Este é um filme que está longe do Nanni Moretti que conhecemos das divagações humorísticas e sarcásticas, do registo quase ensaísta e íntimo, ferozmente pessoal, do seu cinema anterior. Não só pela ausência do humor e ironia como alavancas para contar uma história – mesmo com La stanza del figlio (O Quarto do Filho, 2001), apesar do luto nesse filme, havia alguns momentos de distracção e o princípio de um recomeço partia de uma gargalhada partilhada. Tre piani (Três Andares, 2021) é uma versão do cinema de Moretti mais sombria, amarrado à angústia e ao vazio emocional, mais próxima talvez de Caos Calmo (2008), o filme de Antonello Grimaldi no qual Moretti aparecia apenas como actor e não como realizador. Nesse filme o argumento era uma adaptação de Moretti a partir de um livro, algo que volta a acontecer aqui em Tre piani, mas que marca a primeira vez que este trabalha como realizador com um argumento adaptado a partir de um romance e não da sua autoria.
O início é empolgante, evocando o mistério cénico de um filme de Hitchcock dos anos 50 (alguns spoilers sobre o início do filme): uma mulher grávida sai de casa a meio da noite, sozinha e sobressaltada, à procura de um táxi, em trabalho de parto, e de repente, na escuridão, surge um carro em alta velocidade, que atropela sem parar uma outra mulher, antes de se enfiar por uma parede num rés-do-chão, onde uma criança fica parada em frente ao carro imobilizado dentro de sua casa. A agitação acorda o prédio inteiro, e percebemos que o condutor, ferido, é filho de um casal de moradores desse prédio, à medida que os vizinhos se cercam do sucedido. Esta é uma introdução dramática aos habitantes deste prédio, as personagens centrais do filme, e às dinâmicas dentro dos vários conjuntos familiares que formam esta mini-comunidade. A história acompanha os pais do condutor, um casal de juízes (um deles interpretado pelo próprio Nanni Moretti); os pais da criança que ficou em frente ao carro; os vizinhos mais velhos que ocasionalmente tomam conta da criança, como durante esta comoção; e a mulher grávida a caminho do hospital e o seu marido ausente em viagem, pegando neste incidente para lentamente desfiar um novelo narrativo a partir das implicações deste acontecimento inicial.
Moretti aproxima-se do ponto de vista do espectador, como alguém que observa de fora, em vez de ocupar o lugar de alguém que nos guia. É como se agora Moretti transformasse o “olhem para o que tenho a mostrar e dizer” para um “olhem como eu, ao meu lado”.
A diferença mais significativa em Tre piani em relação aos filmes anteriores de Moretti é mesmo a divisão da história em diferentes fios narrativos, ou seja, aqui o ponto de vista do filme deixa de pertencer a uma personagem principal e às suas inquietações centrais, para passar a ser o ponto de vista de um observador que tem acesso a um quadro geral – isto é, Moretti aproxima-se do ponto de vista do espectador, como alguém que observa de fora, em vez de ocupar o lugar de alguém que nos guia. É como se agora Moretti transformasse o “olhem para o que tenho a mostrar e dizer” para um “olhem como eu, ao meu lado”. Esta mudança de perspectiva para uma forma narrativa menos directa, mais dependente das observações e ilações em relação aos desenvolvimentos que observamos, leva a alguma contenção formal de Moretti, reduzindo o registo ao essencial – não há aqui momentos de fulgor visual como noutros filmes, nem de espanto ou encantamento: por exemplo, a montagem é funcional, não há nada que chegue perto do momento icónico de La stanza del figlio em que a filha da personagem interpretada por Moretti descobre o pai a chorar junto ao campo de basquetebol durante um jogo seu, e por um segundo fica paralisada enquanto as outras jogadoras correm em sentido contrário.
A questão central deste tipo de narrativa em mosaico passa pelo interesse pelas personagens, e pela empatia que as suas situações despertam. Porém, em Tre piani, as personagens são interessantes quanto baste mas apenas isso, e isso talvez seja um problema do romance que é adaptado, sente-se a falta de um toque pessoal de Moretti (ou próximo das personagens dos seus filmes anteriores). Na verdade, o desenvolvimento das personagens neste mosaico tríptico acaba por revelar-se algo desigual: por exemplo, por um lado, Lucio, o pai da criança que descobre o carro dentro de casa na cena inicial, acaba por tornar-se obcecado com a suspeita que sua filha possa ter sofrido algum tipo de abuso pelo idoso que é seu vizinho, e torna-se difícil criar qualquer empatia com o seu comportamento errático e uma previsível espiral negativa, no qual a sua mulher tem um papel quase decorativo; por outro lado, as duas personagens mais fortes são duas mulheres do prédio (o filme cria essa diferenciação, de enaltecimento justificado do papel feminino versus condenação do comportamento masculino, mas de forma algo bruta e pouco Morettiana): a mulher que surge grávida no início (irrepreensivelmente interpretada por Alba Rohrwacher), carrega consigo ao longo do filme uma interioridade misteriosa que eleva o filme, e a mãe do jovem condutor acidentado (interpretada por Margherita Buy, sempre brilhante), que na sua tentativa de encontrar algum vestígio de humanidade no filho abandonado pelo seu marido (o juiz interpretado por Moretti), de não desistir dele mesmo quando ele desiste dele próprio, serve de âncora emocional do filme.
em Tre piani, as personagens são interessantes quanto baste mas apenas isso, e isso talvez seja um problema do romance que é adaptado, sente-se a falta de um toque pessoal de Moretti.
Em Caro diario (Querido Diário, 1993), no segundo capítulo, Nanni Moretti visita um amigo escritor que não vê televisão há 30 anos, mais ocupado com literatura clássica e filosofia. Mas a certa altura, este depara-se perante uma tv, e fica enfeitiçado pelo aparelho a partir daí, ao ponto de escrever uma carta ao Papa a protestar contra o facto de este ter excomungado as telenovelas, por serem um perigo para a coesão familiar. Escreve o amigo: “Caro Papa, perdoe-me mas está enganado, sim, as nossas famílias estão cada vez mais afastadas, mas graças às telenovelas, despertamos curiosidade e interesse por outras famílias longínquas, com as quais partilhamos problemas, dramas e alegrias.” Ignorando a comparação com uma telenovela por não fazer aqui qualquer sentido, se por vezes em Tre piani, a observação pode parecer sinónimo não de empatia, mas de distância e frieza emocional, serve esta anedota para sublinhar o elogio de Moretti ao melodrama como forma de aproximação ao próximo, de manifestação de identificação afectiva com os dramas escondidos no interior de cada um; e se as dúvidas em relação ao desfecho vão-se acumulando ao longo do filme, dois momentos finais e luminosos recuperam o sentido da escolha deste registo dramático, resgatando o próprio filme.