Quando o programador Carlos Nogueira, responsável pela programação do ciclo Outsiders, apresentava Joe Swanberg como um dos mais importantes cineastas da sua geração, não estava a ser demasiado simpático. Swanberg é o playmaker de toda uma geração, que preguiçosamente podemos arrumar debaixo da etiqueta mumblecore, tendo realizado mais de duas dezenas de filmes desde a sua obra de estreia, no não tão longínquo ano de 2005, Kissing on the Mouth. A sua “irrequietude” e capacidade de trabalho incríveis – à porta da Cinemateca Portuguesa Swanberg admirava o cartaz da retrospectiva Allan Dwan, o realizador mais prolífico da história – levaram-no a criar uma verdadeira economia de produção cinematográfica, low ou mesmo no budget. Em 2011, o seu ano mais “diabólico”, lançou “só” 6 longas-metragens. Em frente ou atrás da câmara, sempre em alta-rotação para o comum dos mortais, Swanberg contracenou e colaborou com alguns dos nomes maiores do chamado cinema independente americano: Greta Gerwig, Lena Dunham, Olivia Wilde, Jane Adams, David Lowery, Andrew Bujalski, os irmãos Duplass…
Entretanto, Swanberg decidiu abrandar o ritmo e concentrar esforços: a série Netflix Easy (2016-2019), concluída à terceira temporada, foi, confidencia-nos, o seu trabalho mais gratificante, uma espécie de Swanberg ao cubo. Por muito que o seu trabalho se torne mais sério ou comercial, o estilo e principais preocupações não têm mudado assim tanto. Basta atentarmos no título que deu à sua primeira web series: Young American Bodies (2008). É de corpos e rostos jovens, ainda imberbes ou já adultos ma non troppo, que o seu cinema é feito e para os quais se continua a dirigir, de maneira franca, vulnerável e generosa. Acrescente-se que, se a simpatia fosse uma medida para avaliarmos o talento de um cineasta, Swanberg já era hoje, e de caras, um realizador da envergadura de Allan Dwan.
A conversa que abaixo se transcreve, só possível graças ao apoio dado pelo Carlos Nogueira, podia começar por qualquer lado, mas como neste preciso momento o fim rima com o princípio, decidimos abrir com uma referência a Build the Wall (2020), o mais recente título da longa filmografia de Swanberg que se estreou – e continua “em cartaz” – no Vimeo. Os retratos fotográficos de Joe Swanberg são da autoria de Mariana Castro.

João Lameira (JL) – O teu último filme, Build the Wall, é como um regresso às origens, por ser um filme pequeno, realizado entre amigos. Aconteceu por causa da pandemia?
Não, foi feito antes. Creio que me queria testar. O último filme mesmo pequeno que fiz foi o All the Light in the Sky (2012), no final de 2012. Depois, fiz o Drinking Buddies (Companheiros de Copos, 2013) e, de repente, tudo ficou maior. Do ponto de vista intelectual, estava curioso de ver se conseguia expurgar tudo e fazer um filme sozinho. Mas tinha dúvidas se gostaria de voltar a trabalhar assim, se seria satisfatório do ponto de vista criativo ou se sentiria falta da infraestrutura e da equipa à minha volta. À medida que os projectos se tornavam maiores, acostumei-me a ter uma direcção artística, muito bom som, uma equipa de operadores… Pensei: a única maneira de tirar teimas é simplesmente fazer um filme em que volte aos meus velhos equipamentos. Só uma câmara, um microfone…
JL – Fizeste o som também, não é?
Sou muito old school e gosto de ir ao cinema. Para mim, isso é importante.
Fiz tudo sozinho. E descobri que era muito feliz a trabalhar assim. Também rodei com uma câmara pequena semi-profissional. Parece tão bom, hoje em dia! É impressionante como a tecnologia evoluiu. Mesmo o Iphone é óptimo, nos dias de hoje. Nasceu então dessa vontade. A Jane Adams [protagonista de All the Light in the Sky] também mostrou interesse em fazer algo assim de novo. Os actores são, muitas vezes, um grande motivador para projectos mais pequenos. Rodámos antes da pandemia, no Verão de 2019. E disponibilizei-o gratuitamente no Vimeo.
Luís Mendonça (LM) – Foi algo que tinhas em mente desde o início?
Não, queria distribuí-lo eu próprio. Mostrá-lo em pequenos cinemas numa tour. Mas as salas fecharam e pensei: “Em vez de esperar um ano e ver o que acontece depois, vou pô-lo na Internet.” Talvez em 2022 faça a tal tour.
JL – Festivais?
Penso que vou dispensar os festivais e fazer pequenas sessões. Do género: uma projecção em Chicago, outra em Nova Iorque, etc., durante uma semana.
LM – Queria perguntar se te sentes confortável com o facto de os teus filmes poderem ser vistos num computador ou mesmo num telemóvel.
Quer dizer, sou muito old school e gosto de ir ao cinema. Para mim, isso é importante. E este ano, durante a pandemia – Chicago reabriu algumas salas este ano -, fiz muita programação. Uma série de projecções, numa sala de bairro, em que programei aos sábados e aos domingos à noite. Isto para levar as pessoas a regressarem às salas.
LM – Que tipo de filmes programavas?
Filmes novos. Honestamente, fiquei nervoso quando o festival South by Southwest (SXSW) foi cancelado em 2020. Pensei: se isto se tivesse passado com o meu primeiro filme, teria destruído a minha carreira. Não consigo conceber a minha vida sem essa ida ao festival, conhecer todos aqueles realizadores… Senti-me pessimamente por todos aqueles que tinham um primeiro filme a sair. Comecei essas sessões para lhes dar uma oportunidade de mostrarem os seus filmes presencialmente. Muitos filmes, ainda que se tenham estreado em Sundance ou em Berlim, foram assim mostrados numa sala, com pessoas “reais”.
LM – Falando precisamente de “pessoas reais”, e em especial do conteúdo dos teus filmes, existe este fatalismo nas relações tal como as representas. Apetece dizer que, nos teus filmes, ninguém acredita mais em “finais felizes”. Mas continuas a fazer filmes para um género esquecido e negligenciado, que são os filmes românticos ou até mesmo as comédias românticas.
À medida que envelheci, refreei-me um pouco, os filmes tornaram-se mais formais e tradicionais. Penso que se aproximam cada vez mais da clássica comédia romântica.
Quando estava a descobrir o cinema, apaixonei-me pelas comédias românticas. Ainda adoro comédias românticas. Mas estou demasiado concentrado na realidade. Atraem-me as coisas cruas das relações. Penso que estou sempre em luta comigo mesmo, entre a forma fílmica e o desejo de contar uma história. E também o meu desejo de ser documentarista, envolvendo-me nos aspectos mais sujos das relações. Acho que se sente sempre isso nos meus filmes.
Por exemplo, ontem vi o Nights and Weekends (2008), provavelmente pela primeira vez em muito tempo. Passaram-se quase 10 anos desde a última vez que o vi. Fiquei contente! Gosto de muitos aspectos, mas é tão agressivo. Todos aqueles implacáveis close-ups da Greta Gerwig e de mim a conversarmos. Já me tinha esquecido de como os meus velhos filmes me faziam sentir. À medida que envelheci, refreei-me um pouco, os filmes tornaram-se mais formais e tradicionais. Penso que se aproximam cada vez mais da clássica comédia romântica.
Com o Drinking Buddies, lembro-me de ler no Twitter e aperceber-me que muita malta jovem estava frustrada com o desenlace do filme, por não ter um happy ending, um laço final em que as personagens principais ficam juntas. É mais complicado do que isso. Isso deixou-me feliz: quero desafiar a percepção. Não é interessante, para mim, dar o happy ending fácil.

LM – É, sem dúvida, uma interessante combinação: esta crueza toda com a comédia romântica.
Eu adoro a Elaine May e o seu filme The Heartbreak Kid (Casei-me por Engano, 1972) foi sempre uma inspiração gigantesca para mim. É um filme bem negro.
JL – Muito negro mesmo.
As personagens juntam-se e, no final, Charles Grodin sente-se miseravelmente. Sempre gostei disto e, para mim, é cómico. E adoro o Curb Your Enthusiasm (2000-), coisas dessas. Gosto do aspecto desconfortável, deslocado, dessa tensão toda. Quer dizer, também acho que as relações amorosas são difíceis. A minha experiência é que elas são muito difíceis e, quanto mais tempo duram, mais difíceis se tornam.
JL – Não sei se isto faz sentido para ti, mas sinto também que nos teus primeiros filmes parece que algo vai acontecer e, de facto, acaba por acontecer. Mas em filmes posteriores muitas vezes isso nem chega a acontecer. De qualquer modo, há esta espécie de ameaça – algo vai acontecer – e, depois, quando se concretiza, pode ser muito perturbador. Ocorre-me a cena de Hannah Takes the Stairs (2007), em que a Greta Gerwig põe fim à relação com o Mark Duplass. É uma cena quase insuportável: ao mesmo tempo, queremos e não queremos vê-la, como num filme de terror.
São os dois géneros em que trabalho: terror e comédia romântica. E são a mesma coisa.
Concordo totalmente. Quando saí da escola de cinema, pensava que ia fazer documentários. O meu instinto e impulso diziam que a vida real já era suficientemente interessante, não precisávamos de acrescentar o drama clássico do cinema. Sexo e relações… é muito difícil encontrares um casal verdadeiro que te deixe entrar na sua casa e filmar a sua vida real. Porventura este instinto esteja a mudar, já que a reality TV habitua as pessoas mais a isso. Mas isto não correspondia ao standard de quão microscópico eu queria ser. Virei-me para o cinema narrativo porque os limites do cinema documental eram verdadeiros limites em torno do tema das relações e do sexo. Podes fazer um documentário praticamente sobre tudo, mas nenhum casal te vai deixar ir para a sua cama para o filmares. Pensei: “Se vamos fazer um filme, quero que finjam serem um casal de verdade, vivam a vossa vida, eu fico aqui, a observar.” Há algo de horrífico aqui, já que é o mesmo impulso do cinema de terror. São os dois géneros em que trabalho: terror e comédia romântica. E são a mesma coisa [risos].

LM – Estava a rever o Nights and Weekends, um filme que foi muito importante para mim, e reparava na importância da comunicação não-verbal entre os dois membros do casal. E no papel da amizade que é quase insustentável quando numa relação à distância. Que importância tem para ti a relação entre amizade e amor?
Para mim, estão muito entrelaçados. E eu sempre procurei a amizade em primeiro lugar. Ou sempre a vi como essencial para uma relação amorosa. O romance não funciona sem uma base forte feita de amizade. Em Nights and Weekends, na segunda parte do filme, eles tentam ser amigos, mas não conseguem. A tensão sexual está muito presente e a relação é muito complicada.
LM – Eles procuram resolver as coisas através do sexo, o que acaba por ser um beco sem saída.
Sim. Na segunda parte, ele está com uma relação com alguém em Chicago. Sentes isso, mas não fala disso. Eles tentam sair como se fossem amigos… Todos estes sentimentos acabam por oprimi-los. Uma das questões que tinha era: quando fizeste sexo com alguém, podes transitar para uma relação de amizade? É possível pôr de parte o impulso sexual? Sim, às vezes abre caminho às melhores amizades, porque a tensão sexual desapareceu ou foi resolvida ou qualquer coisa assim. Outras vezes fica muito embebida na dinâmica da relação e esta deixa de funcionar. Drinking Buddies é inteiramente sobre isso: as personagens de Jake [Johnson] e Olivia [Wilde] perguntam-se o mesmo: podemos ter uma amizade com este nível de atracção? Andei muito à volta dessa questão nos meus filmes.
LM – Gostaria de voltar atrás, para falarmos um pouco sobre um dos teus primeiros filmes, LOL (2006). Parece-me que estavas muito preocupado com o papel da tecnologia no seio das relações. Ora, muita coisa aconteceu desde 2006 [risos], quando lançaste o filme: como é que avalias hoje em dia o papel da tecnologia, numa altura em que tudo e todos somos ditados por ela?
Hoje, parece-nos subestimado. Somos tão piores do que éramos…
Quando fizemos o filme, estávamos a satirizar, porque usámos a tecnologia tão para lá do que podíamos imaginar… Eram quase níveis cartoonescos de obsessão. Pegámos nesses três tipos e pusemo-los a comportarem-se de uma maneira que julgávamos impossível. Hoje, parece-nos subestimado. Somos tão piores do que éramos… É um filme estranho hoje, porque as piadas já não são piadas: até parece que eles mal usam tecnologia. Mas é catastrófico isto. Nem acredito quão longe chegámos. Eu agora vou no sentido contrário: não tenho contas em redes sociais, não tenho um smartphone, só tenho um dumb phone, que utilizo para enviar mensagens e pouco mais…
LM – São caros, não são?
Sim, se forem os mais sofisticados. Mesmo assim, os dumb phones são tipo 300 dólares, ao passo que os smartphones são 1000 dólares. Mas tens razão: são dumb phones hipsters. Mas, dizia, eu entrei tão a fundo nesse território… Quando as redes sociais estavam a começar eu estava na faculdade: tinha Friendster, Myspace e Facebook. A cada nova evolução, eu estava muito envolvido, incluindo-a no meu cinema, usando-a para divulgar os meus filmes. Acho que cheguei a uma situação de burnout mais rápido do que a maioria das pessoas.
Ao mesmo tempo, e estranhamente, sou uma pessoa muito privada ou interessado na possibilidade de haver privacidade. Ainda que os meus filmes sejam sobre violar a privacidade, é sempre como abdicar de algo de propósito, não é uma violação da privacidade, é uma escolha. Agora, os telemóveis e as redes sociais consomem demasiado a minha atenção, tenho demasiadas preocupações com isso. Ainda lido com isso no meu trabalho. Em Easy (2016-2019), muitos dos episódios são sobre a ideia da vigilância ou a invasão lenta da tecnologia nas relações interpessoais.

LM – Há ainda o aspecto do gadget, que é usado para produzir uma realização mais livre: parece-me que grande parte do filme Uncle Kent (2011) terá sido filmado com um telemóvel.
Todos os meus filmes se passam na actualidade. Quero sempre que sejam sobre o aqui e agora.
Absolutamente. Também em All the Light in the Sky as personagens estão a sempre a “brincar” com o telemóvel. Sempre olhei para o meu trabalho como um documento sobre os tempos. Todos os meus filmes se passam na actualidade. Quero sempre que sejam sobre o aqui e agora. É giro que nos filmes mais antigos estejamos tão deslocados; olhando para eles hoje, parecem-se com memórias distantes. Revendo Nights and Weekends, ontem à noite, temos ainda aqueles flip phones… Não foi assim há tanto tempo! Dez anos não deviam significar uma mudança cultural tão grande! Raramente estamos com o telemóvel nesse filme. Se fizesse Nights and Weekends hoje, estaríamos ambos [leia-se, os protagonistas Greta Gerwig e o próprio Joe Swanberg] constantemente ao telefone. E a distância seria bem diferente. Na época, não havia essas ferramentas – como o Facetime – para se ter uma relação à distância.
LM – Existe uma palavra que me surge quando assisto aos teus filmes: “confiança”. Os actores e actrizes estão expostos de tal forma – a nudez e a intimidade são extremas – que me interrogo: como é que conquistas a sua confiança? É algo analisado e reflectido ou trata-se de uma forma mais intuitiva e espontânea de trabalhar com elenco?
À medida que a minha carreira evoluiu, deixei de entrar nos filmes e de ter tempo para conversar bastante. Mas também tenho muito mais experiência agora.
Isso mudou muito também. Nos primeiros filmes, bem, entrei em muitos eu próprio e penso que dava o sinal: “Não tenho problemas em aparecer nu nos filmes e fazer estas cenas de sexo, mas não obrigo ninguém a faz o mesmo.” Penso que houve uma confiança mútua numa situação destas. À medida que a minha carreira evoluiu, deixei de entrar nos filmes e de ter tempo para conversar bastante. Mas também tenho muito mais experiência agora. Sei que questões perguntar antes e consigo intuitivamente sentir se alguém está desconfortável ou não. Por vezes, os actores querem desafiar o seu desconforto. Houve momentos em que falei com alguém que nunca tinha feito uma cena de sexo e apareceu despido em frente à câmara, mas que se sentia entusiasmado com o desafio; disponível para explorar isso. Depois, trabalho com pessoas que, sinto, não têm essas barreiras, estão confortáveis com o seu corpo e abertas a experimentar. Quando escolho os actores, o que procuro saber é onde é que a pessoa cai.
LM – E falas muito com eles?
JL – Tem de ser tudo muito explícito desde o início.
Exacto. Não há como fugir. Os filmes lidam tanto com isso… Por vezes, é abordado no início da conversa. Do género: “Este filme vai ter cenas explícitas de sexo, nudez frontal.” Digo-o antes mesmo de começarmos a falar sobre o que quer que seja . Mas também trabalho muito com os mesmos actores. Isso é muito bom: temos essa primeira conversa quando colaboramos, mas depois podemos dispensá-la e continuar a trabalhar.
LM – És um dos poucos realizadores que sabem mostrar o sexo de maneira natural: provavelmente, é um pouco mais cru do que podemos esperar, mas também tem humor, verdadeira comédia. Será que estas cenas íntimas também surgiram como uma reacção à maneira como os media, a publicidade e a própria pornografia tendem a retratar o sexo?
Sentia que estava a crescer e a apaixonar-me pelo cinema numa época muito conservadora: havia muito pouco sexo no cinema e, se havia, era filmado de maneira diferente do resto do filme.
Sim, houve algumas influências. Fui muito influenciado pelos filmes Dogma dos anos 90 [Dogma 95, movimento liderado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg]. Quando vi o Idioterne (Os Idiotas, 1998) e outros filmes, fiquei “Uau! Que fixe!”. Grandes cineastas internacionais fazem filmes mesmo pequenos. Também tinha curiosidade sobre o porquê de ter havido uma abertura sexual tão grande nos anos 60 e 70 no cinema e de se ter fechado tanto nos anos 80. Sentia que estava a crescer e a apaixonar-me pelo cinema numa época muito conservadora: havia muito pouco sexo no cinema e, se havia, era filmado de maneira diferente do resto do filme. Do género: tinhas o filme e, depois, a cena de sexo. Subitamente, a luz e a música eram diferentes. Perguntava-me: porque estão a tratar o sexo como se fosse um capítulo à parte? Quando saí da escola de cinema, no início dos anos 2000, tinha o Dogma na cabeça, também Michael Winterbottom tinha feito 9 Songs (9 Songs – 9 Canções, 2004), John Cameron Mitchell fez Shortbus (2008)… Senti que havia, nesta altura, cineastas a tocarem nas bordas destas questões. Porque é que isto ainda é tabu? Sobretudo face à presença da Internet…
É menos uma reacção minha à pornografia e mais uma reacção à hipocrisia: porque é que estamos tão confortáveis a consumir tanta pornografia na Internet e, depois, vamos ao cinema e ficamos em choque por ver nudez? Como é que o nosso cérebro separa estes dois mundos? Queria ver como é que resultaria filmar as cenas de sexo como filmei o resto do filme: improvisado, espontâneo, com a câmara à mão. E permitindo que o mesmo humor e constrangimento entrassem nesse domínio. Foi uma faca de dois gumes: fez com que o meu trabalho se destacasse – sinto que os meus primeiros filmes atraíram mais atenção porque tinham uma nova abordagem ao sexo – mas era mais difícil de programar, o público era menor, porque muitos festivais sentiram-se envergonhados de os mostrar. Isto levou a que o meu trabalho fosse descoberto online e não em festivais. Foi interessante sentir que, nos primeiros filmes, eu poderia percorrer outro caminho se os tornasse menos explícitos, mas ao mesmo tempo sentia que seria mais interessante explorar esse território, mesmo que isso significasse tomar uma via alternativa na minha carreira.

JL – Build the Wall não será um bom exemplo, porque tem nudez, mas também é, de facto, um regresso aos primeiros filmes. Mas Drinking Buddies e Digging for Fire (2015)…
Sim, são muito mais convencionais e comerciais.
JL – Foi uma decisão consciente?
Passando dos meus 20 para os meus 30 anos, estava casado, tinha um filho… As coisas que me interessavam estavam a mudar e os filmes versavam sobre o casamento, a família e crianças. Mas também houve um factor comercial. O Drinking Buddies teria sido impossível de realizar se tivesse incluído cenas de sexo e o casting teria sido um desafio bem diferente. Estava, claramente, a tomar decisões comerciais, pensando em chegar a um público mais amplo, abrir os filmes. Em Easy, senti-me finalmente num sítio onde podia fazer algo muito mais próximo do que queria fazer: filmes grandes com grandes actores, mas também com os meus interesses pelas questões da sexualidade. O formato da Netflix foi ideal, porque não íamos tentar lançar nos cinemas; ia directo para os televisores. Não houve resistência da parte da Netflix, até ficaram, na realidade, entusiasmados pelo facto de ter sexo e isso.
LM – Como senti com a Jane Adams, em All the Light in the Sky, por vezes o actor ou actriz parece desempenhar o seu papel no filme, que, desta forma, é alimentado pelo seu próprio carisma natural e presença. Provavelmente, o Kent Osborne em Uncle Ken pode ser visto como o lado masculino desta questão. Estava a pensar sobre como é que escolhes os teus actores e actrizes: eles vêm primeiro? Qual a importância da pessoa por detrás da actriz ou do actor?
No início, o actor vinha sempre primeiro. Nunca comecei por uma ideia, mas por pessoas com quem queria trabalhar. E as ideias surgiam disso. Se tivesse uma ideia, era muito vaga, só ganhando forma quando fazia o casting. Isso mudou um pouco hoje. Mas mesmo tão recentemente quanto Easy, só escrevia uma frase para cada episódio. Um conceito muito básico, do género: “Um cartoonista, autor de um trabalho autobiográfico, fica zangado quando entra noutro trabalho autobiográfico.” Uma construção simples. Depois, no casting, se é o Marc Maron e a Emily Ratajkowski, a história emerge: qual é o estilo dos cartoons, agora sei a sua idade. Posso escrever em torno deles e com eles. Entre as temporadas de Easy, quando voltávamos às mesmas histórias, limitava-me a contactar de novo com o actor: “O que é que se passou na tua vida nos últimos meses?” Começavam a contar-me estas histórias e eu dizia: “Ah, ok, isso é bom, o nosso novo episódio deveria ser sobre isso.”
Há muitos actores que não se encaixam no meu estilo, por não quererem interpretar-se a si mesmos.
Tem sido divertido, mas tenho de perceber quem gosta e quem não gosta de trabalhar desta forma. Um exemplo é Billy Crudup. Gosto mesmo dele, sou um grande admirador. Liguei-lhe por causa de um episódio de Easy. Falámos durante uma hora, tivemos uma conversa mesmo boa. Mas, no final, ele disse: “Eu gosto de ser actor, porque posso interpretar outra pessoa.” “Gosto de ter um argumento – para mim, isso é que tem graça!” Ele não está sozinho: há muitos actores que não se encaixam no meu estilo, por não quererem interpretar-se a si mesmos. É outra resposta à pergunta “Porque é que os mesmos actores estão sempre a regressar? Porque é que tenho esta trupe?” Há pessoas que gostam mais do que outras… Para mim, é difícil fazermos de nós mesmos num filme, é algo especialmente vulnerável e revelador. Por isso, tenho de me esforçar para encontrar as pessoas que querem embarcar e aceitam qualquer coisa como: “Ok, tu tens um nome falso e um trabalho falso, mas, para lá disso, estás a interpretar-te a ti mesmo. Vamos disfarçar-te um pouquito para não seres exactamente tu próprio.” É parte do meu instinto de documentarista também: sou fascinado por pessoas. Quando começo a trabalhar com um actor, quero saber tudo sobre ele, os seus hábitos. Se noto que ele faz sempre algo – a maneira como segura a mão, uma frase que diz – então vou encorajá-lo para pôr isso nos filmes.
JL – Quanto disso também és tu? Colocas-te no trabalho do actor também?
Sempre.
JL – Como é que isso funciona?
Para responder à questão da confiança de há bocado, penso que isso é uma parte importante. Sou tão honesto com os actores quando estamos a trabalhar… Se uma cena é sobre algo, eu digo: “Tive esta ideia porque estive a discutir com a minha mulher sobre isto.” Ou: “O meu filho fez isto e tive esta reacção.” É qualquer coisa como: “Eu e a minha mulher discutimos sobre isto. Eu quero pôr isto no filme. Como é que tu reagirias se eu te dissesse algo?” É uma conversa mútua. Tenho de me conseguir relacionar, sou o primeiro espectador, especialmente com tanta improvisação. Quando os actores fazem o primeiro take, só posso confiar em mim mesmo: “Será que funciona? Será interessante? Ajuda a contar a história que queremos contar?” Entre takes, o meu feedback não é muitas vezes técnico sobre as interpretações, é mais uma conversa: “Adorei o que fizeram, sobretudo a primeira parte.” Ou: “Quando discutem sobre isto, é perfeito, mas quando mudam de assunto… não sei bem sobre o que estão a falar… Agarrem-se à primeira parte e tentem mudar para este assunto.” Entre takes uso-me muito como ponto de referência: “Percebo o que fizeste ali, mas eu ficaria chateado com isto, tenta ficar zangado desta vez…” É uma conversa emocional, o tempo todo. Tento usar a minha lógica emocional para dar forma ao modo como a improvisação se adequa à cena.

JL – Gostava de perceber melhor como é que funciona a improvisação. Referias o Curb Your Enthusiasm. O Larry David não escreve diálogos, apenas tem as situações. É assim que trabalhas?
Nos primeiros dias de rodagem estamos a agarrar coisas aleatórias. Se calhar nada disso acabará no filme. Falamos constantemente: “Quem são estas pessoas? Qual a sua história?” É a aleatoriedade da vida.
Sim, é muito semelhante. Só com o Win it All (2017) eu e o Jake [Johnson] escrevemos um argumento completo, com 85 ou 90 páginas. Ainda assim, improvisámos muito os diálogos. Tendo feito com ele Drinking Buddies e Digging for Fire, o Jake queria ver como era escrever um argumento: “Não temos de o usar, mas só quero ter a certeza que temos o filme alinhavado.” Com Easy, cada episódio de 30 minutos correspondia a um outline de 5 ou 6 páginas, sem nenhum diálogo. Só uma breve descrição sobre o que acontece. Nalguns filmes, não há mesmo nada alguma vez escrito. Chego ao primeiro dia e digo: “A ideia deste filme surgiu há um ano, quando me contaste aquela história. Disseste que andavas por casa, viste algo e te lembraste de algo… Vamos começar por rodar essa cena. O que é que fazemos a seguir? Ah, entro no carro e vou… Ok, vamos filmar isso.” Nos primeiros dias, estamos a agarrar coisas aleatórias. Se calhar nada disto acabará no filme. Falamos constantemente: “Quem são estas pessoas? Qual a sua história?” É a aleatoriedade da vida: entramos no carro, vamos para algum sítio e encontramo-nos com alguém. Essa pessoa é interessante. “Queres entrar no filme?” Pomos essa pessoa no filme.
Acabei por usar muitos membros da produção como actores no filme. Estamos a rodar algures, precisamos de mais um actor e não há nenhum. Então digo: “Eu faço o som, tu vais actuar no filme, depois devolvo-te o equipamento.” Tudo muito espontâneo e aberto. Quando trabalhava assim, tinha mais tempo. Os filmes demoravam 6 ou 8 meses a serem feitos. Filmava um bocado, montava um bocado, filmava outro bocado, montava mais um bocado…
JL – Estavas a montar enquanto filmavas, é isso?
Exactamente. E podia mostrar aos actores: “Olha, aqui estão dez minutos. O que acham?”
LM – Mas, ao mesmo tempo, são filmes diferentes, certo?
Sim, sempre um de cada vez.
LM – Parece um processo muito esgotante. É muito livre e criativo, mas, ao mesmo tempo, estás sempre à beira de não conseguires obter nada.
Sim. É muito stressante.
LM – Mas também és muito prolífico.
É daquelas coisas: se entrares num certo ritmo, sabes fazê-lo. Eu era prolífico porque tinha medo de parar. Pensava: “Estou a andar nesta corda bamba, a fazer estes filmes improvisados, os actores passando de um filme para outro…” Senti que cada filme era uma lógica extensão do anterior. Se parasse, e tentasse fazer um filme maior, focando-me numa carreira, não conseguiria voltar a entrar no ritmo. Foi isso com o Build the Wall: depois de fazer estes filmes maiores e as temporadas do Easy, quis ver se conseguia ir para Vermont, com actores, uma câmara e um microfone, e fazer um filme. “Será que ainda me lembro de como se faz?”
JL – Não tinham uma história?
Não, o Kent [Osborne] vive em Vermont e a Jane vai visitá-lo.
JL – Era a premissa básica. E não havia mais?
Exacto. A Jane foi visitá-lo e filmámos, do género: “O que é que fariam hoje?” Descobri que ainda conseguia fazer isto. Mas se fizesse dez filmes seguidos, eles iam começar a ficar cada vez melhores. A aptidão ia regressar. Há toda uma série de truques…
LM – Isto é como algo que o João me dizia há bocado, enquanto preparávamos esta entrevista: é como se estivesses a esculpir.
JL – Mais um escultor do que um escritor.
É mesmo isso. Filmávamos durante dois ou três dias. Depois eu dizia: “Amanhã, não filmamos, vou montar um pouco. Vocês vão fazer o que quiserem, divirtam-se, explorem Chicago, durmam o dia todo, o que quiserem…” Eu ficava ali, a juntar as imagens e depois víamos. Depois, surgia a questão: “O que vai acontecer depois? Esta cena resulta? Resulta ao lado daquela cena? Parece tudo muito rápido… Ok, então nada deve acontecer nessa cena, porque temos de dar descanso ao espectador. Se calhar aquilo que falei ontem, sobre o passeio na praia, possa ir para aí. Ok, perfeito”. Vamos para lá e filmamos. Isto é giro, porque, por vezes, no último dia de rodagem já temos a montagem final. Como se estivéssemos a fazer cinema em direto. No Art History (2011), assistimos todos ao filme antes de voltarmos para casa. Quatro dias de rodagem e um dia de montagem. Foi uma loucura.
JL – No ano em que rodaste vários filmes, como é que foi isso? Tiveste de fazer tudo mais depressa, não?
Achava que não precisava de mais que quatro dias para fazer um filme. Não havia desculpas. Depois, claro, fiquei esgotado.
Sim, o Adam Wingard ensinou-me a fazer isso. Ele escolheu-me para entrar num filme que estava a realizar, que era como seis curtas num único filme. O filme nunca foi lançado. Foi mostrado num festival. Chamava-se What Fun We Were Having (2011). Não estava muito interessado em participar como actor até ele me ter dito que iria fazer cada curta num dia, 20 minutos de filme em cada dia. Então disse: “Aceito entrar no filme, só para poder assistir a isso, não faço ideia como vais fazer algo tão depressa.” Assim, parti para o Alabama e fiquei banzado. Pensei que era genial, tão inteligente e intuitivo, movendo-se tão rápido. Ele foi para Chicago e fizemos um filme em conjunto chamado Autoerotic (2011). Disse-lhe que queria fazer exactamente da mesma forma: cada segmento devia corresponder a um dia de filmagem e queria ver se conseguíamos fazer um filme numa semana. Depois de fazermos isto, fiquei, digamos, viciado: “Oh meu Deus, se consigo fazer um filme numa semana, sou imparável!” [risos]. Esse período veio daqui. Achava que não precisava de mais que quatro dias para fazer um filme. Não havia desculpas. Depois, claro, fiquei esgotado [risos]. Também era impossível distribuir os filmes! Eram demasiados! Os festivais diziam: “Mas que raio?”
LM – Podias vender toda uma retrospectiva.
Alguns festivais estavam a fazer isso, mostrando três filmes meus. E os outros realizadores perguntavam-me: “Tu tens três filmes no festival?!” [risos].
LM – Estamos sempre a falar de amizades, networking, este aspecto colaborativo de fazer filmes, dentro dos filmes e entre os filmes. No programa desta mostra, Outsiders, vemos isso, nos créditos, em que há sempre este ou aquele nome que reaparece. Parece ser qualquer coisa do género: “Escreves o meu filme, eu participarei como actor no teu, produzes o meu filme, eu farei a montagem no teu, etc.” Há alguns que foram co-escritos ou co-realizados por alguns actores, sobretudo actrizes, tais como a Jane Adams e a Greta Gerwig. Como é que geres esta natureza altamente colaborativa das tuas produções ou porque é que sentes – se ainda sentes… – necessidade deste tipo de colaboração?
2005, 2006 e 2007 foi um período que mudou a minha vida. O SXSW tornou-se este ponto central onde nos víamos todos os anos e as ideias germinavam. Entrávamos nos filmes uns dos outros ou emprestávamos equipamento uns aos outros. Sempre admirei realizadores prolíficos e nunca fui muito minucioso relativamente ao resultado final. O Robert Altman fez filmes educacionais em Kansas City durante algum tempo, depois foi para Hollywood e fez episódios para séries de televisão, depois fez o M*A*S*H (1970) com para aí 48 anos, o seu primeiro filme. Adoro Clint Eastwood, Spike Lee… Todos os anos, têm um novo filme. Quer dizer, não faz mal que alguns dos filmes sejam maus ou mal recebidos. Ninguém quer saber. Ninguém diz: “O Robert Altman fez dez maus filmes.” Que se lixe isso, ele fez 15 obras-primas, merda! “Os seus filmes dos anos 80 podiam desaparecer…” Ok, ninguém quer saber.
Desde jovem que me senti encorajado a não ser tão minucioso: eu sou o realizador, tu o actor, tu o escritor… Podia simplesmente dizer: “Um filme feito por todos nós.” Ou “co-realizado”, “co-escrito”… Foi tão giro entrar nos filmes dos outros. Nessa altura, dizia “sim” a tudo: quem me pedisse para fazer não importa o quê no seu filme, eu ficava contente de poder fazer.

LM – Sentes também que todos vocês estavam imbuídos do mesmo espírito?
Sem dúvida. Não tínhamos dinheiro, estrelas, equipamento sofisticado. Estávamos a trabalhar com as mesmas pequenas câmaras. E notava que estávamos a tentar agarrar em qualquer coisa sobre dinâmicas humanas e relações, o que nos interessava a todos. Era fixe, porque éramos todos diferentes. Uns eram mais formais, eu era mais documental e leve, o Aaron Katz era mais formal e poético e artístico, os irmãos Duplass tinham uma sensibilidade comercial, percebiam de comédia melhor do que nós, o Andrew Bujalski era muito literário… Era fixe. Nós abordávamos os mesmos assuntos, mas se quisesses pôr tudo no mesmo saco, dizias “Mumblecore”. Mas se visses os filmes, nós éramos bem diferentes, pelo menos do ponto de vista do estilo.
Era porreiro entrar nos filmes de outros porque podíamos ver como eles trabalhavam. Podia ficar a ver o Aaron Katz a realizar o dia todo e pensar: “Uau, isto é giro.”
LM – Iam-se roubando uns aos outros.
Sim, e cruzámos também com o terror, com o Adam Wingard, o Ti West, o Larry Fessenden e essa malta toda. Eles eram estilisticamente diferentes de tudo. E depois o David Lowery… Grandes realizadores que começaram por segurar numa perche num dos meus filmes [risos]. Ninguém tinha um ego. Quando fizemos o Alexander the Last (2009), o David era a minha única equipa de rodagem, agora é um realizador cinquenta vezes maior do que eu. E tenho tantas fotografias cómicas dele, num canto do set [risos].
JL – Tenho uma pergunta relacionada com esta. É verdade que fazes os teus filmes em colaboração com os actores, mas ao mesmo tempo fazes quase tudo o resto sozinho. A autoria talvez não seja muito importante para ti, já que não te importas de partilhar créditos de realização. Mas até que ponto te consideras um autor e quão importante é essa ideia para ti?
Acredito que a autoria ainda significa qualquer coisa. Não é como se todos nos juntássemos numa sala e um filme surgisse do nada.
Olhando para todos os meus filmes, é óbvio que fui eu que os fiz. Ou que, pelo menos, estive bastante envolvido na sua feitura. Acredito que a autoria ainda significa qualquer coisa. Não é como se todos nos juntássemos numa sala e um filme surgisse do nada. Claramente, há temas que me interessam e sobre os quais quero trabalhar. Em relação ao facto de fazer quase toda a parte técnica dos filmes, isso deve-se mais a razões financeiras ou mesmo práticas. Não tinha tempo nem dinheiro para contratar outras pessoas para essas tarefas, portanto tive de aprender a fazê-las sozinho. Só pelo facto de ter um MacBook e o Final Cut Pro, percebi que poderia fazer correcção de cor, fazer a mistura de som. Historicamente, realizar um filme até pode ser relativamente barato, mas a pós-produção sempre foi cara. Era impossível despender 10.000 dólares por uma mistura de som profissional ou 15.000 dólares por uma correcção de cor profissional. A possibilidade de poupar 30.000 dólares em pós-produção foi uma das maiores razões por que, nessa altura – 2005, 2006, 2007 -, foram produzidos tantos filmes.
LM – Estava a pensar nos actores e actrizes dos teus filmes que se voltaram para a realização. O David Lowery não era actor, mas por exemplo a Greta Gerwig, a Olivia Wilde, a Amy Seimetz, o Ti West, etc. Como é que explicas isso?
Sinto que já me posso reformar. Ter tido a oportunidade de trabalhar com a Greta, a Amy, a Josephine Decker, a Lynn Shelton. Foi tão fixe!
Quando eles entraram nos meus filmes, ou nos dos irmãos Duplass – no caso da Amy, ela produziu filmes do Barry Jenkins -, tornou-se evidente que era perfeitamente possível realizar um filme. Não era um truque de magia. Acho que todos perceberam que para realizar não precisavam de passar anos na universidade, nem ter grandes conhecimentos técnicos, bastava a honestidade, a vulnerabilidade, estarem abertos a tudo. A experiência no mumblecore demonstrou-lhes que bastava terem uma ideia para fazerem um filme. E que não era preciso angariar muito dinheiro, nem ir para a universidade estudar teoria. De qualquer maneira, é formidável. Provavelmente, a grande herança do mumblecore é a quantidade de actores que se tornaram realizadores.
LM – Na programação do Outsiders, estão alguns realizadores, como a Lena Dunham, que começaram a fazer séries de televisão, ou a Chloé Zhao, que ganhou o Óscar e agora realizou um filme de super-heróis. Ou a Greta Gerwig, que é das maiores realizadoras de Hollywood. Como é que vês a evolução das suas carreiras e a tua própria evolução, uma vez que não fazes mais cinco ou seis filmes por ano? Parece-te positiva ou nem por isso?
Fico pasmado. Por muito entusiasmantes que fossem os filmes mumblecore, é preciso lembrar que eram exibidos para dez pessoas ou algo do género. É engraçado falar deles agora, e eram tão giros e colaborativos… mas não foram bem sucedidos comercialmente. E mesmo no circuito dos festivais, a maioria não tinha críticas muito boas ou então eram simplesmente negligenciados. Lembro-me de um dia, estava eu em casa, liguei a HBO e todas as séries eram de um realizador que vinha do mumblecore – Girls (2012-2017) da Lena Dunham, Togetherness (2015) dos irmãos Duplass, Looking (2014-2015) do Andrew Haig e qualquer coisa do Barry Jenkins. Realizadores, esses, que cinco anos antes eram considerados amadores, cujos filmes não valiam nada e que em dez anos ninguém iria querer ver. Dava para perceber, já nessa altura, isto foi para aí em 2009 ou 2010 (quando o Girls se estreou), que o género estava a ficar mais comercial, que estávamos a ser aceites pelo mainstream.
E como sabemos filmar por pouco dinheiro e depressa, e como não somos megalómanos, somos os realizadores de Hollywood ideais. Da mesma maneira que toda a gente que trabalhou com o Roger Corman – John Sayles, Ron Howard, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, um grupo de cineastas incrível – aprendeu a fazer cinema sem gastar dinheiro nem tempo. E depois disso estavam preparados para fazer filmes nos grandes estúdios. Parece-me perfeitamente normal que os estúdios procurem realizadores habituados a orçamentos baixos e lhes dêem condições para trabalhar, uma vez que são muito diferentes dos realizadores já estabelecidos, habituados àquele sistema, que só sabem gastar dinheiro, demoram eternidades, gastam um dia inteiro só para filmar um plano. Tens, por exemplo, alguém como a Greta que lhes diz que num dia consegue fazer 15 planos, sequências inteiras. Estou muito orgulhoso de toda a gente.
Mas ainda não dá para perceber quais serão as consequências artísticas disto tudo. Será que vamos perder essas vozes para a Barbie e o Lion King… O Barry [Jenkins] vai fazer o The Lion King 2… e a Lena [Dunham] também está envolvida num grande projecto. Talvez no futuro nos pareça uma perda. No entanto, do ponto de vista dos grandes estúdios, percebo perfeitamente porque são apetecíveis.
JL – Tu nunca fizeste curtas-metragens.
Sim, comecei logo a fazer longas.
JL – Essa pode ser a primeira pergunta: porque é que não realizaste curtas? Com a tua série, Easy, é como se fizesses uma curta por episódio. Como é trabalhar nesse formato?
Em relação à primeira pergunta, foi mais uma questão prática. Sabia que com orçamentos baixíssimos não conseguiria fazer curtas muito apelativas. A minha única esperança era fazer uma longa e levá-la a festivais. A maior parte das pessoas que realiza curtas, fá-lo porque tem uma ideia para uma longa e quer arranjar dinheiro ou quer experimentar qualquer coisa. Eu não tinha nada disso. Disse a mim mesmo: “Vou começar a filmar e ver o que acontece.” E logo ao primeiro filme fiz uma longa. E logo a seguir pensei: “Vou fazer isto outra vez.”
Uma das críticas constantes que fazem aos meus filmes é que têm apenas primeiro e segundo actos e depois acabam, não há terceiro acto.
Mas o Easy foi muito prazeroso. Os meus filmes nunca são muito grandes, a maior parte tem 65 ou 70 minutos. Uma das críticas constantes que fazem aos meus filmes é que têm apenas primeiro e segundo actos e depois acabam, não há terceiro acto; que os meus filmes são apenas um conjunto de cenas. Com Easy, senti que era possível fazer algo maior e mais comercial no formato de 25 a 30 minutos. Que era possível fazer um arco narrativo com que eu conseguia lidar, uma pequena narrativa em três actos. E adorei. De todas as coisas que fiz, o Easy é a minha preferida. Se a Netflix não tivesse acabado com a série depois de três temporadas, acho que teria continuado para o resto da vida. E a minha carreira seria composta por 20 longas-metragens seguidas de 40 temporadas de uma série de televisão. Estava nas minhas sete quintas. Pude trabalhar com todos os actores que queria, tinha dinheiro da Netflix, era perfeito.
JL – Tu falas da influência de escritores como David Foster Wallace e Don DeLillo, mas sinto que a escrita de Raymond Carver tem uma influência muito grande no Easy.
Não o conheço muito bem. Conheci-o sobretudo através do [Robert] Altman, quando ele fez o Short Cuts (Short Cuts – Os Americanos, 1993). Vi o Short Cuts quando andava no secundário, o que me fez interessar-me pelo Raymond Carver, até fui à biblioteca requisitar alguns livros dele, mas era muito novo na altura e aquilo não me disse muito. Quando estava na faculdade, fui-me interessando mais pelo David Foster Wallace e pelo Jonathan Franzen, por esse grupo de escritores. E nunca voltei ao Carver.

JL – É engraçado que fales no Short Cuts porque o Digging for Fire parece tirado desse filme.
Completamente. O Digging for Fire é o meu filme à Robert Altman, em todos os aspectos.
JL – Não sei se queres responder a esta pergunta. Queria falar da tua relação com a crítica, ou melhor, com os críticos. Em primeiro lugar da tua história com o Devin Faraci e o combate de boxe com ele.
Não me importo nada.
JL – Por acaso, tenho uma pergunta antes dessa. Queria falar sobre o Silver Bullets (2011), até acho que foi a crítica a este filme que espoletou a história com o Devin Faraci…
Sim, foi a partir daí, mas ele já tinha escrito muita merda sobre os meus filmes.
JL – O Silver Bullets parece a tua resposta às críticas aos teus filmes, só que em vez de suavizares esses aspectos, foste ainda mais longe.
Definitivamente. Na escola de cinema no final dos anos 90, princípios de 2000, os heróis eram os gajos da Nouvelle Vague, que fizeram a carreira sempre entre a crítica e a realização. A expectativa, quando eu fui para a escola, era que para se ser realizador também tinha de se ser um académico de cinema, um cinéfilo. O que é muito diferente dos primórdios do cinema. O Peter Bogdanovich e esse grupo de cineastas-cinéfilos versavam sobre o Howard Hawks e o John Ford, mas estes gajos não eram académicos, foram soldados na Segunda Guerra, que voltaram para casa e começaram a fazer filmes.
Tinha a sensação de que estávamos no momento para questionarmos: “Será que um realizador precisa mesmo de ser um teórico do cinema?”; “Será que estas duas coisas têm de andar em conjunto?” O Silver Bullets é um produto dessa tensão, de querer responder e envolver-me na discussão académica e, ao mesmo tempo, querer afirmar que esse não era o meu trabalho. Que não tinha de analisar a minha obra. O meu trabalho é dedicar-me aos meus filmes e deixar aos outros a análise. E a Jane Adams tinha-me dado A Gaivota do Tchéckhov, que foi influenciando muito a minha atitude durante esse período.
O Tim League depois convidou-me para fazer um combate de boxe com um crítico de cinema… O cineasta que tinha ido antes tinha sido o Uwe Boll e outros realizadores conhecidos por serem muito maus. Pensei cá para mim que me ia expor ao pior ao calçar umas luvas de boxe num festival de cinema de género e literalmente lutar com um crítico de cinema.
JL – Mas ganhaste…
E adorei. Achava que era a altura certa, que aquele era o momento para afirmar que me estava a cagar para a minha reputação ou como é que aquilo ia parecer. Achei divertido e engraçado. Mas depois senti-me mal. Não sei se o voltaria a fazer, até porque o Devin não reagiu muito bem, ficou mesmo chateado. E eu só aceitei naquela de nos rirmos os dois depois.
LM – Como uma piada do Andy Kaufman.
Sim, claro, era uma piada. A partir do momento em que ele ficou chateado e começou escrever na Internet sobre aquilo, fiquei… Isto não foi grande ideia. Isto transformou uma situação que já não era boa numa ainda pior.
JL – Ao mesmo tempo, alguns críticos como o Richard Brody da New Yorker tecem rasgados elogios aos teus filmes, quase te comparando ao Roberto Rossellini.
LM – Foi importante para ti ler o Richard Brody a dizer essas coisas?
O Richard Brody salvou-me. Gosto muito dele como pessoa. Fiquei a conhecê-lo ao longo dos anos e é um gajo muito porreiro. Com quem falas com gosto, muito inteligente. Senti que ele “foi a terreiro” para me defender… Acho que ele gosta mesmo dos meus filmes, mas também percebeu que havia uma onda a crescer na Internet pronta a descartar completamente a minha obra ou a pô-la numa categoria – muito sexual e pornográfica, demasiado amadora e esteticamente insuficiente.
LM – Ou, como o Devin Faraci diz, “muito narcisista”.
JL – E indulgente.
Respeito e reconheço o papel da crítica. Sem alguns críticos, não havia público suficiente para sustentar este tipo de filmes. Precisam da recepção crítica.
Exacto. Eu representava nos meus próprios filmes. As pessoas diziam que só fazia filmes para ter sexo com mulheres, essa espécie de coisas. E isto foi ao mesmo tempo que a Lena vendeu a série para a HBO e os irmãos Duplass também. Os meus antigos colaboradores estavam a subir na vida, a ficar mais comerciais, e eu estava a fazer o Silver Bullets e a ficar ainda mais agressivamente pequeno. E o Richard é o grande responsável pela reapreciação da minha obra. Escolheu esse momento para dizer: “Esperem aí, antes de desconsiderarem este gajo e mandarem os filmes para o lixo, pensem nos temas com que ele trabalha consistentemente.”
Outro realizador desse período era o Hong Sang-soo. O Hong tem uma enorme reputação internacional quando essencialmente refaz o mesmo filme uma e outra vez. Todos os filmes dele são sobre um realizador que vai a um festival de cinema, conhece uma rapariga de que gosta, embebeda-se, anda pelas ruas, luta com alguém, etc. E as pessoas por um lado adoravam o Hong Sang-soo e, por outro, olhavam para os meus filmes e diziam: “Este narcisista só faz filmes sobre realizadores.” Portanto, o Richard contextualizou a minha obra. Foi muito útil. Em 2011, o Festival de Sundance finalmente exibiu um dos meus filmes, o Festival de Berlim seleccionou o Silver Bullets e o Art History. Estive quase quase a desistir, já tinham passado alguns anos, já tinha feito muitos filmes. Estava a começar a pensar que não ia resultar. Foi um momento de viragem. Respeito e reconheço o papel da crítica. Sem alguns críticos, não havia público suficiente para sustentar este tipo de filmes. Precisam da recepção crítica.

JL – Ah, já me estava a esquecer da pergunta óbvia: o que é que se segue?
Tenho três projectos em desenvolvimento. Dois para televisão e um para cinema. Não sei muito bem qual será o próximo.
JL – Vai ser outra vez um filme mais pequeno?
Ainda tem uma dimensão indefinida, porque vai depender do casting. Se os actores forem mais conhecidos, será um filme de dois ou três milhões de dólares. Se não, ficará pelo milhão. Será mais ou menos da dimensão do Drinking Buddies.