Jibun no ana no nakade (Cada Um na Sua Cova, 1955) começa de forma inusitada. Primeiro, uma série de planos de uma paisagem urbana, sobre os quais repousam os créditos de abertura – ao som de uma banda-sonora improvisada e bem mexida (dir-se-ia que este poderia ser o início de um filme noir gingão). Depois entra o som, rasante, de aviões militares. Terminam, então, os créditos e surge uma paisagem selvagem, de novo admoestada pelo som das ditas aeronaves que cruzam os céus.
Este som é uma manifestação literal da atmosfera pós-Segunda Guerra no Japão, ainda muito submetido à interferência militar e (acima de tudo) económica dos Estados Unidos da América. O filme dá conta, logo nos primeiros minutos, dos múltiplos protestos contra a presença militar americana, que se acentuaram a partir de 1952, quando a ocupação do território terminou “oficialmente” e, mais adiante, fala-se que o controlo militar foi substituído por um controlo financeiro, “de japonês as empresas já só conservam o nome”. Mas esse elemento da banda-sonora (os aviões rasantes) é, igualmente, um sublinhado metafórico: o som da guerra como gatilho de uma sintomatologia de stress pós-traumático coletivo ou, de forma mais lata, uma manifestação da precariedade de todas as coisas que se achavam seguras: ao longo dos filmes há dois funerais; a trama contorce-se como uma enguia escorregadia; há quem perca o emprego, quem perca a herança, quem perca a casa, etc.
E eis que surge um plano potentíssimo, o plano que verdadeiramente abre o filme: uma espécie de Lamentazione sul Cristo morto, de Andrea Mantegna, onde os pés nus do Cristo estão agora calçados com botas da tropa. Mais, este Cristo de botas cardadas está, como o primeiro, numa gruta que poderia muito bem ser a do Santo Sepulcro, não fosse a região geográfica diametralmente oposta e a língua que nada tem que ver com aquela que se falava na Jerusalém de há dois mil anos. E, como o outro, também este homem não está exatamente morto, antes animado pelo espírito santo (neste caso, o espírito de uma sabática forçada pelos câmbios no tecido industrial japonês desse período). O pezinho ainda mexe!, para espanto dos mirones que circundam esta “ressurreição”. O cristo-soldado levanta-se e caminha; coloca uma sacola ao ombro, sai da sua cova e presta esclarecimentos aos que ali se foram acumulando. Apresenta-se: nome, morada, ocupação. Deseja um bom dia a todos e, sem mais delongas, parte na sua jornada, de volta à cidade – pelo caminho, passa diante de várias outras covas, como aquela de onde acabara de brotar, ao som dos caças da Força Aérea (esse som, sempre esse som).
Esta imagem, simultaneamente crística e bélica, convoca para Cada Um na Sua Cova uma série de paradoxos que serão, nas duas horas seguintes, explorados nas suas múltiplas ambiguidades, entre o desejo pacifista e o recalque imperial.
O Senhor Komatsu é um aspirador, o Dr. Ihara é uma metralhadora, mas ambos resultam de uma mesma linha de montagem.
Dizia que o início era inusitado porque este cristo-soldado é uma personagem muito secundária na narrativa coral que Tomu Uchida compõe (aliás, secundária ao ponto de ser preciso passar mais de três quartos de hora até que ele regresse a cena, e, mesmo aí, será apenas através da “visualização” de uma carta, lida por outrem – algo que se repetirá, de forma absolutamente perturbadora, já perto do fim, com o aparecimento cadente de uma outra personagem que até então havia sido apenas aludida). Por que razão se haveria de começar o filme deste modo, dando uma surpreendente centralidade a uma figura tão pouco significativa? A resposta passará, eventualmente, pela assunção do inefável mistério da poesia, mas, como isso é coisa de pouca substância e por estas bandas se gosta de pratos fartos, pense-se então um pouco mais.
Ele chama-se Komatsu, é um romântico introvertido (que hoje apelidaríamos, sem grande pejo, de incel). Gosta de se passear por paisagens industriais desoladas que rasgam a acalmia rural e de refletir sobre o estado do seu país, então dominado por forças estrangeiras (especificamente ocidentais, os EUA e o Reino Unido), encontrando nessas fábricas abandonadas o “símbolo do Japão atual”.
De facto, o Senhor Komatsu perdeu o seu emprego de mangas de alpaca na indústria do armamento em consequência das “decisões do Pentágono” que ditavam a produção e circulação de armas e munições no território. Esta figura é, até certo ponto, mais do que uma personagem, um símbolo (daí a sua reduzida expressão narrativa e a superficialidade do seu desenho). O filme dá-nos indicações de que ele terá participado ativamente na guerra e a sua apatia e “problemas de assertividade” resultam de um modo depressivo de lidar com a derrota. Ele é um militar pacificado, despido da sua função destrutiva, reduzido a uma ação meramente funcional numa nova sociedade capitalista. Komatsu corporiza o participante anónimo do “progresso”. Esse plano, com que abre o filme, parece querer olhar para a banalidade da figura crística como forma de entender a via sacra enquanto modelo para o melodrama do quotidiano (não será por acaso que uma das personagens tem uma imagem de Jesus na mesa de cabeceira). É, portanto, um prenúncio dos horrores morais e emocionais que arrastarão para o fundo da sua cova aquela que é a verdadeira protagonista do filme, a menina Tamiko.
Mas antes disso há que referir o “antagonista” do Senhor Komatsu, o sedutor Dr. Ihara, o outro pretendente da menina Tamiko (diz-se, a certa altura, que Komatsu “tem em falta tudo aquilo que o Dr. Ihara tem em superabundância”).
A este propósito, e como forma de expressar essa oposição entre as duas personagens, lembrei-me, enquanto via o filme, de uma sequência famosa daquele que é um dos primeiros filmes de Harun Farocki, Nicht löschbares Feuer (1969), sobre a indústria alemã de armamento durante a Guerra do Vietnam (outro momento de interferência bélico-económica dos EUA noutro país do dito “eixo do mal”). Em dado momento um homem surge com um aspirador numa mão e uma metralhadora na outra e afirma “sou um engenheiro e trabalho para uma empresa eletrónica. Os operários acreditam que fazemos aspiradores. Os estudantes acham que fazemos metralhadoras. Este aspirador pode ser uma arma mortal. Esta metralhadora pode ser um útil eletrodoméstico. Aquilo que produzimos resulta da contribuição dos operários, dos estudantes e dos engenheiros.” O Senhor Komatsu é um aspirador, o Dr. Ihara é uma metralhadora, mas ambos resultam de uma mesma linha de montagem. Onde o Senhor Komatsu se abate sobre a selvajaria da concorrência, o Dr. Ihara resplandece na luta do individualismo oportunista, mas ambos são produtos dessa nova sociedade do pós-Guerra (que Uchida critica a eito).
Se estes dois homens se apresentam como pólos opostos de uma mesma atitude participativa da sociedade de consumo, o terceiro homem que habita Cada Um na Sua Cova, Junjiro, é um elemento externo que simboliza as forças destrutivas e inoperantes do mercado. Junjiuro (irmão de Tamiko) está doente e passa todo o filme na cama. A sua participação é, em quase todas as situações, de mero observador. Ele comenta e aconselha, ouve e transmite, é uma central de informações. Não por acaso vive obcecado com a bolsa de valores e joga tudo o que tem (e o que não tem também) em ações. Ele corporiza, muito literalmente, a figura do especulador, que não produz, que opera segundo a potência das coisas, que despreza o presente e aposta no futuro.
Uchida parece afirmar, por vias travessas, que no Japão de 1955 não há dinheiro limpo (veja-se o triste destino do Senhor Komatsu), nem há dinheiro fácil (veja-se o terrível fim que dá a Junjiro), há apenas dinheiro sujo (aquele que só a ganância fria do Dr. Ihara possibilita – ele que mata sapos a sangue frio e usa as mulheres como quem toma uma bebida). Não há espaço nem para o pacifismo, nem para o futurismo especulativo, a única erva daninha que resiste é o calculismo do presente. Ou, prolongando a opaca alegoria de Farocki, se Komastu é o operário-aspirador e Ihara o estudante-metralhadora, Junjiro é o engenheiro, que observa e não produz, participando, ainda assim, no processo geral das coisas.
Com este trio masculino que rodeia essa mulher, poder-se-ia fazer tanto uma comédia à Lubitsch (e há um plano ou outro que para aí remete – veja-se aquele do carro, com a menina sentada entre os dois pretendentes) como um melodrama à Sirk. É, naturalmente, com este último que é possível estabelecer alguns paralelos. Há qualquer coisa da personagem de Rock Hudson em All That Heaven Allows (Tudo o Que o Céu Permite, 1955 – exatamente do mesmo ano!) na figura do Senhor Komatsu (simples e ensimesmado), como há igualmente qualquer coisa da disputa de mãe e filha pelo mesmo homem tanto em Cada Um na Sua Cova como em Imitation of Life (Imitação da Vida, 1959). Em pontos opostos do globo e com estéticas, abordagem culturais e posicionamentos políticos muito distintos, tanto Sirk como Uchida espelham um mesmo tumulto que veio abalar a estrutura familiar e as condições laborais da sociedade dos anos 1950, na antecâmara da modernidade que aí se anunciava (usando para isso os recursos do melodrama, já em fase de estertor demencial).
O sexo acontece entre um fundido para o negro de um comboio que entra num túnel (!) e um plano de uma cascata jorrante (!). Deliciosa perversão, sem nunca ser ordinário ou demasiadamente literal.
Outro ponto de ligação entre o filme de Uchida e o universo de Douglas Sirk prende-se com a forma como os realizadores usam os espelhos – seria possível que Mark Rappaport fizesse, pelo menos a partir de Cada Um na Sua Cova, um “The Vanity Table of Tomu Uchida”. Chamo, claro, a atenção para a extraordinária sequência (pós-)coital, no quarto de hotel, com Tamiko e Ihara em tripla reprodução espelhada. Falo em coito, mas tudo se dá no reino das elipses. O sexo acontece entre um fundido para o negro de um comboio que entra num túnel (!) e um plano de uma cascata jorrante (!). Deliciosa perversão, sem nunca ser ordinário ou demasiadamente literal.
Esse mesmo plano da cascata é – descobrimo-lo de seguida – um ponto de vista de Tamiko (naturalmente…), a partir da janela do hotel de “beira de caminho de ferro” onde se consuma o seu desejo dela pelo Dr. Ihara. No espelho de três faces, que decora uma das paredes desse quarto descaracterizado, Tamiko vê refletido, ao cubo, o seu arrependimento. O melodrama aqui está em ponto de rebuçado, entra a música e a atriz leva as mãos ao rosto. No entanto, recompõem-se e encara a sua figura, começa a maquilhar-se e constrói, com uma expressividade performativa tocante, uma nova aparência; confiante. Assume uma postura ríspida e face a um falso pedido de casamento, contrapõe com um virar de cara. Aqui a arte de Uchida demonstra-se na sua máxima claridade: num plano só, que a princípio enquadra os dois rostos, frente a frente, a câmara vai deslizando em frente e progressivamente os rostos vão se afastando mais para os limites do quadro, progressivamente mais amputados. A câmara continua a sua lenta caminhada adiante e, quando já só sobram as testas e as pestanas mais salientes em cantos opostos, o foco muda e redescobre o casal no dito espelho, que servia de fundo à cena, só que agora, pelo jogo dos reflexos, eles estão de costas voltadas. Como diria Bénard da Costa (que certamente muito gostaria deste filme), é inadjetivável. Suprema graça e suprema inteligência, tudo feito na máxima discrição, sem nunca ser vistoso ou autoconsciente.
E haveria tanto mais para destacar: os jogos de mão que atraem e repelem, num mesmo gesto (o cigarro apagado nas costas da mão, a despedida que se prolonga e segura, a mão dormente e de novo um cigarro, agora aceso, a mão agónica ao som dos aviões rasantes – cada qual destas em composições desse quadrilátero amoroso); a carta queimada sem nunca chegar a ser lida que, como o gato de Schrödinger, é simultaneamente uma dedicatória apaixonada e uma traição; a caixinha de música como um toucador portátil, memória ambulante da desonra de Tamiko e da sua inocência perdida; o convívio de diferentes religiosidades e os vários templos e altares, mais ou menos pagãos; o estaleiro para o novo centro desportivo que se constrói diante da casa como prenúncio de um futuro que nunca mais chega; as duas viagens de comboio, literal e metaforicamente, em sentidos oposto; as oposições entre a música ocidental (no rádio) e os recitais de música tradicional japonesa, etc., etc., etc.
Cada Um na Sua Cova não é, de todo, um filme perfeito (é até um pouco chatinho). Mas é, ao mesmo tempo, tão rico e tão surpreendente, que me deixou a cabeça à roda (como aliás se nota por este texto, escrito sem grande direção). Foi um prazer descobri-lo através daquela que é a manifestação mais bonita da cinefilia: a recomendação de um amigo.