Preston Sturges, Billy Wilder, Dalton Trumbo, David Mamet e Aaron Sorkin. A história reconhece(u)-os primeiro como argumentistas e eventualmente depois enquanto realizadores. Uma coisa é certa: costuma ser da escrita que os seus filmes desabrocham enquanto objectos cinematográficos. Pensados da máquina de escrever ou do laptop para a câmara de filmar, detectamos em quase todos estes nomes uma virtuosa economia dramática, em que nada está a mais e em que os sentimentos mais densos ou ricamente disparatados são, por vezes, comunicados apenas com uma frase ou um olhar ou um gesto.
“Um bom escritor só se torna bom quando aprender a cortar, a remover o ornamental”, ensinou David Mamet na sua obra de referência sobre a arte de escrever visualmente On Directing a Film. Glengarry Glen Ross (O Sucesso a Qualquer Custo, 1992) não é realizado por Mamet, mas é baseado num argumento seu que, por sua vez, se baseia numa peça sua. O competente James Foley executa o plano na perfeição, dando a volta ao princípio básico do bom storytelling americano: não tanto “pouca conversa, muita acção”, mas mais “muita acção, porque muita conversa”. Tudo o que vemos e ouvimos são homens numa furiosa corrida contra o tempo, comendo-se vivos para garantirem o paycheck. Tudo o que eles dizem soa a banalidades (com boa dose de vernáculo), mas sentimos as palavras como se fossem balas dirigidas ao coração ou facadas dadas nas costas de cada um.
Quis o destino, e algumas peripécias de bastidores do showbiz, que um dos filmes mais mametianos dos nineties não fosse realizado por David Mamet. Dir-se-ia que, se calhar, havia o perigo de resultar redundante o efeito de uma realização com base nesta peça, que lhe granjeou um estrondoso sucesso aquando da sua estreia na Broadway, em 1984. Porquê? Porque tudo está na escrita, no típico staccato mametiano, aqui particularmente inspirado e vívido. Enfim, poder-nos-íamos interrogar: seria este um filme condenado, logo à partida, a ficar “amarrado” ao efeito da sua escrita? Mas que escrita é essa?
Numa frase, ela resulta de um trabalho meticulosíssimo, quase de filigrana, no que diz respeito à criação de um ritmo extremamente seco, directo, em crescendo dramático mas sem floreados ou sublinhados psicológicos. Como peças de um xadrez em que ninguém vence, Mamet crê que os actores devem estar ao serviço do drama e não o contrário, como, aliás, o descreveu no notável tratado sobre como realizar um filme, On Directing a Film: “O propósito do diálogo não é passar informação sobre ‘a personagem’. A única razão pela qual as pessoas falam é para obterem algo.” A visão do mundo de Mamet é, assim, aplicada ao mundo tal como este aparece representado nas suas peças e filmes, pelo que “um bom actor é aquele que executa as suas tarefas da maneira o mais simples e não emocional possível”.
O elenco galáctico que aqui se reúne, composto apenas por homens (Jack Lemmon, Al Pacino, Kevin Spacey, Alec Baldwin, Alan Arkin, Ed Harris), é como uma banda de jazz afinada pelo mesmo metrónomo. E esse metrónomo é ditado pelos humores do dinheiro, o que entra e o que sai nesta empresa de miseráveis agentes imobiliários. Numa espécie de reflexão c(l)ínica sobre a máquina capitalista, uma bomba é lançada sob a forma de “missão impossível” a um grupo de trabalhadores especialmente desmotivados: venderem terrenos a quem, à partida, não os quer/consegue adquirir, para, deste modo, garantirem o primeiro ou o segundo lugares do pódio. A partir do terceiro lugar, o prémio é o olho da rua.
O desafio cruel, “viciado” à nascença, é formulado pelo estereótipo mais bem conseguido da corporate America dos idos anos 1990: numa sequência que o próprio Mamet chegou a reconhecer como a mais inspirada da sua carreira, o escroque manda-chuva interpretado por Alec Baldwin dita, em jeito de lição/ralhete dado a uma turma de repetentes, o que é preciso ter, e ter “no sítio”, para vingar no mundo lá fora (o tal mercado onde vale tudo menos arrancar olhos para se ser “um homem de sucesso”). Como símbolo da ganância corporativa, Baldwin recorre a um par de reluzentes “bolas de latão”, num momento que tem tanto de insólito como de assustador.
Naquela noite chuvosa, os quatro vendedores dão corda aos sapatos para, no final, poderem suspirar de alívio, garantindo o emprego do qual dependem tanto eles como as suas famílias. O “mundo cão” da América empresarial é mostrado, na sua face mais horrível, ao jeito de uma corrida de 100 metros, em que todos partem aparentemente em igualdade de circunstâncias. O interessante, nesta alegoria de ácido comentário social e político, é que, face às “regras do jogo”, intrinsecamente perversas, os competidores não vão demorar muito a procurar vias alternativas para serem bem sucedidos no final e cortarem a meta. Um sistema podre do ponto de vista moral gera, desta forma, jogos e jogadas igualmente ínvias e, a dado momento, criminosas. As personagens parecem ser, enfim, os produtos e as produtoras deste caldo cultural em que o valor máximo é a ganância – não há santos aqui, pessoas 100% fiáveis ou 100% boas, nem pouco mais ou menos.
Veja-se como Foley, quer dizer, como Mamet nos apresenta à personagem interpretada por Al Pacino, o mais temível dos vendedores imobiliários, com veneno na ponta da língua, que responde pelo nome – com o seu quê de gangster dos idos anos 1930 – Ricky Roma. Não sabemos ainda que vai ser essa conversa a partir o filme (e a peça) ao meio; não sabemos que uma conversa aparentemente casual num bar é a ratoeira mais brilhantemente montada durante a primeira parte, em que a corrida por boas dicas (as glengarry leads…) e por negócios fechados na hora é tão intensa e brutal como foi a corrida ao ouro na Califórnia em meados do século XIX. Roma não assistiu à palestra do yuppie arrogante interpretado por Baldwin. Perceberemos que não precisou de assistir, porque Roma aprendeu a arte com Shelley “The Machine” Levine (Jack Lemmon), fazendo o que os discípulos fazem melhor: superar os seus mestres.
Todos os caminhos vão dar a Roma, a esse diálogo aparentemente descontraído e inocente no bar, com um muito atento e muito vulnerável Jonathan Pryce (bom papel de um actor algo ignorado, aqui “diluído” num elenco de grandes estrelas), interpretando “o banana” James Lingk. “Dizem que não se deve beber álcool quando faz calor”, atira para o ar Ricky Roma ao balcão de um bar/restaurante chinês, “estábulo” forrado a vermelho onde os vendedores vão para descansar, esquecer uma má noite ou gabar-se de uma venda espectacular. “Quem diz isso?”, responde Lingk. A partir daqui, está criado o elo entre as duas personagens – começa ao balcão e, vários minutos depois no filme (mais de trinta sem sinal do paradeiro de Al Pacino…), terminará face-a-face, em jeito de conversa intimista, com os dois sentados em torno de uma mesa. Imaginamos que Pacino assumiu grande parte das despesas da conversa até chegarmos a este ponto. Lingk continua a ser um ouvinte atento (mas passivo, também) das histórias – e teorias – de Roma. “Quando morreres, arrepender-te-ás das coisas que não fizeste”, depois Roma perora sobre tudo: merda, mijo, sexo… a vida. Parece que assistimos a uma algo pueril conversa de bar, com uns bons copos em cima.
A narrativa avança e, quando regressamos, Foley produz um travelling súbito para ir ao encontro de Lingk e Roma, sentados a um canto do bar/restaurante: “Acções, títulos, objectos de arte, imobiliária. O que são? Uma oportunidade. Para quê? Para fazer dinheiro? Talvez. Para perder dinheiro? Talvez. Para te entregares e aprenderes algo sobre ti mesmo? Talvez.” Quando Roma tira do bolso um panfleto com o nome “Glengarry Highlands”, percebemos que a conversa não havia sido assim tão “desinteressada”; que Roma não estava de maneira alguma a descansar, nem verdadeiramente a partilhar com um simpático estranho a sua filosofia de vida. Bem pelo contrário, ele havia estado o tempo todo a preparar terreno para vender mais terreno, digamos assim. Como uma seta venenosa, captura o interesse de um tipo sozinho que bebe de mais – é um potencial cliente? Talvez. “Aqui está uma porção de terreno. Escuta agora o que te vou dizer”. Enquanto os colegas se espalham ao comprido e se envolvem em manigâncias, Roma faz do playground o seu battlefield para fechar mais um negócio e, com isso, para continuar a ser o número 1 e, com isso, evitando de vez ficar com “o terceiro prémio”, que, como Baldwin de forma eloquente tornou claro no seu discurso de duros tomates, significa “you’re fired”.
Nada é o que parece ser – tudo é o que parece ser, porque é no taco-a-taco verbal que o negócio gira e acontece, 24 horas por dia. Não há descanso, ninguém dorme enquanto não fechar um negócio e ultrapassar a concorrência. Enfim, não há santos nem santinhos aqui como, aliás, não há em lado nenhum. Parece também ser isto que Mamet nos diz, acrescentando outro aspecto importante que faz saltar, digamos assim, o lado formal da sua escrita jazzística para o domínio da substância dramatúrgica. Esse aspecto diz respeito à tal cadência sofisticadíssima de diálogos repletos de vernáculo grosseiro e sugestões degradantes. Face a eles, apetece concluir: o jogo está por toda a parte e ele também tem um estilo – Mamet sabe como poucos misturar, e baralhar, a cartada “forma” com a cartada “conteúdo”. Por força da “sobre-estilização” dos diálogos (mas em que less is more, claro), tudo parece ser construído ou encenado neste filme.
Veja-se a sequência em que interagem o veterano Shelley Levine, interpretado por um old timer da comédia rápida e virtuosa, Jack Lemmon, um dos actores favoritos de Billy Wilder, aqui regressado com estrondo a um universo que não lhe é estranho, com o seu discípulo, Ricky Roma himself, numa altura em que Pacino, de facto, já se esmerava no overacting. Os dois produzem um “pequeno teatro” para enganar o cliente arrependido, num “jogo de cena” desenrolado no seio de uma obra toda ela construída sobre uma peça, num palco invisível que, apesar disso, sentimos intensamente. Com este momento fulgurante de teatro dentro do filme – instância do falso levada até à última potência –, percebemos como a escrita de Mamet – e a realização cuidada e “empática” de James Foley, realizador à procura de uma segunda oportunidade, após um promissor começo de carreira com Reckless (Jovens Sem Rumo, 1984) – é bastante traiçoeira, pois não é por estarem, de maneira flagrante, a interpretar papéis que estas personagens soam mais falsas. Bem pelo contrário: quase nada muda quanto à sua natureza.
Que realismo é este em que os palcos se desmultiplicam, em que o cinismo é um way of life tão convincente, tão encarnado e, digamos assim, tão “verdadeiro”? Cada um destes homens acaba por ser como um patético actor numa peça sem grande interesse que é a sua vida, cheia da mesquinhez e pequenez de trabalhadores de colarinho branco, ora consumidos pela vaidade, ora consumidos pela sabujice.
A forma é o conteúdo, o conteúdo é a forma, e ambos jogam entre si brilhantemente, sem interrupções, quase sem se sentir a divisão das cenas ou a evolução da trama… Nada evolui, tudo se compõe e entrelaça e entranha, como se desde o minuto zero tivéssemos sido sugados pelo grande carrossel da mentalidade corporativa pós-Reagan.
Assim sendo, parece-me certeira a observação do crítico espanhol Miguel Marias, quando observa, na crítica ao filme (revista Estrenos, número 6, 1993), que “Glengarry Glen Ross não tem nada de extraordinário, mas é excelente… por nenhum motivo em particular: simplesmente, tudo é interessante”. Na realidade, em si e por si, nada nem ninguém é muito interessante, mas tudo interessa, tudo seduz porque se (re)vira e vai a jogo constantemente. A forma viva e electrificada a tomar conta do conteúdo cinzento e caído. Puro Mamet, portanto.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.