O novo Palatorium, com os acrescentos de Dezembro, está bem recheado de coisas boas e apetitosas como é próprio da época festiva que se aproxima. Há por aqui muitos brindes e muitas favas. As novas doçarias que se abeiram da mesa são as doidivanas Le sorelle Macaluso (As Irmãs Macaluso, 2020), aqui vistas por Ricardo Gross, que também escreveu sobre outro dos trabalhos de confeitaria natalícia, Madres Paralelas (Mães Paralelas, 2021), de Pedro Almodóvar. A walshiana Ana Cabral Martins trouxe-nos uma revisão da matéria dada em universo heroico, escrevendo sobre Eternals (2021) e já nos havia deixado a sua prosa referente a The French Dispatch (Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun, 2021) de Wes Anderson. A propósito do filme de Almodóvar, abrimos aqui espaço ao contraditório, com um comprimido de Ricardo Vieira Lisboa, e inauguramos a reflexão sobre a homenagem filial a Ghostbusters, assinada por Daniela Rôla, um sorriso triste de Ana Cabral Martins para House of Gucci (Casa Gucci, 2021), e o rohmeriano Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait (As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos, 2020), visto por João Araújo.
A mera ideia de um filme sobre as façanhas da família Gucci no mundo da moda e do crime pareceu, de imediato, um exercício de natação naquilo a que Ray Stevenson e Sir Kenneth Branagh designaram como The River of Ham (hamming it up não é menos do que uma interpretação exagerada). A partir do momento em que vemos o trailer, a sugestão de algo extremamente campy está logo no ar: os sotaques, meu deus. Preparemo-nos para a viagem mais constrangedora na utilização forçada (e farsesca) de acentos italianos num rol de actores que, cada um, parecem estar num filme diferente. Mas o que poderia ser bombástico acaba por ser patético e rotineiro. Ouvir a Lady Gaga a dizer “It’s time to take out the trash” ou “Father, Son and House of Gucci” tem graça, mas apenas pelo seu potencial enquanto meme e não pelo seu poder enquanto representação.
O filme quer que nos divertamos com ele e, mais do que uma vez, há contrastes de montagem e escolhas musicais decididamente a piscar o olho: a morte de um homem logo após ter dito que eram precisas mais mulheres na família, a passagem de uma cena de sexo cavalgante, ao som de uma ária de ópera, é imediatamente seguido por uma cena em que os personagens se casam. Não é um filme subtil na execução nem no uso das metáforas, e chega a ser presunçoso na sua capacidade de suscitar risos. A história em si é uma sucessão de traições mal explicadas, com personagens cada vez mais caricaturais. Lady Gaga ganhou o Prémio de Melhor Actriz nos New York Film Critics Circle, o que talvez faça adivinhar um caminho pelas várias cerimónias de prémios. Mas ao contrário de Jeremy Irons ou Al Pacino — que nas mesmas circunstâncias de uso duvidoso de sotaque italiano, conseguem elevar o material que possuem a algo com pathos —, a cantora que se mostrou promissora em A Star is Born (Assim Nasce Uma Estrela, 2018), de Bradley Cooper, parece não conseguir cumprir a promessa e a sua Patrizia é incrivelmente self-conscious, não porque a personagem o seja (é, pelo contrário, uma força da natureza ambiciosa), mas porque vemos que Gaga está constantemente a sentir o peso da câmara sobre si. E isso estraga todo o encanto, toda a graça que o filme poderia ter. No final, do filme só se extrai um sorriso, que termina como esgar.
Ana Cabral Martins, 13 de Dezembro
Ghostbusters: Afterlife é um assumido convite aos fãs dos filmes originais para que revisitem esta história, estas personagens, tal como Jason Reitman faz face ao legado do seu pai, Ivan Reitman, que dirigiu os dois primeiros Ghostbusters. Afinal, as vidas ulteriores de que fala o título original são também feitas de legados. Quando não há uma herança feita de memórias, o que resta é o tangível. É isso que Callie (Carrie Coon) procura na quinta deixada pelo pai, tendo sido ele uma figura que esteve sempre ausente da sua vida, facto que minou a relação entre pai e filha. Mas a neta, Phoebe (Mckenna Grace), justamente porque não carrega em si essa ferida emocional, é livre para ser próxima do avô, abeirando-se rapidamente do seu fantasma, encontrando nele um comparsa que até aí não conseguia encontrar no mundo terreno. Estamos num território onde passado e fantasmas se confundem, o presente permanentemente assombrado pelo passado.
A terriola para onde somos levados, Summerville, perdida algures no Oklahoma, está também ela inundada de nostalgia. Ou, se quisermos, de fantasmas – o diner de estilo retro onde as empregadas servem os pedidos em patins, as cassetes de vídeo que ocupam os dias de summer school dos miúdos, o cinema que exibe Cannibal Girls (1973), um dos primeiros filmes de Ivan Reitman. Se Summerville é uma terra estranha, onde se adivinham fenómenos sobrenaturais, o Verão será também uma terra estranha para os jovens deste filme, como é para qualquer criança – um convite à aventura, a perder-se por lugares que se esgotam em três meses. Esta viagem nostálgica é feita à medida de espíritos que ocupam o presente, mas que se sentem puxados para o passado, para a infância, para memórias reconfortantes. Nem mesmo os efeitos especiais são imunes a uma estética old school. Em suma, não recomendável a não-melancólicos.
Daniela Rôla, 13 de Dezembro
Todo o aspirante a crítico de cinema e todo o jovem realizador terão lido o texto de Jacques Rivette, publicado na edição de junho de 1961 dos Cahiers du Cinéma, intitulado “Da Abjeção”, sobre o filme Kapò (Kapo, 1961). Provavelmente quase ninguém viu, sequer, o filme de Gillo Pontecorvo, mas isso pouco importa. O que ficou foi a ideia do plano (do contrapicado) como questão moral [em antecipação da formulação godardiana a propósito do traveling de Hiroshima mon amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959)], isto é, que havia na decisão de enquadrar uma dimensão ética que revelava uma forma de entender o mundo. Pois bem, o senhor Pedro Almodóvar deverá estar fartinho ler e ouvir falar do texto do Rivette, como aliás o simpático leitor que aguentou até aqui ler estas míseras linhas. Sendo assim, como se justificam os dois últimos planos de Madres Paralelas?
É impressionante como é que um filme de uma particular elegância e subtileza narrativa e formal consegue culminar com duas imagens de tão intragável composição. A primeira delas é um plano longuíssimo, de uma criança de dois anos a forçar o choro perante uma vala comum museografada. No contexto dramático é compreensível a emoção dos presentes, mas aquela imagem de uma criança a esfregar o olhinho e a fazer beicinhos é execrável. Não tanto pela imagem em si, mas pela duração do plano. A criança é símbolo da geração que não tem já qualquer ligação com aquele legado, pelo que este excesso emotivo aproxima-se – em limite – do kitsch: uma espécie de “menino da lágrima” dos crimes de guerra do franquismo. Só que a esse plano segue-se um outro, ainda mais terrível: um plano picado god’s eye da dita vala comum, agora preenchida pelos arqueólogos que a haviam escavado. Que mau gosto (e nem sequer é camp)! Dar corpos contemporâneos (e completamente desvinculados da narrativa) àqueles que se pautam pela ausência é, no mínimo, uma ofensa. O que reforça o postiço de todo o substrato político do filme que o realizador nos atira, sucessivamente, à cara (tanto nesse revisionismo historiográfico, como no feminismo de t-shirt, ou no cardinal de me too). É aí, nessa vontade de tornar funcional o melodrama enquanto ferramenta sociopolítica, que Almodóvar escorrega. De resto, está tudo muito bem decoradinho (só falta a etiqueta com o preço e o link para a boutique representante da marca).
Ricardo Vieira Lisboa, 13 de Dezembro
Não é difícil perceber porque já ouvimos o termo rohmeriano associado a Mouret, e particularmente ao seu novo filme – pela forma como longas sequências de diálogos controlam a história e funcionam para avançar uma narrativa episódica – mas também não é difícil pensar como este é um filme que (quase em demasia) preenche todos os requisitos de um certo cinema francês que se ocupa de histórias de amores e desamores, encontros e desencontros, seguindo uma longa tradição em que as palavras trocadas parecem querer justificar as tais histórias de amor, como preliminares para as acções seguintes. O título, Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait (As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos, 2020) parece aludir precisamente a uma espécie de dualidade ou contraste entre as palavras e as acções das suas personagens, ou seja, entre a mente e o coração, e de facto à medida que o filme vai apresentando uma série de vinhetas de diferentes histórias de amor e uma série de personagens que se vão emaranhar entre si numa espécie de novelo romântico, ou até mesmo numa impressionante matrioska de infidelidades, Mouret parece querer mostrar como tudo nas vidas destas personagens é contagiado pelo amor (ou pelo menos, uma versão disso), quase como se tratasse de uma doença inescapável ou irresistível.
Mouret filma com uma encenação e enquadramentos assinaláveis pela forma como conduzem o olhar do espectador, e o elenco acrescenta algumas performances complexas, mas mais do que um tratado sobre a fragilidade da monogamia ou um estudo complexo sobre estas personagens e a sua impossibilidade de não ceder à tentação, à medida que o tal novelo se complica, o filme aproxima-se demasiado do que poderia ser uma versão de Shyamalan sobre aventuras amorosas, ou um remake francês de Wild Things (Ligações Selvagens, 1998) de John McNaughton, de uma auto-paródia de uma certa ideia do cinema francês, da qual é difícil abstrair e que não parece ser a intenção do filme, dissipando assim qualquer ideia rohmeriana que Mouret possa ter prometido antes.
João Araújo, 13 de Dezembro