………………….… ; mas
quando em ti penso sou seguro e claro;
gira a terra sem melancolia,
aceito tudo como o tempo o quis.
António Franco Alexandre, in Poemas
Concedendo embora um lugar à parte a The Searchers (A Desaparecida, 1956) de John Ford, ainda assim a minha escolha para fazer parte Do álbum que me coube em sorte não deixará de recair num western de Budd Boetticher.

A hipótese que André Bazin “não excluiu” de Budd Boetticher poder ser “o maior realizador de westerns”, sustentada no lugar de eleição reservado a Seven men from now (Sete Homens Para Matar, 1956), o primeiro dos sete westerns de Budd Boetticher com Randolph Scott, por esse filme ser “talvez o melhor western que vi[u] depois da guerra” e pelo facto de o considerar “como um dos sucessos exemplares do western contemporâneo”[i], não pôde, infelizmente, ser comprovada pelo próprio que, tendo morrido em 1958, não viu os filmes seguintes.
O desassombro da sua posição crítica – ela mesma exemplar perante o relativo isolamento em que ficou – terá contribuído para o levar a publicar, na segunda metade de Julho de 1957, quando aquele filme se estreou em Paris, quatro críticas sobre o mesmo, a última das quais nos Cahiers du Cinéma de Agosto desse mesmo ano, em todas sublinhando o facto de “o western continuar a ser o género mais incompreendido”, pelo que será de redobrada justeza adoptar um princípio, por ele recordado numa formulação que Éric Rohmer lhe dera, segundo o qual “geralmente é preferível em caso de opiniões divergentes sobre um filme importante dar a palavra àquele que melhor o aprecia”.
Se da comparação com Anthony Mann e John Ford haveria contas por acertar, as últimas reticências confessadas por André Bazin teriam, porventura, sido vencidas sem agravo – e mantida a primazia que lhe era caro conceder à obra em detrimento do autor (aspecto da “política de autores” sobre o qual longamente explicou a sua posição) – sobretudo com o último filme dessa série de Boetticher, Comanche Station (Emboscada fatal, 1960), que é a confirmação indesmentida quer da “expansão plena das qualidades específicas do autor” quer da “vontade de despojamento característica da derradeira expressão”.
Nos filmes que Budd Boetticher realizou durante este curto período de quatro anos (1956–1960) – também conhecido por ciclo Ranown, designação resultante da aglutinação dos nomes e da associação Randolph Scott ao produtor Harry Joe Brown, a que há que juntar a colaboração do argumentista Burt Kennedy em quatro desses filmes – pôde contar com uma equipa colectiva ideal, que muito contribuiu para levar a cabo o seu propósito declarado de “em todas as ocasiões fazer um filme mais bem sucedido do que o precedente, mais profundo”.
A retrospectiva organizada em Outubro de 1982 pela Cinemateca Portuguesa proporcionou a muitos, entre os quais me incluo, um extraordinário ensejo para descobrir e apreciar justamente “um dos mais interessantes autores do cinema americano”, Budd Boetticher.
Estes filmes de Budd Boetticher tiveram, na altura, distribuição comercial entre nós, se bem que numa lógica baseada na segmentação por géneros, que atirou a sua exibição para as salas “populares” do Olympia e do Coliseu e que, em consequência do preconceito que os remetia para a categoria de filmes menores, foram mais ou menos ignorados nas décadas seguintes, como bem nota Luís de Pina, no texto de abertura do Catálogo da Cinemateca, publicado por ocasião da retrospectiva organizada em Outubro de 1982. Tal ocasião proporcionou a muitos, entre os quais me incluo, um extraordinário ensejo para descobrir e apreciar justamente “um dos mais interessantes autores do cinema americano, homem que nasceu nos filmes da série B e nesse domínio impôs uma qualidade formal e uma personalidade criadora nem sempre reconhecidas”[ii]. João Lopes, que assinou a maior parte das “folhas de sala” desse ciclo da Cinemateca, a propósito da “continuação sólida” que o ciclo Ranown constituiu, soube com acerto discernir o “método” com que Boetticher demonstrou “uma permanente capacidade de fazer valer o seu cinema, não pela ostentação, mas pela contenção, não pelo excesso, mas pela crueza”.
Jim Kitses, num estudo significativamente intitulado Budd Boetticher: as regras do jogo, faz notar que “a equipa da Ranown e o western deram a Boetticher a latitude e a estrutura através das quais conseguia criar a peça ritualística que achava significativa”[iii], cuja regra o próprio Boetticher define sem hesitações nos seguintes termos: “Todos os filmes com Randy Scott contam aproximadamente a mesma história, com variações. Um homem a quem mataram a mulher procura o assassino. Isso permite mostrar relações bastante subtis entre um herói que a torto se confina na sua vingança e os fora-da-lei que, ao contrário, tentam romper com o seu passado. São estas as relações mais simples do western, mas também os mais essenciais”[iv].
Precipitado será dizer que fora da matriz, na avaliação retrospectiva de Boetticher, terá ficado a mulher, se a sua afirmação de que “nunca teria conseguido um verdadeiro retrato de mulher”, significar uma opção dramatúrgica do próprio, na qual as regras de inclusão seguem outra determinação: “O que conta é o que a heroína provoca, ou também o que representa. É ela, ou o amor ou o medo que inspira no herói, ou ainda o interesse que este sente pela sua pessoa, que o levam a agir como age. Em si própria, ela não tem importância nenhuma”[v].
Sendo esse o quadro geral, qual é a variação que em Comanche Station nos é dada? Para Jefferson Cody (Randolph Scott), o protagonista, para quem o móbil da vingança sofrera uma transmutação assinalável, a Senhora Lowe (Nancy Gates), a mulher resgatada desta vez – que as peripécias dramáticas fazem passar por bem de troca, causa sempre iminente de disputa, alguém com quem é bom viver a vida inteira – é, a bem dizer, a imagem que lhe coube em sorte trazer de volta.
Em dezembro de 1950, na segunda exposição em Nova York, Alberto Giacometti, como de costume, apresenta os seus trabalhos recentes, entre eles, as edições de bronze de La Forêt, La Clairière e La femme qui marche entre deux boîtes qui sont des maisons. Nesta última escultura, em que a figura fica aprisionada, devido ao limite superior comum às duas casas, é uma das poucas em que uma mulher caminha. “Na estatuária de Giacometti, as mulheres dão um passo à frente como as kórai, mas apenas os homens caminham. A mulher caminha entre duas casas, mas num espaço em que está prisioneira. Quanto a La Clairière, um grupo de mulheres, tal como em La Forêt, alguns belos versos de Giacometti dão-nos uma chave: «J’avais perdu toutes / les traces des / femmes merveilleuses /qui passaient / dans une clairière».”[vi]
Numa entrevista concedida a Pierre Schneider, em 1961, é o próprio Alberto Giacometti que, falando da experiência, ocorrida curiosamente num cinema em Montparnasse, em que pela primeira vez deixara de ter uma visão fotográfica do mundo e passara a ver a profundidade, dá conta da importância que isso teve para si-mesmo: “Aconteceu assim uma transformação da visão de todas as coisas… como se o movimento não fosse mais do que uma sucessão de pontos de imobilidade. Uma pessoa a falar deixara de exprimir um movimento, eram imobilidades que se sucediam, completamente separadas uma da outra (…) uma sucessão de momentos imóveis, descontínuos, absolutamente descontínuos. (…) Um pouco como as formigas, cada um parece andar entregue a si-mesmo, absolutamente sozinho, numa direcção que os outros ignoram. Cruzam-se, ultrapassam-se… sem se verem, sem se olharem. Ou giram à volta de uma mulher. Uma mulher imóvel e quatro homens que mantêm uma relação mais ou menos estreita com a mulher. Percebi que poderia ter feito apenas uma mulher imóvel e um homem a caminhar. E desde então deixo sempre a mulher imóvel e o homem faço-o sempre a caminhar”[vii].
“O mundo é, afinal, um triste e estranho lugar, e a vida um jogo duro e divertido que nunca pode ser ganho mas tem que ser jogado”?
Não sabemos quantas vezes antes de Comanche Station, Jefferson Cody, a quem a mulher fora raptada há dez anos, se metera ao caminho, com a mula carregada com “bens de troca” na expectativa de trazer de volta a bem-amada. Sabemos que Randolph Scott ou, melhor dizendo, Budd Boetticher, o tentou por sete vezes e que, desta última, foi – inviamente – bem sucedido no seu empreendimento, ao trazer de volta a mulher-amada ao marido que, sendo cego, estava impedido de a procurar.


[i] André Bazin, «Un western exemplaire: Sept hommes à abattre», em Écrits Complets II, ed. Hervé Joubert-Laurencin, [Cahiers du Cinéma, no 74, Agosto, 1957] (Paris: Éditions Macula, 2018), [2361], 2244-2245.
[ii] Luís de Pina, «Um autor do cinema americano», em Budd Boetticher, [Catálogo do ciclo] (Cinemateca Portuguesa, 1982), 7–8.
[iii] Jim Kitses, «O ciclo Ranown: forma e compromisso», em Budd Boetticher, [Catálogo do ciclo] (Cinemateca Portuguesa, 1982), 38.
[iv] «Entretien transocéanique avec Budd Boetticher par Bertand Tavernier», Cahiers du Cinéma, n. 157 (Juillet de 1964): 11.
[v] «Entretien transocéanique avec Budd Boetticher par Bertand Tavernier», 11.
[vi] Anca Visdei, Alberto Giacometti, ascèse et passion (Paris: Odile Jacob, 2019), 185.
[vii] «Ma longue marche par Alberto Giacometti – Entretien avec Pierre Schneider», L’Express, Juin de 1961.