que a ligação a Mizoguchi se faz pelos temas – uma indagação delicada, elegante sobre o lugar da mulher no Japão do pós-guerra –, mas também de forma ainda mais evidente num outro filme de Yoshimura, Ôsaka monogatari (An Osaka Story, 1957), já que se trata de um projecto inacabado do próprio Mizoguchi, que morreu antes de poder concretizar o filme.
Em Ginza no onna os homens são, como nos filmes que acima mencionámos, meros adereços, existindo quase exclusivamente fora da câmara, mas condicionando sempre a acção e as possibilidades de felicidade destas mulheres. Uma ausência que remete para The Women (Mulheres, 1939), de George Cukor, um filme habitado por mulheres – a começar pelo argumento de Anita Loos e Jane Murfin, adaptando a peça de Clare Boothe Luce – e em que os homens, apesar de mencionados, nunca são filmados.
Se estamos em território feminino, estamos também no terreno do melodrama, dos jogos de lágrimas. Não há momento do filme mais carregado do código do melodrama do que aquele em que Ikuyo, extremamente ferida pela traição de Eisaku, pela forma como ele categoricamente rejeita a sua dedicação, o seu amor (seja ele maternal ou uxório), lhe atira à cara o dinheiro que ele insiste em devolver. E que bela a contraposição entre a água dessas lágrimas e o fogo da irascibilidade que se seguirá! Estes elementos femininos que parecem confirmar a frase do Verdoux de Charles Chaplin – “Women are of the earth. Realistic. Dominated by physical facts”. Efectivamente, o fogo final é agregador de todas as vontades indomáveis destas mulheres, resumidas na determinação da jovem Satoko, que se dispõe a fazer tudo o que seja necessário para voltar a reunir-se com a sua família. Também Kotoe vê no fogo a derradeira possibilidade de satisfazer a ânsia de fama que a consome. O que o fogo acaba por provocar é a consumição de todos os sonhos, para que estas mulheres voltem à terra, e comecem a sonhar de novo. Mas o fogo é ainda libertação. Regressemos a Itsuwareru seiso e à cena em que a amiga de Taeko dirige a sua atenção para a arquitectura de Kyoto, poupada pelos bombardeamentos, mas que funciona como uma prisão, constituindo um passado que agrilhoa, o passado a que Taeko e Kimicho pretendem escapar, ainda que por caminhos distintos. E é a necessidade dessa determinação que as personagens de Ginza no onna já aprenderam.