[Menken’s] free-floating hand-held camera […] liberated a lot of independent filmmakers from the idea that had been so powerful up to then, that we have to imitate the Hollywood dolly shot, without dollies – that the smooth pan and dolly was the only acceptable thing. Marie’s free, swinging, swooping hand-held pans changed all that, for me and for the whole independent filmmaking world.
Stan Brakhage
A última viagem que fiz antes da pandemia de COVID-19 foi a Nova Iorque, na altura da passagem de ano de 2019 para 2020. Confesso que a “cidade que nunca dorme” não estava exatamente no meu top de destinos de viagem, mas quis o destino que, no âmbito do meu projeto de doutoramento, precisasse de ir consultar os arquivos da Film-Maker’s Cooperative, emblemática instituição fundada em 1961 pelos principais instigadores do New American Cinema Group (Jonas Mekas, Stan Brakhage, Shirley Clarke, etc.) com o objetivo de promover e de divulgar o cinema experimental e independente americano. Preparava-me assim para passar várias tardes fechada numa minúscula sala de projeção perdida num arranha-céus, onde iria ter o privilégio de (re)descobrir, no suporte original de 16mm, as obras destes e de outros cineastas experimentais, algumas delas relativamente pouco acessíveis na Europa. No entanto, o primeiro encontro efetivo com a memória cinéfila desta geração da vanguarda americana ocorreu no primeiro fim de tarde passado em Nova Iorque, quando, deixando-me levar a contragosto pela maré de turistas a dois passos da insuportável Times Square, me deparei com a imponente árvore de Natal do Rockefeller Center. Fora neste mesmo local que, cerca de sessenta anos antes, a cineasta de origem lituana Marie Menken se deixara deslumbrar pela iluminações de Natal e se aventurara a filmá-las na sua curta-metragem Lights (1966).

A falta de visibilidade de que padece ainda hoje a obra cinematográfica de Marie Menken não nos deve impedir de reconhecer o lugar singular que ela ocupou nos círculos artísticos nova-iorquinos mais underground entre os anos 1940 e 1970. Para além de ter realizado vários filmes em homenagem aos cineastas de quem era próxima [como Bagatelle for Willard Mass (1961) – com quem era casada – e Arabesque for Kenneth Anger (1961), ou ainda Andy Warhol (1965)], as suas criações dialogam com diversos movimentos artísticos, da arte abstrata de Piet Mondrian ou Jackson Pollock, à Pop Art de Andy Warhol e ao movimento Fluxus de Robert Watts, passando pelas animações gráficas de Len Lye, Norman McLaren ou Harry Smith. Para os dois principais arautos do cinema independente americano, Jonas Mekas e Stan Brakhage, Menken foi acima de tudo a precursora de um cinema poético na primeira pessoa, assente na prática do filme-diário; mas ambos reconhecem igualmente que a espontaneidade e o dinamismo que caracterizam a prática artística de Menken decorrem de uma sensibilidade particular face à mobilidade do mundo, que lhe permite transformar a realidade material e objetiva em poesia de imagens vibrantes, quase dançantes.
O primeiro filme de Menken marca o ato fundador da “câmara somática”, prática fílmica que pressupõe a identificação do enquadramento móvel com os movimentos realizados pela cineasta enquanto filma.
Com efeito, segundo Brakhage, o aspeto mais revolucionário do cinema de Menken era a sua maneira de filmar estando ela própria em movimento, improvisando as suas deslocações, reagindo aos estímulos do meio e provocando o contato físico com os objetos, sem procurar esconder as marcas das suas hesitações enquanto manipula a câmara. Também P. Adams Sitney, especialista do cinema experimental americano, considera que o primeiro filme de Menken, Visual Variations on Noguchi (1945), marca o ato fundador da “câmara somática”, prática fílmica que pressupõe a identificação do enquadramento móvel com os movimentos realizados pela cineasta enquanto filma. Deste modo, as realizações de Menken propiciam ao espectador uma relação inédita com as imagens, dando-lhe a impressão de assistir a uma espécie de dança tangível através da mobilidade dos planos, apesar da ausência da figura humana e da imobilidade dos objetos filmados. O seu olhar, porém, não corresponde ao de um espectador sentado, imóvel e passivo, diante de uma performance, mas sim à perceção dinâmica de uma dançarina em movimento, ávida de sensações e livre de constrangimentos.
A coincidência entre a dimensão performativa do olhar do agente filmante e a experiência somática do movimento transmitida ao espectador é particularmente notória na curta-metragem Lights. Filmada ao longo de três anos (1963-1966), este filme-pepita de cinco minutos oferece uma exploração in situ e in motion das iluminações de fim de ano em Nova Iorque, com foco na famosa árvore de Natal do Rockefeller Center.

Desde o início do filme, a câmara de Marie Menken esgueira-se por entre os galhos e os sinos coloridos, de um passo errante e maravilhado, como se se quisesse tornar invisível e fusionar com a massa abstrata de cores e de luzes que compõem o espaço. Se a proximidade da câmara aos ramos da árvore torna difícil de distinguir as formas, a imagem torna-se ainda mais confusa e indecifrável à medida que a cineasta começa a agitar a câmara espasmodicamente, de modo que as formas circulares se desfocam e se multiplicam, preenchendo a tela com manchas e estrias brilhantes azuis, vermelhas, verdes e amarelas. Um breve plano geral permite ao espectador reconhecer a forma cónica da árvore de Natal composta de centenas de pequenas luzes, mesmo quando esta é filmada de pernas para o ar num movimento de câmara virtuoso de 360°; da mesma maneira, é-lhe possível identificar as decorações dos edifícios ao longo da Park Avenue graças às gambiarras luminosas que desenham os seus contornos.
A trajetória do olhar de Menken é assim guiada pela trama de luzes na paisagem urbana noturna em constante movimento: partindo das variações policromáticas em torno das decorações do pinheiro do Rockefeller Center, a cineasta ora se deixa levar pelas iluminações das fachadas nos arredores do arranha-céus, ora se precipita atrás dos faróis dos automóveis que rasgam a escuridão à sua passagem. Enquanto que o efeito de intermitência das imagens é reforçado pelos jogos de reflexos e de velocidade (pequeno clin d’œil ao título do filme de 1925 do cineasta francês Henri Chomette, Jeux des reflets et de la vitesse), o ritmo efervescente da montagem denuncia o entusiasmo irrefletido da cineasta ao filmar sem qualquer planeamento prévio uma sucessão rápida de planos breves e instáveis.
A ideia de “pintar com a luz” sempre fascinara Marie Menken, tendo experimentado utilizar tintas fosforescentes e objetos reluzentes nos seus quadros e colagens.
Na segunda parte do filme, junta-se aos movimentos improvisados de câmara portátil um efeito de aceleração em time lapse, numa variante cinématográfica da técnica de light painting. Para isso, Menken diminui a velocidade do obturador da sua Bolex, de forma a que o filme seja exposto por mais tempo, o que faz com que até os focos fixos de luz deixem no ecrã um rastro luminoso evanescente. Com efeito, a ideia de “pintar com a luz” sempre fascinara Marie Menken, tendo experimentado utilizar tintas fosforescentes e objetos reluzentes nos seus quadros e colagens; mas é combinando o trabalho da câmara móvel com exposição longa da película que ela pôde, enfim, fazer dançar as luzes, sem para isso ter de filmar imagens de dança ou corpos de dançarinos.
Ao incorporar a sua performance física ao ato de criação de imagens assentes num fenómeno de perceção visual, Lights mostra que “ver é uma dança”, como dirá mais tarde o filósofo Jean-François Lyotard.

Em dezembro de 2019, diante da árvore de Natal do Rockefeller Center, pensei em Marie Menken com a sua câmara Bolex e imaginei-me seguir os seus passos, improvisando os meus. Contudo, não pude aproximar-me tanto quanto ela e acabei por desistir de registar o momento. Não é preciso dizer que, atualmente, uma barreira física e vários seguranças separam o majestoso abeto da Noruega do mar de turistas que afluem diariamente, de smartphones em punho, com o objetivo único de captar as mesmas imagens, de preferência em modo selfie, como permite constatar uma breve pesquisa nas redes sociais com o hashtag #rockefellerchristmastree. Em Lights, nenhum desejo de auto-representação, nenhuma necessidade de afirmar a co-presença entre o sujeito e o marco turístico, nenhum filtro ou efeito de pós-produção para tornar a imagem identificável e “consumível”. O que move Menken é o ímpeto puro e duro de filmar em movimento: longe de querer designar e definir claramente o que deve ser visto, os seus gestos filmicos colocam diante dos olhos dos espectadores – e através dos seus corpos – experiências visuais e cinéticas que de outro modo nos seriam inacessíveis.