Consulte: Palatorium do dia 19 de Novembro.
Novo palatorium deste forte mês de Novembro. Os acrescentos são os de Benedetta (2021) de Paul Verhoeven, que não convence os walshianos, novas notas de Daniela Rôla e João Araújo para o filme Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait (As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos, 2020) e uma bola preta de João Araújo para Passion Simple. Nos comprimidos cinéfilos temos a “resposta” de Duarte Mata ao pouco entusiasmo de Daniela Rôla por Spencer (2021) de Pablo Larraín e a pouca crença de Ricardo Gross na loucura obscena do filme de Verhoeven.
Esta é a história de um vestido e o poster do filme, que terão visto por aí, sabe disso. Na verdade, Pablo Larraín tem andado a contar histórias de peças de roupa icónicas. Em Jackie (2016) tínhamos o tailleur cor-de-rosa de Jackie Kennedy, em Spencer (2021) temos como personagem principal o vestido Chanel envergado por Kristen Stewart, que encarna aqui a princesa Diana. Mas se o vestido que é estrela do filme é uma réplica magnífica do original desenhado por Karl Lagerfeld em 1988 (é um vestido Chanel a viver, solitário, num mundo composto de casacos Barbour), já Kristen Stewart dá-nos uma réplica da princesa Diana menos satisfatória, feita de trejeitos e tiques irritantes – o filme não consegue “vender” esta Diana a quem seja fã da princesa, mas também não é convincente para quem não seja fã. O que nos leva a reflectir sobre os propósitos de Larraín, já que nunca sentimos que ele próprio goste da sua personagem. Será que ele procura, deliberadamente, testar a nossa paciência com a princesa? Veja-se o amor que é dedicado à comida, a começar logo pelas cenas iniciais, e todo o desprezo que as magníficas preparações gastronómicas suscitam junto de Diana. A pessoa que temos diante de nós aparece como uma criança caprichosa, que leva todos ao ponto de exasperação (até mesmo o filho mais velho tenta “temperar” o comportamento irascível da mãe). No fundo, tudo o que temos é uma carinha laroca com problemas, que procura curar as suas nevroses com roupas sofisticadas e que necessita de rodear-se de pessoas que confirmem a sua beleza. Isto ainda que a música de Jonny Greenwood tenha criado uma magnífica paisagem sonora de absoluto encarceramento, capaz de nos privar de ar ainda mais do que a máscara que somos forçados a usar na sala de cinema. E de Diana não há também fuga, sendo a sua presença asfixiante, já que quase não há uma cena do filme de que ela não faça parte. Enfim, se é para acompanharmos Kristen Stewart num repasto de fast food, preferimos o hamburger de Certain Women (2016) ao KFC de Spencer.
Daniela Rôla, 19 de Novembro
Uma cena de tribunal. Breve, como convém. Por sobre a bancada dos juízes lê-se a inscrição “a lei é igual para todos”. Igual para todos, será, mas cada qual é infeliz (culpado) à sua maneira. Em Tre Piani, reencontramos o Moretti sentimental e com a ternura dos 60 e mais anos, já evidente na sua anterior longa-metragem de ficção, Mia Madre (Minha Mãe, 2015), mas aqui sem qualquer resquício de humor que permita respirar dentro e fora desta litania de vidas familiares cruzadas e em escala (no sentido em que todas as personagens habitam os três andares de um só prédio).
No interior da fachada que preenche todo o genérico inicial, existem pessoas que passam por problemas idênticos aos nossos: que têm medos, inseguranças, fobias, fantasias, desejos, mágoas, tentações, preconceitos e frustrações, sendo por isso aquele imóvel a representação simbólica de um mundo confuso de afectos e ansiedades como aquele em que vivemos. Filme mosaico que descreve um périplo romanesco de dez anos, Tre Piani tem a equilibrar o seu conjunto de momentos dramáticos e de gravidade moral, uma realização sóbria e a música discreta de Franco Piersanti. Alguns verão nele uma cine-novela para adultos, mas se é de cine-novela que se trata, saibamos apreciar a qualidade com que é cerzida a narrativa, e o trabalho de uns quantos espantosos actores (Riccardo Scamarcio, Margherita Buy, Alba Rohrwacher).
Trata-se de um drama cerebral, mais próximo da elaboração da literatura, que da comoção tangencial à vida que tanto nos tocara em La stanza del figlio (O Quarto do Filho, 2001).
Ricardo Gross, 19 de Novembro
Em Censor (2021), de Prano Bailey-Bond, coexistem (de forma pouco pacífica) dois filmes sobre a mesma pessoa, Enid (uma misteriosa Niamh Algar): primeiro, um filme que detalha a vida de uma mulher que trabalha no British Board of Film Classification (BBFC), encarregue de ver uma série de violentos e sórdidos B movies (e Z movies), de forma a atribuir-lhes uma classificação etária e sugerir cortes nesses filmes (caso pretendam baixar essa classificação ou mesmo garantir a certificação para serem publicados); no segundo, o filme constrói o retrato de alguém que perdeu enquanto muito nova uma irmã em circunstâncias misteriosas, e que vive ainda sob o efeito traumático desse acontecimento. Ao longo de Censor, esses dois caminhos vão aproximando-se, até se atropelarem um ao outro, ou seja, até a realidade ser perturbada pelas imagens violentas que assombram o quotidiano de Enid em frente a um projetor – imagens que encontram assim uma ligação ao seu passado. A realizadora Prano Bailey-Bond é aqui hábil a criar um ambiente claustrofóbico, prestando homenagem à cultura dos filmes de terror e à sua estética, sem esquecer a crítica social, com referências às políticas liberais de Tatcher, a misoginia prevalente no ambiente de trabalho e o medo em relação aos video nasties (filmes straight-to-video de baixo orçamento, repletos de gore e violência sexual) infectarem o imaginário colectivo – um cenário de repressão vinda de todos os lados. Porém, na segunda parte do filme, quando este se aproxima da interioridade da personagem principal, as motivações desta ofuscam-se, como se essa fosse a única forma de manter o mistério, e Censor aproxima-se dos filmes que homenageia mas aproxima-se também de um exagero paródico, em que a violência aparece apenas pelo seu valor de choque, sem que nada o sustente. Se Censor parece desviar-se do promissor conceito inicial e perde-se pelo caminho, há pelo menos que louvar o risco em visitar esse exagero, sem se levar demasiado a sério.
João Araújo, 19 de Novembro
É um facto certo e incontestável que Gal Gadot é a mais bela mulher do mundo. Claro que o caro leitor poderá rejeitar a afirmação anterior. Para cada facto, há sempre os seus negacionistas. No entanto, espero que não recuse uma outra mais consensual, a de que a actriz tem aquela coisa rara capaz de imortalizar o seu portador quando eficientemente usada: star quality. Mas Gadot não é só uma estrela, é uma constelação inteira, uma Andrómeda nascida e criada em Israel cuja ofuscante luminescência se tornou demasiado intensa para o observatório astrológico de Hollywood não reivindicar para a sua carta celeste. Como tal, quando ela está em cena, até as maiores nulidades cinematográficas encontram uma breve oportunidade redentora. O que salva Criminal (Criminoso, 2016) da peremptória bola preta? Gadot a sorrir e passear no areal. O que resgata Keeping up the Joneses (Vizinhos Espiões, 2016) do completo oblívio? Toda a sequência em que Gadot experimenta lingerie num provador. O que torna a DC menos cinematograficamente tóxica do que a sua rival Marvel? Creio que não preciso de responder. É óbvio, mas há que dizê-lo: nenhum filme com Gadot será completamente mau porque a sua harmonia de formas, fotogenia, carisma e personalidade simplesmente não o tornam permissível. E assim é o caso com Red Notice, filme cujos problemas são tantos: o CGI obsoleto (despoleta vergonha alheia uma cena numa praça de touros), o argumento de humor repetitivo, a realização previsível, sensaborona e ocasionalmente inepta quanto ao tratamento do espaço… E, no entanto, chega uma olhadela para o poster para ter a certeza: como é que ver esta Galateia moderna de vestido vermelho, olhar sedutor e perna descoberta não promete que o eventual tempo investido no filme não seja totalmente perdido? A primeira impressão não desaponta e alguns dos melhores momentos do cinema deste ano poderiam todos começar com “Gadot a…” com base em Red Notice: Gadot a esticar as pernas, Gadot a soltar o cabelo, Gadot a lutar descalça, Gadot a dançar o tango.
Não há melhor razão para ver mediocridades do que a ilusão fornecida de estar na companhia de obras-primas. Gadot relembra, portanto, que também vamos ao cinema porque nele tudo é mais bonito, mais elegante, mais sexy, uma passerelle olímpica de 24 fotogramas por segundo onde desfilam pequenas Afrodites e Adónis para os comuns mortais que nós somos. Já sei, alguns chamarão a isto objectificação das mulheres, male gaze ou o raio que o parta. Não preciso de responder a esses citando Truffaut e Sarris. Basta-me dizer que a História da Arte é também a História da Beleza Feminina: Vénus de Willendorf e a de Boticelli, Olympia e A Maja Nua, Mona Lisa e Rapariga de Brinco de Pérola, Dama com Arminho e Retrato de Madame X. A representação e idolatria de mulheres belas faz parte da história da Humanidade desde o seu começo, e a sétima arte é também mais uma forma respeitável de estender esse bendito culto. Por isso, como reprovar Patrice G. Hovald quando escreveu, nos Cahiers du Cinema, sobre Ava Gardner: “Amo-te, Ava, e nada me parará de dizê-lo. Que importa a história em que estás, pois o que me impressiona são os movimentos do teu corpo no ecrã.”? Digam o que disserem, no cinema, será sempre tão importante falar de expressões, gestos e atributos estéticos de uma actriz como de travellings, zooms e plongés. E se dúvidas houver, vários tempos da sua História bastam para justificá-lo, não sendo preciso mais do que recorrer a uma letra duas vezes em cada um deles: o tempo de BB (Brigitte Bardot), o tempo de CC (Claudia Cardinale), o tempo de MM (Marilyn Monroe). Agora é o tempo de GG. Agora é o tempo de Gal Gadot.
Duarte Mata, 19 de Novembro
O único cineasta a dar bom nome ao biopic no cinema contemporâneo chama-se Pablo Larraín. O género mais ilustrativo, académico, maniqueísta, simplista e previsível (cujo único propósito de existência parece ser o de propiciar pequenos carecas nus dourados aos seus actores) encontra no realizador chileno outro tom, respiração, fulgor, energia e imaginação. Pode-se dizer que Larraín faz menos biopics do que anti-biopics: ao invés de olhar para a vida inteira da personagem escolhida, moldando um filme didáctico e/ou hagiográfico que explane uma conduta moralmente exemplar face às adversidades encontradas, Larraín prefere seleccionar um período muito específico da vida dela que permita a criação de objectos cinematograficamente mais singulares, pessoais, criativos e verdadeiramente interessantes. Assim, apesar dos títulos enganadores, Neruda (2016) era um filme pós-moderno de caça ao homem com base na fuga do aclamado poeta do seu país-natal, Jackie (2016) foi um retrato íntimo sobre o luto conjugal da infeliz viúva de JFK, e Spencer (2021) surge agora como um filme de terror expressionista em torno dos dias cinzentos que levaram à separação da Princesa Diana e do Príncipe Charles.
Não é por acaso que Spencer começa por traçar um paralelismo entre as forças armadas que escoltam os alimentos à cozinha do palácio real e o corpo de cozinheiros, empregados e assistentes que irá confeccioná-los. Desde a primeira cena que somos introduzidos num mundo opressor de austeridade militar, arquitectura sufocante, composições autocráticas, comportamentos rígidos e música dissonante, com o silêncio e a vigilância a serem componentes ameaçadores constantemente relembrados ao ponto de funcionarem como estratégias de intimidação. O argumento sólido do habilidoso Steven Knight constrói a sua densa teia de metáforas (de cavalos a moedas de troca, passando por faisões) que de algum modo reflictam a despersonalização e fachada teatral que se espera que uma princesa inglesa adopte na sua conduta, qual títere sorridente da realeza britânica. Contra tudo isto, surge um outro elemento de significado simbólico: o casaco do pai de Diana e as reverberações do passado que acarreta, recordando à princesa a identidade, confiança e independência que aprenderá a reencontrar praticamente sozinha neste cenário de ansiedade e humilhação. Spencer é, portanto, um filme de prisão concentrado num palácio que nunca deixa de estar do lado da prisioneira; e é também um exercício claustrofóbico em torno da psique de uma figura histórica trágica, especulando sobre os efeitos psicológicos e emocionais que este ambiente nocivo habitado por autómatos de carne e osso estava a provocar na sua heroína, tornando o espaço um espelho do estado mental (com os seus pesadelos, pensamentos e alucinações) da protagonista diante de todo o cerco aristocrático que em volta lhe foi montado. O resultado final está, enfim, mais próximo de Repulsion (Repulsa, 1965) ou The Shining (Shining, 1980) do que qualquer pastelão anónimo com que todos os anos somos presenteados nas awards seasons. Finalmente, resta referir que o amor evidente de Larraín pela sua personagem o leva a terminar o filme numa nota inspiradora de libertação que fará o espectador ouvir um certo tema clássico dos Mike and the Mechanics de maneira ainda mais entusiasmada daí em diante.
Duarte Mata, 25 de Novembro
À promessa de provocação o filme corresponde plenamente. A freira Benedetta Carlini (Virginie Efira) descobre o prazer da carne quando se descobre para a noviça Bartolomea (Daphne Pataki); o prazer de tocar e de ser tocado que incendeia os corpos cativos pelo prazer de olhar e de ser olhado. Duas belas mulheres que se interpenetram na inóspita cela de um convento. O êxtase sexual de Benedetta também se liga à mitomania da personagem: santa do pau oco que afirma ter visões da sua reunião com Jesus Cristo (e um Cristo superstar, capaz de actos da maior valentia); que faz espectáculo dos estigmas que lhe sangram as mãos, pés e cabeça; e que atira imprecações como se estivesse possuída pela voz de Deus. É o carnaval blasfemo de Verhoeven nos momentos de maior fulgor.
Então por que nos parece este retrato de uma religiosa em chamas, tão morno grande parte do tempo? Benedetta é grosso modo um filme de aventuras, episódios de uma vida onde uns vêem Graça e outros apontam a heresia, e de um país, a Itália do século XVII, em vésperas de conhecer a matança da peste. O enquadramento romanesco é filmado com a qualidade anónima do cinema proto-industrial. A utilização da música é idêntica ao mais esquecível dos telefilmes. Paul Verhoeven volta a rodear-se de personagens descartáveis como se Benedetta fosse a variação nos antípodas de Showgirls (1995): introduzindo a paródia no seio da Igreja Católica; apresentando a caricatura estafada de tão fácil que é. Estamos longe da ambiguidade de Elle (Ele, 2016), que tinha substrato psicológico e um tom sardónico que aqui não existem. Em Benedetta tudo é ver para crer, não sobra mistério algum.
Ricardo Gross, 25 de Novembro