O Cinema é tempo e verdade.
in Chantal Akerman par Chantal Akerman (1997).
Numa sala apartada da restante exposição (Pedro Costa Companhia, no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves), Pedro Costa colocou a par da sua instalação vídeo The End of a Love Affair (2003), um trabalho de Chantal Akerman, Femmes d’Anvers en Novembre (2008). Diálogo de Sombras (2021), de Julio Alves, intensifica a conversa entre as duas peças: de um lado, um homem junto de uma janela e apoiado numa cadeira, acompanhado de uma cortina balançada pelo vento e pelos sons devolvidos pela rua; do lado de Chantal, retratos e close-ups de mulheres a fumar, assunção de feminilidade, mas também questionamento da representação da mulher e da atmosfera herdada do film noir.

Chantal Akerman nasceu em 1950, em Bruxelas, onde os pais polacos se casaram, após a Segunda Grande Guerra e a passagem da mãe pelo campo Auschwitz-Birkenau, lugar de extermínio dos avós maternos da cineasta. Resultado da vontade de fazer cinema e da relação distante e problemática com o pai, que esperava dela um casamento tradicional com um judeu e um trabalho numa fábrica de roupa, Chantal iniciou uma fuga, uma viagem contínua em que quase nunca experimentou a ideia de domicílio: uma emigrante em Bruxelas, em Paris ou em Nova Iorque, mas que se manteve ligada a casa através de uma relação inquebrável, quase patológica, com a mãe.
O trabalho [de vídeo-instalação de Chantal Akerman] surge solto dos constrangimentos de produção, onde podia criar sozinha, num quase artesanato (…), numa primeira afinidade evidente ao cinema de Pedro Costa, a partir de No Quarto da Vanda (2000).
A primeira estada em Nova Iorque, iniciada no Outono de 1971, produziu efeitos de contaminação na jovem Akerman, dividida entre uma cinefilia cultivada no Anthology Film Archives, nas vanguardas de Jonas Mekas e Michael Snow, nos canónicos Robert Bresson e Yasujiro Ozu, na importância da palavra em Marguerite Duras e Pier Paolo Pasolini, mas também na cena artística nova-iorquina. Esta impeliu-a a tornar-se umas das percursoras no cruzamento do cinema com as artes plásticas, com trabalho prolífico na instalação-vídeo desde o início dos anos 1990. Na procura de uma crescente autonomia, esse seu trabalho surge solto dos constrangimentos de produção, onde podia criar sozinha, um quase artesanato como ela designava, uma “abordagem documental, em que o material vai sendo esculpido e tomando forma” – numa primeira afinidade evidente ao cinema de Pedro Costa, a partir de No Quarto da Vanda (2000).
Sem a ambição de sermos exaustivos no elencar das propriedades do cinema de Chantal Akerman, vamos olhar os primeiros filmes, de um hotel em New York até Les Rendez-vous de Anna (1978). Uma produção dispersa pela Europa, filmes que comunicam com a obra de Pedro Costa, no uso abundante da auto-representação, de olhares a partir do exílio, num percurso pessoal e artístico, que assinala os conflitos da sua biografia e da História, relevando, também, a condição da mulher, o quotidiano, as repetições, o tédio do espaço doméstico, sempre com a mãe na cabeça.
Com o parco pecúlio obtido em trabalhos incertos, ao que adicionou o dinheiro que a mãe lhe enviava, Chantal juntou quatro mil dólares, com que produziria Hotel Monterey (1972) e La Chambre (1972). Depois de uma preparação de seis meses, incluindo uma estada considerável no hotel, Akerman rodou, num único dia, com começo ao cair da noite, e a trepar as escadas e os corredores, para chegar à cobertura do edifício, na aurora. Assumidamente influenciado pelo trabalho dessa época de Michael Snow, o filme vive de longos e lentos travellings, quase exclusivamente no interior do hotel, mais em corredores desertos e pouco iluminados, onde predomina uma atmosfera fria. Mas, ocasionalmente, entra em quartos, com quadros dos hóspedes à distância, por vezes abordados por luzes e cores saturadas, que acrescentam à imagem um traço pouco definido e uma qualidade pictórica, acentuada pelo grão característico da película de 16mm.

A concepção de durée – efeito de gestão do tempo cinematográfico, que será uma das características de muitas das abordagens da cineasta – prolonga-se na curta-metragem La Chambre, filme rodado com as sobras de película de Hotel Monterey, também minimal e fotografado por Babette Mangolte. Embora a câmara estabeleça uma panorâmica circular cadenciada, que percorre as paredes do quarto, os objectos e o mobiliário, o que fica na memória é o quadro de Chantal Akerman deitada sobre a cama e a fitar a câmara, iluminada por uma luz exterior límpida: primeira auto-representação da cineasta, num resultado pictural e erótico, que julgamos ver nos planos atmosféricos, quase despidos de luz, da volúpia de Vanda deitada na cama na sua barraca das Fontainhas.
As cartas enviadas pela mãe, que a própria cineasta [Chantal Akerman] narra num tom monocórdico [em News From Home], (…) ecoa a carta de Robert Desnos no cinema de Pedro Costa [em Juventude em Marcha (2006)].
A produção seguinte, Je Tu Il Elle (1974) rodada entre França e Bélgica, intensifica a auto-exposição de Akerman, um retrato de uma perda, da solidão de uma mulher após o fim de uma relação, em que grande parte dos planos enquadram a cineasta num compartimento, despida, não só de roupa: um despojamento de uma mulher na sua intimidade, como uma catarse. O rigor dos quadros dos filmes anteriores é prolongado aqui, um filme de tons ásperos que vai abdicando de elementos, dos exteriores e à boleia de camionista, da voz off que partilhou as emoções da protagonista, para apenas ficarmos com um corpo desenhado pelo preto e branco e pela luz exterior, numa relação com o tempo que passa, que culmina com uma cena de sexo, sôfrega, mas apartada de emoções.
Em Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), o seu filme mais recordado, Akerman faz-se substituir por Delphine Seyrig, em mais de três horas e meia em que experimentamos a duração de tarefas domésticas, tão rotineiras como entediantes. Um retrato de solidão, em que o acto sexual, que depois percebemos ser um hábito comercial, é uma repetição como qualquer outra. A performance dos últimos dias de Jeanne Dielman é pautada por enquadramentos rígidos e tão repetitivos quanto as acções, apenas alterado num final que sucede ao assassínio de um dos clientes: um extenso plano da protagonista, em que ela parece cogitar, à procura de uma explicação para o seu acto.
Chantal Akerman regressou depois a Nova Iorque relacionar a cidade – a baixa de Manhattan, os bairros, o Soho, o metro subterrâneo e as estações – com as cartas enviadas pela mãe, que a própria cineasta narra num tom monocórdico, num relato do quotidiano de Natalia Akerman em Bruxelas e no equacionar do que será a vida da filha na América. News From Home (1975), um objecto híbrido, fascinado pelas ruas e pela forma como são habitadas pela população, presença mundividente, com enquadramentos à escala e ao nível da rua, muitas vezes fixos e com ocasionais panorâmicas e travellings, cruzando silêncios com sons da cidade e com as cartas de um passado que insiste em mostrar-se, em não a libertar – num efeito análogo ao ecoar da carta de Robert Desnos no cinema de Costa. News From Home produz uma rima óbvia com o último filme de Akerman, No Home Video (2015), um filme com e sobre a mãe, também sobre os seus silêncios das memórias de Auschwitz, estreado pouco depois da sua morte e que antecipa o suicídio da cineasta, um ano depois.

No final desta primeira fase da obra, deste bloco muito pessoal, a protagonista toma o nome de infância da cineasta: Les Rendez Vous de Anna (1978), uma realizadora em permanente viagem, sozinha em quartos de hotel, em viagens, em que ficam de fora as imagens das apresentações do seu mais recente filme, que apenas intuímos. Apesar de contar com uma co-produção europeia mais generosa e com actores experimentados, mantém-se o trabalho de câmara austero, assente em planos fixos. E, no final, ensaia-se o regresso a casa, no encontro com a mãe, interpretada por Lea Massari, junto à Gare du Midi, em Bruxelas.
Um cinema rebelde na linguagem, no tempo do cinema, fundado na identidade e na memória da cineasta-protagonista, com notórias afinidades com os príncipes de Pedro Costa, a quem dedicaremos uma última crónica, um puzzle de Hollywood.