A crónica de novembro é especial, e não teria como ser diferente. Foi num querido mês de novembro que nasceu a pessoa que “já modificou a minha vida”. Um encontro raro e único.

Escorpiana como eu. Oliveira como eu. Cinéfila como eu. Gosta de viajar e de olhar mapas impressos, como eu. Gosta de muitas coisas que eu gosto e não gosta de muitas coisas que eu não gosto. E gosta de filmes românticos, como eu.
Essa última entre muitas semelhanças me faz pensar em um cinema romântico, dentro de todas as possibilidades de associação desse adjetivo com esse substantivo. Romântico por mostrar uma união entre duas pessoas quaisquer. Romântico como característica preferível, embora jamais anuladora, ao racionalismo e ao realismo (na arte, pois na vida um equilíbrio é importante).
Sempre adorei filmes românticos e, principalmente, comédias românticas. Penso que esses filmes nos atingem de algum modo inexplicável. Gosto de rever até comédias românticas que considero ruins, como Just Friends (Apenas Amigos, 2005) de Roger Kumble ou Love Actually (O Amor Acontece, 2003) de Richard Curtis. Considero difícil lidar com esse gênero cheio de fórmulas fáceis e armadilhas.
Todos esses filmes compõem uma espécie de filmoteca dos sonhos, idealizada por um casal que se comunica pelo pensamento e está sempre em sintonia.
No início da minha cinefilia (1989-1991), filmes românticos eram associados às mulheres. Meus amigos cinéfilos falavam de De Palma, Scorsese e Eastwood, mas não queriam saber de nada muito associado aos meandros do amor. Até que Eastwood fez Bridges of Madison County (As Pontes de Madison County, 1995), dando um nó no cérebro de alguns, enquanto outros o desprezavam insistentemente por ser “filme de meninas”. Dois anos antes, Scorsese já havia despertado alguma confusão com seu The Age of Innocence (A Idade da Inocência, 1993), mas nada tão brutal como a que causou o estranho sem nome que agora vivia o fotógrafo Robert Kinkaid. Nunca entendi essa classificação “filme de meninas”, mas a ouvi frequentemente de cinéfilos diferentes até uns dez anos atrás, quando dizer isso se tornou politicamente incorreto. Anos depois, o mesmo Eastwood faria Hereafter (Hereafter – Outra Vida, 2010), um romance espírita. Novo nó.
Temos uma lista de filmes que vimos juntos. Uma lista que daria uma belíssima mostra, tirando um ou outro título. Não é formada só por filmes românticos. Tem terror, documentários, filmes-ensaios. Mas tem alguns romances, e muitos filmes românticos. Neste mês especial, meu coração clama por eles.
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Um dos primeiros filmes românticos que vimos juntos foi inesquecível: The Clock (A Hora da Saudade,1945) de Vincente Minnelli. É perfeito: um homem e uma mulher querem se casar antes de se separar e viver da saudade. Ele é soldado e precisa se reapresentar após um dia de folga. Ela trabalha no centro de Nova York, vive a insanidade das maiores cidades do mundo moderno. Em 24 horas, eles se conhecem, se apaixonam, se casam, vivem a real expectativa da breve saudade e do novo reencontro que não sabem quando acontecerá.
Minnelli, aliás, é um dos nossos diretores preferidos. Também vimos juntos The Cobweb (Paixões Sem Freio, 1955), com o personagem que lembra o pedido de André Derain num leito de hospital: mais verdes e vermelhos. Com Gloria Grahame sendo esquecida por um marido atormentado pela situação na clínica que dirige (situação que não tem nada a ver connosco, bom que se diga). Com uma reordenação tocante das coisas no final – característica dos grandes melodramas de Minnelli. Não é bem um romance, como The Clock, mas não deixa de ser romântico em sua maneira de encarar o mundo.
Em outro filme romântico de Minnelli, Home From the Hill (A Herança da carne, 1960), que ainda preciso rever com ela, a reordenação se dá pela constituição de uma nova e improvável família, com o enquadramento do plano final rigorosamente dividido pela metade entre a lápide do patriarca (representando o fim do sistema de estúdios) e o campo aberto por onde nos deixa a nova família (representando o cinema que virá, das locações). O mesmo esquema percebemos no plano final de Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958), com o rio que corre à direita, para onde a câmera mira, numa belíssima panorâmica, passando antes por um Dean Martin que finalmente tira seu chapéu para a “personagem mais bela do cinema”, segundo João Bénard da Costa. Esse vimos no mesmo dia, penso, de The Cobweb. Ou foi no mesmo dia de Tea and Sympathy (Chá e Simpatia, 1956), o Minnelli de que minha amada mais gostou.
Outro filme que vimos juntos, desta vez um romance propriamente dito: The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940), com o qual Ernst Lubitsch aperfeiçoou e moldou definitivamente a fórmula da comédia romântica hollywoodiana que seria atualizada décadas depois em The Goodbye Girl (Não Há Dois Sem Três, 1977), o melhor filme de Herbert Ross, e novamente em When Harry Met Sally (Um Amor Inevitável, 1989), o melhor de Rob Reiner. Já Groundhog Day (1993) de Harold Ramis, que também vimos juntos, não me pareceu atualizar nada na revisão, mas continua sendo um belo filme. Claro que não podia esquecer de Woody Allen, que no mesmo ano do filme de Ross lançou seu seminal Annie Hall (1977), levando a inteligência de Lubitsch para um ambiente novaiorquino. Até nisso combinamos. Ela não esnoba Woody Allen, mesmo reconhecendo que por vezes ele é preguiçoso – como em Rifkin’s Festival (2020), outro filme que vimos juntos.
Vimos também La Ronde (A Ronda, 1950) de Max Ophüls, que sempre será desconcertante, mesmo após muitas revisões. E vimos o documentário musical Phil Lynott: Songs for While I’m Away (2020) de Emer Reynolds. Não é um grande filme. Muitos diriam que nem é romântico. Mas estes provavelmente não conhecem a música desse grande artista, líder da banda de rock Thin Lizzy. Outros conhecem, mas por preconceito jamais aceitariam a associação da banda com algum romantismo. No entanto, o romantismo é evidente, e este seria um bom filme para fechar nossa mostra imaginária.
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Gostamos mesmo de romantismo, e não só no cinema. As obras românticas, mesmo as mais tristes, nos encantam, estejam na literatura, na pintura ou na música. Claro que há diferenças em nossos gostos, e as alimentamos porque crescemos com elas. Mas o que impressiona é que procuramos coisas muito semelhantes nas obras. Mesmo quando vemos o mesmo filme separados por mais de mil quilômetros, eu em São Paulo, ela em Porto Alegre, nossos olhares costumam se encontrar como os de duas almas gêmeas.
Há algo de muito belo na tristeza quando transposta habilmente para uma obra de arte. Quem conhece e admira o Roberto Carlos da fase 1969-1974 me entenderá. Ou Mizoguchi, ou Naruse, ou mesmo a banda sueca Abba, que por vezes esconde uma melancolia profunda em hits dançantes como “Dancing Queen” (já em “The Winner Takes it All” eles nem se preocuparam com disfarces).
Mas o assunto principal desta coluna é o cinema, e a ele voltamos. Ainda não vimos juntos alguns Viscontis, Fassbinders, Rohmers, Fords, Oliveiras, mestres do romantismo decadentista, crítico ou farsesco, certamente cineastas que amamos intensamente. Não vimos muitos filmes que tenho em altíssima conta e adoraria rever com ela: An Affair to Remember (O Grande Amor da Minha Vida, 1957) de Leo McCarey, India Song (1975) de Marguerite Duras, Le Notti Bianche (Noites Brancas, 1957) de Luchino Visconti, Estate Violenta (Um Verão Violento, 1959) de Valério Zurlini, Zangiku Monogatari (O Conto dos Crisântemos Tardios, 1939) e Chikamatsu Monogatari (Os Amantes Crucificados, 1954), ambos de Kenji Mizoguchi, Catene (Repudiada, 1949) de Raffaello Matarazzo, Les Deux Anglaises et le Continent (As Duas Inglesas e o Continente, 1971) e La Chambre Verte (O Quarto Verde, 1978), provavelmente os dois melhores de François Truffaut, e muitos outros.
Todos esses filmes compõem uma espécie de filmoteca dos sonhos, idealizada por um casal que se comunica pelo pensamento e está sempre em sintonia. Com ela, aprendo muitas coisas, até mesmo a me valorizar mais. Aprendo (ou reaprendo) que é bom ter autocrítica, desde que ela não nos paralise. Aprendo a rir, a me divertir, a lamentar e me entristecer. A domar minha revolta com o atual estado das coisas de meu país, para que essa revolta não me tire o foco. Aprendo a ter calma, a ser mais compreensivo, a ser uma pessoa melhor.
Obrigado, Carla Oliveira.