Ça semble être l’histoire d’une femme qui s’en va.
Impossível resistir à tentação de começar este texto pela sinopse que acompanhou o novo filme do ator e realizador francês Mathieu Amalric aquando da sua estreia em França. Composta por uma única frase, subtilmente minimalista e assumidamente ambígua, a sinopse de Serre moi fort (Abraça-me com Força, 2021) é também o seu spoiler mais poético, ao alertar o espectador para o caráter eminentemente evasivo e incerto da história que lhe vai ser contada e mostrada: “Esta parece ser a história de uma mulher que se vai embora”.
Essa mulher é Clarisse, interpretada pela atriz luxemburguesa Vicky Krieps, vista este ano em Old (Presos no Tempo, 2021) de M. Night Shyamalan e Bergman Island (A Ilha de Bergman, 2021) de Mia Hansen-Løve. Descobrimo-la, efetivamente, quando se prepara para sair de casa de madrugada, tendo o cuidado de não acordar o marido e os dois filhos, para de seguida pegar no volante do seu velho carro (um icónico AMC Pacer break vermelho de 1979) e partir, segundo ela, em direção ao mar.
O filme começa assim como uma promessa de road-movie luminoso e libertador, ao som de “Cherry” de J.J. Cale e das gravações de exercícios de piano executados pela filha de Clarisse. Várias peças de Rameau, Mozart, Chopin, Beethoven e Ravel acompanharão a protagonista ao longo do filme, exacerbando ou atenuando os seus sentimentos, e fazendo-os ressoar num espaço e tempo múltiplos.

Ora, se Serre moi fort pode ser descrito como road-movie, é sobretudo no sentido de uma viagem mental vivida pela protagonista: pois Clarisse não tardará a sentir falta da família que deixou para trás e, talvez para lutar contra os remorsos, permite-se imaginar a vida deles depois de ter partido, parecendo por momentos ser capaz de comunicar com eles por telepatia.
Transportado num vai-e-vem entre o carro à deriva e o eterno retorno ao lar, o espectador assiste às cenas domésticas protagonizadas pelo marido e pelos filhos, primeiro crianças, mais tarde adolescentes, e ouve as melodias do passado e as vozes do futuro que habitam Clarisse no seu presente incerto. Porém, os fragmentos de imagens e de sons com que esta alimenta a sua realidade não tardarão a pôr a nu as lacunas e as incongruências dos “talvez” e dos “e se…” da frágil narrativa que ela se propôs contar ao espectador — e a si própria. Na verdade, o destino final da estrada não será a beira-mar, mas as montanhas cobertas de neve dos Pirinéus, onde Clarisse deverá esperar pelo primeiro degelo da Primavera. E no espaço-tempo dessa espera insuportável, que outra coisa pode ela fazer, senão recomeçar?
On recommence: estas palavras são repetidamente proferidas por Clarisse no primeiro plano do filme, o qual mostra as suas mãos nervosas manipulando uma série de polaroids de família dispostas sobre a cama, como se procurasse o “par” de cada uma delas, numa espécie de jogo de memória, que será retomado — alguma vez foi interrompido? — na sequência final. Tendo visto o filme duas vezes no espaço de poucas semanas, senti-me particularmente visada por esse imperativo “On recommence” na segunda ocasião: Clarisse convidava-me a partir de novo com ela, mas desta vez tendo plena consciência de que a sua fuga fora imaginada em resposta a uma realidade demasiado difícil de aceitar. Não revelarei qual; não porque pense que a revelação estragaria a surpresa para o espectador, mas por respeito e empatia para com Clarisse na sua tentativa de se reinventar através das suas efabulações.

Recomecemos, também, este texto, tentando não revelar mais nada sobre a história, apenas tecendo algumas considerações gerais sobre o lugar que Serre moi fort ocupana filmografia de Mathieu Amalric. Trata-se da sua oitava longa-metragem, mas não é a primeira vez que o ator fetiche do cineasta Arnaud Desplechin [Comment je me suis disputé… (ma vie sexuelle)(1996), Jimmy P. (Jimmy P: Realidade e Sonho, 2013), Trois souvenirs de ma jeunesse (Três Recordações da Minha Juventude, 2015)] passa para o “outro lado” da câmara e ousa mergulhar num universo meta-narrativo sem direito nem avesso. Nos seus filmes, Amalric começou por fazer entrar comédia burlesca e fantasia em terreno autobiográfico [Mange ta soupe (1997)], para mais tarde estampar as fronteiras entre vida e espetáculo [Tournée (Tournée – Em Digressão, 2010)] ou explorar a (con)fusão entre essência do ser e o seu duplo ou persona [Barbara (2017) com Jeanne Balibar no papel de uma atriz que interpreta o papel da cantora homónima).
Também em Serre moi fort, um lado A e um lado B da história vivida pela personagem de Vicky Krieps se sabotam reciprocamente, acabando por constituir um só, à maneira de uma fita de Möbius.
O argumento de Serre moi fort (frase que, salvo erro, nunca chega a ser pronunciada no filme) é uma adaptação do monólogo da escritora Claudine Galéa intitulado Je reviens de loin (2003): o filme recupera a estrutura acronológica e caleidoscópica da peça, bem como o modo de enunciação na primeira pessoa; é curioso observar que a sinopse de Amalric inverte o título da peça, referindo-se a uma mulher que parte, ao invés de alguém que “regressa de longe”.
No entanto, grande parte do filme é passada a observar aqueles que ficam: o pai, Marc (Arieh Worthalter), e os dois filhos, Paul e Lucie, que são interpretados por atores diferentes enquanto crianças e adolescentes. Cada um deles está associado a um objeto-fetiche ou “madeleine de Proust”: o isqueiro que Paul ofereceu à mãe, os frondosos pelos do peito de Marc que Clarisse procura nos homens que a atraem, o diário onde Lucie escreve os pensamentos que a mãe lhe dita por telepatia e, sobretudo, o piano onde a jovem e promissora pianista toca melodias cada vez mais hipnotizantes e vertiginosas à medida que o tempo passa.
Este piano contém uma possível chave do enigma do filme – e engendra um verdadeiro “momento de cinema”. No início, quando Clarisse se prepara para sair de casa, deixa sem querer cair a chave sobre uma das teclas do piano; o som da nota não só rompe o silêncio da casa adormecida, como abre também uma brecha no universo fílmico. Podemos imaginar que é nesse preciso momento que uma realidade paralela é desencadeada: na cena seguinte, descobrimos a família de Clarisse reunida na cozinha para tomar o pequeno-almoço, ignorando ainda a sua ausência. Mas ela já vai longe, e nada garante que o regresso — ou recomeço — sejam possíveis.
Serre moi fort faz parte da secção “Fora de competição” do LEFFEST’21. O filme poderá ser visto no cinema Medeia Nimas, no dia 16 de Novembro, às 22h (em presença do realizador), e no Centro Cultural Olga Cadaval, no dia 18 de Novembro, às 21h30.