Diz o poema: João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém./ João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/ Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ que não tinha entrado na história. E assim narra o filme: Pinuccia amava Antonella que amava Katia/ que amava Maria que amava Lia/ que amava as palavras./ Antonella morreu no mar, Maria morreu de cancro,/ as outras ficaram para tias menos Katia/ que casou com alguém que não entra na história.
O poema chama-se Quadrilha e é de Carlos Drummond de Andrade. O filme é Le sorelle Macaluso (As Irmãs Macaluso, 2020), da siciliana Emma Dante. Nenhuma relação entre os dois para lá de serem constituídos pelos factos da vida: nascemos, vivemos, casamos ou não, adoecemos, e morremos. A vida nas suas etapas objectivas. A outra relação, o facto de as irmãs Macaluso representarem a seu modo uma quadrilha. Sempre juntas.
A abertura de Le sorelle Macaluso pode fazer lembrar o cinema de Lucrecia Martel, no que este tem de insondável, de eminentemente feminino e de selvagem. Um plano fechado muito escuro de alguém que fura a parede até que a luz atravesse do lado de fora. Percebemos pelas vozes que está ali mais de uma pessoa, e perceberemos a seguir que naquela casa vivem cinco irmãs, de idades que variam entre o final da infância até ao fim da adolescência. São as cinco irmãs Macaluso, que não têm pais, situação sobre a qual ninguém tece comentários.
As irmãs Macaluso são como os pombos: aéreas, livres, desarrumadas, feéricas, um pouco lunáticas, e francamente poéticas na sua existência.
As irmãs vivem numa casa que acaba sendo a principal personagem do filme de Dante. O aspecto da casa reflecte o modo como é preenchida pelas Macaluso. É uma habitação ampla, antiga, com mais de um piso que serve de recreio, de morada, de espaço de trabalho (no andar de cima as irmãs Macaluso têm um terraço ocupado por dezenas ou mesmo centenas de pombos que alugam para cerimónias fúnebres ou festas de matrimónio, sendo que os animais uma vez soltos sempre regressam àquele espaço). Também as irmãs são como os pombos: aéreas, livres, desarrumadas, feéricas, um pouco lunáticas, e francamente poéticas na sua existência, coquetterie e fantasia.
Le sorelle Macaluso tem bem definidos os três actos da sua dramaturgia. O filme fora antes uma celebrada peça de teatro, onde nada além das figuras humanas era mostrado, e o espectador tinha que imaginar. Aqui existe uma casa, e existem outros breves palcos (um restaurante à beira-mar; um cinema ao ar livre, um baldio onde “do nada” nos surgem réplicas de dinossauros de tamanho real) para dar a sentir em constante movimento a natureza das Macaluso, como elas eram umas com as outras, e como cada uma era um ser particular. Os três actos correspondem à juventude, idade adulta, e velhice das Macaluso, e são todos pontuados pela morte. O desaparecimento das irmãs que morrem não implica que o filme faça delas personagens invisíveis. É aliás muito bonito, como as irmãs mortas surgem com a aparência que tinham (ao passo que as outras naturalmente envelhecem) repetindo gestos e rituais que são como memórias reactualizadas das Macaluso sobreviventes.
O filme de Emma Dante é simultaneamente indomável e rigoroso com a gestualidade das personagens, como numa dança da vida. A câmara de Dante corre ao lado das personagens e parece esvoaçar quando os pombos descrevem rotas só deles nos céus de Palermo. Os afectos são muito fortes aqui, as manas têm uma tendência para o drama, são mediterrânicas de gema, têm sangue na guelra, e são todas independentes e diferentes, embora constituam também uma identidade colectiva que vai procurando reparar no seu seio a perda de cada elemento.
Não abandonamos aquela casa no final do mesmo modo como nela entrámos. O filme encheu-nos de vida pela natureza daquelas mulheres e pelos acontecimentos passados com as Macaluso. A casa delas torna-se, de algum modo, também nossa, o que pode explicar a comoção com que assistimos à retirada dos objectos que juntamente com os pombos ocupam simbolicamente o espaço das vidas que não mais estão ali.
Le sorelle Macaluso é um dos filmes francamente bonitos deste ano.