Entre os dias 30 de Novembro e 8 de Dezembro, o Cinema São Jorge recebe o ciclo Outsiders – Cinema Independente Americano, programado por Carlos Nogueira e produzido pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Serão dias intensos, com uma média de dois filmes por dia e uma masterclass da autoria de um dos mais prolíficos cineastas independentes da sua geração, Joe Swanberg, agendada para a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, no dia 7 de Dezembro (terça-feira), às 17h00 (a entrada é livre). Entre as sessões, há uma que queria destacar: no dia 4 de Dezembro (sábado), às 21h30, no São Jorge, passam 7 curtas-metragens dos irmãos Safdie, muitas delas inéditas em Portugal, sendo uma delas o seu trabalho mais fresco, no que é uma reedição da colaboração mais brilhante até à data do seu cinema, ao lado de Adam Sandler. Proponho-me revisitar o universo Safdie precisamente a partir deste acontecimento dentro de um ciclo que é, todo ele, um grande happening cinéfilo.
Pode parecer fácil a tarefa de situar a proveniência do cinema dos Safdie, mas a equação do seu cinema não deixa de ser divertidamente complexa, propiciando “acasalamentos” singulares, desde logo, nos textos críticos que possamos escrever sobre um ou um conjunto dos seus filmes. Digamos que há qualquer coisa de Woody Allen, mas a tensão e violência psicológica são, por vezes, de cortar à faca, lembrando Martin Scorsese ou – mais um nova-iorquino – Abel Ferrara [este último conta, inclusive, com um cameo no magnífico Go Get Some Rosemary (Vão-me Buscar Alecrim, 2009)]. Podemos dizer que há qualquer coisa do realismo social europeu, à maneira de uns (outros irmãos) Dardenne, mas as obras dos Safdie têm alma, são airosas e sabem como cozinhar uma boa piada ou uma boa partida – há um sentido burlesco e doses de comédia nonsense capazes de levar os Marx (outros irmãos) para as ruas de Nova Iorque, à maneira do velho programa de reality TV Candid Camera. Posto isto, o que nos diz, sobre este universo em expansão, o conjunto de curtas-metragens – quase todas realizadas antes da consagração internacional obtida com Good Time (2017) e Uncut Gems (2019) – contemplado por este ciclo muito bem intitulado Outsiders? Desde logo, trata-se de uma espécie de sneak peak para aquilo que os irmãos têm vindo a aperfeiçoar nos últimos anos. Não digo isto em sentido depreciativo, como se fossem “primeiras e incipientes tentativas”, mas antes, usando a metáfora vinda do mundo dos perfumes, “amostras” de “o mundo dos Safdie” ou, melhor ainda, introduções sobre como esse mundo se mexe e gesticula.
Assim sendo, neste ciclo de curtas, deparamo-nos com pequenas crónicas acerca de como vivemos ou (sobre)vivemos nos anos zero e dez do novo milénio, estando, portanto, os irmãos Safdie bastante alinhados com a cena indie americana desse mesmo período e sobre a qual o ciclo The Outsiders nos surge agora em jeito de montra cinéfila. Relações a fazerem-se ou a desfazerem-se, só que, fazendo-se ou desfazendo-se, elas todas apresentam-se quebradiças, transpirando nestes filmes uma insegurança generalizada, quase endémica, com isso de se ser adulto. O surpreendente The Black Balloon (2012) – o mundo visto pelos olhos (?) de um balão preto, pós-lamourissiano, mais ou menos providencial, espécie de deus ex machina só que sem capacidade de realizar verdadeiros milagres, pois apenas tem a capacidade de se “intrometer” nas vidas e alterá-las um pouco – tem um momento em que uma personagem diz para a outra: “Gosto de ti como ser humano, mas odeio-te como pessoa”. Não sabemos bem onde acaba o ser humano e começa a pessoa, mas os Safdie são curiosos observadores de ambos, isto é, tanto da pessoa que habita o ser humano como do ser humano que habita a pessoa. A principal característica destas pessoas e destes seres humanos é, como já disse, “eles hesitam” e, como tal, não se movimentam e agem de maneira rectilínea. À laia de Rossellini, os Safdie seguem por norma uma personagem nas suas indagações, podendo dizer-se que os seus filmes são o triunfo de um street cinema verdadeiramente livre e imprevisível. Consubstanciam elogios ao acidental, ao não-planeado, e adoram perambular pelo espaço, saltitar e, ao moverem-se assim, livres, desdobram-se em possibilidades narrativas nunca plenamente satisfeitas mas também – essa é a magia! – muito raramente frustrantes para o espectador menos formatado – bem pelo contrário, já que este street cinema é, ao mesmo tempo, muito humano e muitíssimo cinético, de uma vitalidade contagiante, quase transbordante, por “vir de dentro” das histórias, ou melhor, por se alimentar da energia (que resta) das personagens.
Temos uma história de vagabundagem encontrada tanto na personagem “solitária” de The Acquaintances of a Lonely John (2008) como no “nómada” à espera de uma boleia de We’re Going to the Zoo (2006). O primeiro é pratagonizado por Josh, o segundo por Ben. Ambos os filmes, eivados de uma estética e dramaturgia lo-fi, quase artesanal, são sobre personagens à procura de alguma forma de companhia. Talvez o título mais comovente deste grupo – ainda sinto isto, agora que o revejo pela terceira ou quarta vez – seja John’s Gone (2010), curta que teve alguma circulação internacional (eu vi-a pela primeira vez no IndieLisboa, sendo que se havia estreado antes no Festival de Veneza). Protagonizado por Ben, é surpreendente pelo modo como a acção vai sendo construída entre o mundo lá fora, onde John “erra” à procura de coisas para depois as vender na Internet, e o mundo cá dentro, o do “apartamento-feira” onde John recebe amigos, a (ex-)namorada, alguns clientes mais curiosos e fiáveis, vizinhos pitorescos ou nem tanto, etc. É no apartamento, durante um almoço descontraído com um amigo e a (ex-)namorada, que John “se desfaz” emocionalmente, transformando-se, subitamente, esta história de solidão e sobrevivência em Nova Iorque num conto sobre o luto. Há a melancolia associada à acumulação da mercadoria para “despachar” online e há a dor profunda de se perder quem nos trouxe a este mundo. É uma combinação de acções, que, a meu ver, expressa bem o movimento típico do cinema dos Safdie: errância, acumulação, depois, mais errância e mais acumulação, e, de repente, pumbas!, como um soco, uma emoção em estado bruto, que dificilmente não comunica intimamente connosco. Não me entretenho apenas com um jogo de palavras se disser que todos estes filmes são sobre partidas: personagens feridas que partem ou querem partir, mas que não conseguem fugir à sua situação, por isso, distraem-se, algo impotentes, com piadas e interacções mais ou menos benignas, como quem dança timidamente à beira de um abismo qualquer (um abismo interior, entenda-se).
O filme Goldman v. Silverman (2020), o único realizado depois dos sucessos recentes dos irmãos, reedita a colaboração com Adam Sandler no pós-Uncut Gems, a melhor e mais poderosa interpretação da sua carreira e sobre a qual Daniel Day-Lewis himself confidenciou ter ficado siderado. É porventura o menos significativo dos títulos aqui reunidos, mas o essencial está lá, vertido na história de uma rivalidade sui generis entre artistas de rua, em plena cidade de Nova Iorque. Nada de especial acontece, apenas o desentendimento, apesar de tudo moderado, e “o documentário” sobre o que se passou, sem se resolver, fechar ou comentar verdadeiramente nada. Pouca coisa, mas essa “pouca coisa” sempre foi a matéria-prima favorita do cinema dos Safdie e, com ela, fizeram e seguem fazendo autênticas pérolas cinematográficas.