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O centro do rio

De Raquel Morais · Em 23 de Novembro, 2021

Para a Clara

The river runs, the round world spins

Dawn and lamplight, midnight, noon.

Sun follows day,

night, stars and moon.

The day ends, the end begins.

Harriet, The River

O primeiro amor é provavelmente igual em qualquer parte do mundo, diz a narradora de The River (O Rio Sagrado, 1951), Harriet, que recorda a infância passada com a família nas margens do rio Ganges, em Bengala. Aquela sugestão estabelece uma ideia de vizinhança com outras experiências, ainda que não deixe de reconhecer a singularidade de cada lugar: o gosto da história variaria conforme a localização.

The River (O Rio Sagrado, 1951) de Jean Renoir

O filme, através da narrativa retrospectiva de Harriet, descreve constantemente um movimento entre o particular e o geral, o local e o universal. Mais do que uma vez, a personagem lembra o lugar da casa no mundo: numa carta colectiva para o capitão John, o primo americano, que chega para pôr em alvoroço as jovens raparigas, pede que se inscreva, “the little house, our village, Bengal, India, the eastern hemisphere and the world”.

Há na narrativa da rapariga, filha de uma família de colonos ingleses, que vive do dinheiro feito com a fábrica de juta que o pai dirige, uma certa ingenuidade no modo como valoriza a sua ligação às margens do rio onde diz crescer, e de que está, em parte, distante. A casa-grande e o jardim são um espaço privilegiado relativamente às ruas da aldeia, onde as crianças caminham descalças.

O fascínio de Harriet pela ‘cor local’ e sua visão idealizada daqueles anos (anos anteriores à independência da Índia, em 1947, data depois do qual o filme se realiza) tem uma série de contrapontos, nomeadamente ligados aos que vivem em relação directa com o rio, pessoas e animais, que ali nascem e morrem. Quando, por exemplo, a voz da narradora sugere que, “along the river were villages and people living and working., content in their traditions which had not changed for thousands of years”, é impossível não ter presente as imagens que vimos imediatamente antes, de trabalhadores indianos em tronco nu que carregam fardos de juta em cima da cabeça.

Nessa mesma sequência, a narradora anuncia que esses trabalhadores recebem, por cada fardo que transportam, uma concha (cowrie), objecto que serve de moeda e que surge como indício menos poético da cultura milenar de que se fala acima. Estando ainda em uso em Bengala no início do século XX, as cowries existiam como instrumento de troca paralelo à rupia, divisa oficial, então adoptada pelo império britânico. Vemos o pai de Harriet comprar um papagaio por quatro annas (um quarto de rupia) no bazar da aldeia, revelando-se assim a discrepância de valores através de dois sistemas monetários. Torna-se evidente a existência de dois lados: o rio dos pobres e o dos ricos; o dos locais e o dos colonos; o da cultura hindu e o da cultura ocidental.

O filme procura inscrever-se entre duas margens, estando repleto de personagens que habitam lugares de fronteira

No entanto, o que se tenta fazer não é censurar o sistema vigente, apesar de alguns comentários e perguntas mais difíceis que surgem ao longo do filme, geralmente através do capitão John, e que servem de crítica disfarçada. De cada coisa (como de cada personagem), se apresenta quase sempre mais do que uma face. O exemplo mais representativo disso será a história de Bogey. O seu desaparecimento surge como uma espécie de vingança do lugar contra a soberba do menino branco, que invade um território que não conhece e que não é seu. Mas esta é apenas um dos lados do atrevimento do rapaz. Mr. John lembra o que de importante existe naquele acontecimento. Simultaneamente, ele representa uma tentativa de aproximação a um modo de vida local, que falha, mas que encontra, como veremos, outras formas de continuação.

O filme procura inscrever-se entre duas margens, estando repleto de personagens que habitam lugares de fronteira, o que me recorda uma afirmação da escritora e realizadora Marguerite Duras, também ela criada numa colónia asiática do país onde nasceu, à semelhança da autora do romance que inspirou o filme de Renoir, a britânica Rumer Godden. Em Les Lieux de Marguerites Duras, de Michelle Porte (1976), a autora fala dos anos passados no Vietname, à época Indochina francesa, e da espécie de enclave identitário que habitava: enquanto criança e adolescente teve sempre a impressão de ser, à semelhança de todos os seus amigos, vietnamita. Perceber que era francesa e que era esperado que se comportasse enquanto tal foi uma aprendizagem difícil.

Encontramos algo parecido em Bogey, o único rapaz da prole de que Harriet faz parte (será o nascimento de uma rapariga, mais uma rapariga (!) que o final do filme festeja). Quando a ama lhe diz, “one day you’ll have to learn how to spell. Imagine a man who couldn’t go to office and sign letters and read the newspaper”, o menino anuncia desde logo não querer fazer parte da ordem dos adultos: “I don’t want to be any of those men”. Bogey prefere a natureza, não gosta de brinquedos, mas de se entreter (não com pouca crueldade) com lagartos e tartarugas. Tem por melhor amigo Kanu, um menino indiano com quem partilha uma vida diferente da das raparigas. É diferente por ser rapaz e, consequentemente, poder passar parte dos seus dias fora dos limites do muro da casa.

Mas a desobediência e a recusa em adoptar um comportamento ordeiro não é exclusiva ao lado masculino de The River. Parte da riqueza deste filme reside no facto de nenhuma das suas personagens ser simples ou feita de uma só face. Todas contêm um traço qualquer que é partilhado com outra figura, numa espécie de continuidade entre os elementos da história, aspecto a que regressarei mais adiante.

Harriet, como Bogey, é arisca, gosta de andar descalça porque, diz, “the grass tickles my toes and makes me think”. Para ela, o contacto com o mundo natural mantém o pensamento activo, sugerindo assim uma aproximação à natureza que aprende através da sua observação dos costumes hindus. Como Duras aponta no seu depoimento, há uma espécie de indefinição que caracteriza o mundo das crianças, um mundo alheio às regras e expectativas rígidas a que os adultos têm de se sujeitar.

Pensemos nos dilemas de Melanie, filha de uma indiana e de um inglês, que a envia para o colégio pertencente a um convento depois da morte da mãe. O pai admite não saber onde exactamente é o lugar da rapariga, dividida entre duas culturas, aceitando finalmente que ela procure o próprio caminho através da adopção dos costumes indianos. Mas a escolha que a jovem faz, ao regressar do convento, de se integrar na cultura da mãe, implica sacrificar um lado da sua existência, nomeadamente o afecto que tem pelo capitão John. O dilema de Melanie, provavelmente um dos mais tortuosos do filme, é também o mais silencioso.

Tudo é parte de tudo, como intui no dia em que a alegria de lançar papagaios e a de ter perto o capitão se confundem no mesmo encantamento.

Aproxima-se, nesse aspecto, da resignação serena que encontramos na mãe de Harriet relativamente à sua condição de mulher e ao facto de ter de gerar os filhos do homem que ama. Fala à filha desse sacrifício como da mais bela das missões, apesar da violência física que a própria Harriet intui envolver todo o processo. Perante a perspectiva desse destino, a rapariga revela o seu desdém por corpos (em parte uma invectiva contra aquilo que ter um corpo de mulher lhe impõe) e o desejo de ser um criado de bordo ou uma exploradora, algo que lhe permitisse fugir de um papel que não escolheu.

Nesse desejo de fuga, parece-se com o capitão John, herói de guerra mutilado que não tem como viver num mundo de paz, e que se tornou “a stranger to his own people”. Tal como as raparigas a quem a sua presença provoca dores de crescimento, forçadas pelas paixões a sair da infância e entrar na idade adulta, também John passou por algo que torna impossível o retorno, como Valerie, que lhe anuncia a propósito de uma outra forma de perda da inocência, o fim da infância, “I didn’t want it to change… and it’s changed. I didn’t want it to end… and it’s gone”.

John erra assim de lugar em lugar, procurando sem grande esperança um apaziguamento improvável, sempre em luta com as coisas, como lembra Melanie, que lhe aponta a inutilidade desse combate. De novo, a rapariga, apesar da sua luta interna, acolhe com resignação o quinhão que o mundo lhe atribuiu, aceitando os espaços intersticiais como habitáveis: “suppose I like to be nowhere”, diz ao pai a certa altura.

Encontramos nesta posição limiar outras figuras: o pai ou Mr. John, que falam e lêem hindi, estando de alguma forma integrados na cultura local, mas que inevitavelmente representam também a cultura imperial; Nan, a ama indiana que Harriet descreve como “the bridge to life… bringing us back from dreams to reality”; o sique Ram Singh, amigo e protector das crianças, aquele que guarda a passagem entre a casa-grande e o exterior.

Falei acima da distância, parcial, de Harriet em relação ao rio. Importa aqui esclarecer a natureza dessa distância. Em The River, apesar de a narrativa nos chegar através de um olhar individual, a vivência que esse olhar descreve é colectiva: existe-se com o outro e, muitas vezes, através do outro. Pensemos na emblemática cena em que Harriet vê o capitão John beijar Valerie, e toma aquele beijo, recebido através de outra pessoa, como seu – e o primeiro.

Tal como a sua mãe, que vive através dos filhos, Harriet, cuja mente se move constantemente no domínio da narrativa, vive através das suas histórias. Apesar da sua ingenuidade (afirma conhecer tudo sobre a vida; quer escrever sobre Krishna, mas tão pouco sabe soletrar o seu nome;), a rapariga aprende algumas coisas sobre a vida no rio, e participa dela, observando-a. Sugere-se assim a possibilidade de uma existência mediada, iniciada através do olhar e continuada pela escrita. Esta é uma abordagem possível à realidade exterior, que não estará muito distante do próprio processo de chegada de Jean Renoir à Índia, e que surge precisamente como uma continuação da aproximação ao lugar que Bogey tentava, curioso e inábil como Harriet: “I wonder what the other fishes are thinking”.

Harriet tem um entendimento apurado acerca do modo como as coisas se ligam e fazem parte umas das outras, como anunciava na sua carta: “the little house, our village, Bengal, India, the eastern hemisphere and the world”. Aprende essa ligação entre as coisas por via dos hindus, para quem, diz “all the universe is God. And since God is everywhere, it is only natural to worship a tree, a stone, a river”. Tudo é parte de tudo, como intui no dia em que a alegria de lançar papagaios e a de ter perto o capitão se confundem no mesmo encantamento.

A walshiana Inês Lourenço, num texto publicado aquando da morte do escritor John Berger, sugere que Jean Renoir, “que cresceu nas margens do Sena, ‘pintou’’ a sua infância noutros corpos à beira do rio Ganges”, reconhecendo a mesma ideia de vizinhança que Harriet constantemente aflora. Aquilo que mais parece atraí-la no lugar onde cresceu é uma ideia de conservação e manutenção de uma ordem milenar, no interior da qual as coisas recorrem e são de algum modo transmissíveis, uma ordem onde “babies can be born again, and again”, onde os movimentos são circulares, como o rangoli que abre o filme, desenhado com farinha de arroz pelas mulheres. Tudo volta para o sítio de onde veio: “arisen from the bed of the river, Kali returns to the river. Clay goes back to clay”.

As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. The River é parte dessa lista.

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1950'sJean RenoirJohn BergerMarguerite DurasMichelle Porte

Raquel Morais

“Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se afastam/ para não criar, todas as noites, o problema da opção/ e evitar a humilde perplexidade dos moradores?/ Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,/ que tortura lançam no Méier!”

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