Pelas contas de Quentin Tarantino, Wes Anderson devia parar aqui. The French Dispatch (Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun, 2021), o novo filme de Anderson é o seu décimo* e possivelmente dos exemplos da sua filmografia que mais destila aquilo que interessa ao realizador: da exatidão da sua estética, à melancolia das vinhetas que desenha, onde o artificial e o formal é apenas uma forma de chegar a emoções muito difíceis de articular.
As crónicas de França titulares são ficcionais mas baseiam-se explicitamente na revista americana The New Yorker e nalguns dos seus mais famosos escritores, e até artigos específicos. O filme é uma série de vinhetas, separadas por capítulos reminiscentes da estética da revista, que nos são contadas através do olhar de escritores fictícios incrivelmente idiossincráticos.
Porém, o que torna o trabalho de Wes Anderson especial — embora possa, e seja, frequentemente considerado aesthetic for aesthetics’ sake, demasiado mimoso, ou demasiado hirto — é que o formalismo não é o fim em si.
Se o trailer parece dar a entender que vamos ver um filme sobre o funcionamento de uma redação, rapidamente percebemos que esse é apenas o mote para uma aventura que, para muitos, será carinhosamente apelidada de “um Wes Anderson menor”. Um aglomerado de charmosos pequenos contos sobre situações inusitadas, ao estilo a que já fomos habituados. Queridinho, mas todo apresentação e sem recheio.
Voltando à questão do mote: o ponto de partida é uma publicação americana que opera na cidade Ennui-sur-Blasé, em França, o tipo de nome que tem si um piscar de olhos embutido. O editor é Arthur Howitzer Jr. (Bill Murray), um defensor acérrimo dos seus escritores. Ao longo dos artigos-tornados-capítulos-do-filme: passamos tempo com o Herbsaint Sazerac de Owen Wilson, o repórter ciclista que nos dá uma visão do lado mais sórdido, mas romântico, da cidade; ouvimos da Berenson de Tilda Swinton a história do celebrado pintor encarcerado Moses Rosenthaler, apaixonado pela sua guarda e musa Simone (Léa Seydoux); ou vivemos uma versão dos protestos do Maio de 68 francês aqui escrito pela Krementz de Frances McDormand (uma personagem tão rígida como os enquadramentos de Wes Anderson e talvez a nota mais amarga do filme, jogando com a desinteressante ideia cliché da “solteirona” e da jornalista que não consegue manter a sua objectividade), que inclui o carismático Timothée Chalamet.
A predilecção de Wes Anderson por cenários rigorosamente ornamentados e composições formais milimétricas têm sido um marco do seu trabalho desde os primórdios, mas aguçado ao longo dos anos para chegar a um momento de verdadeira refinação. Há, talvez mais ainda do que nos seus filmes anteriores, tanta informação a ser-nos presenteada — através do guarda-roupa, dos cenários, da tipografia, das cores — que arrisco dizer que talvez sejam precisas três visualizações para se absorver tudo o que este filme tem a dizer.
Porém, o que torna o trabalho de Wes Anderson especial — embora possa, e seja, frequentemente considerado aesthetic for aesthetics’ sake, demasiado mimoso, ou demasiado hirto — é que o formalismo não é o fim em si. O artifício é apenas a forma de nos mostrar algo transcendente precisamente por causa da sua artificialidade. Os enquadramentos do realizador, visuais e narrativos, são uma matrioska de onde efectivamente sai algo com pathos. Não é a ordem e precisão exterior que torna os personagens de Anderson especialmente em controlo da sua vida e suas agitações, mas serve como contraste perfeito a tudo o que é caótico na paisagem emocional do tipo de ser humano que interessa ao cineasta.
O capítulo que melhor sublinha esta tensão é o último (há ainda um epílogo final), “A Sala de Jantar Privada do Comissário da Polícia” que tem tantos pormenores deliciosos que me custa não os enumerar: o lendário chef de cozinha policial Nescaffier — a ideia genial de uma cozinha dedicada ao trabalho do polícia, fácil de consumir enquanto este vigia criminosos — contada por Roebuck Wright (Jeffrey Wright) que envolve gangs criminosos, uma cena de acção desenhada como se fosse por Hergé, e o enquadramento de estar a ser contada, em flashback num talk show, tal qual foi escrita; a cereja no topo do bolo é mesmo o cameo de Willem Dafoe. Mas a peculiaridade desta história assenta no rapport entre o jornalista Roebuck e o cozinheiro lendário Nescaffier, que partilham o melhor momento do filme ao encontrar aspectos comuns na sua vida enquanto pessoas longe do seu país, a escapar a algo sem nunca realmente encontrarem aquilo do qual fugiram. Uma condição de frustração e melancolia que só a dedicação à arte de cada um pode tentar colmatar. Que é, no fundo, a tese em que assenta um filme que, ao longo dos seus capítulos, tem algo mais profundo e comovente do que as suas camadas estéticas podem deixar transparecer.
* O famoso número de filmes que Tarantino quer fazer antes de se reformar dos feature films.