Já escrevi, aqui ou alhures, que Luis Buñuel foi meu primeiro cineasta de cabeceira. Foi aquele que me fez ter a certeza de que cinema era uma das coisas mais importantes para mim. A primeira visão de El ángel exterminador (O Anjo Exterminador, 1962) foi marcante. Numa fita VHS de uma distribuidora chamada Sagres, que lançava algumas obras-primas do cinema que todo cinéfilo principiante conhecia na virada dos anos 1980 para os 90, o filme imediatamente me enfeitiçou. A primeira vez que o vi no cinema, alguns meses depois, também foi marcante, a tal ponto que considero o meu nascimento como cinéfilo.

Contudo, há um outro filme do realizador que a cada revisão cresce mais um bocadinho no meu panteão pessoal. Chama-se Tristana (Tristana – Amor Perverso, 1970). Buñuel o realizou na Espanha, no meio de sua fase francesa. Diz meu amigo José Oliveira que Buñuel pensou em filmá-lo em Braga, o que faria todo sentido. Por outro lado, não imagino Tristana sendo filmado em outro lugar que não Toledo, adorável cidade medieval que conheci em 2015 com meu irmão, e que também é banhada pelo Tejo, como nossa amada Lisboa.
Mas se Buñuel dizia “eu sou Viridiana” em entrevistas, a respeito de Tristana ele provavelmente diria “eu sou Don Lope”.
Se Viridiana (1961) desvia a rota para espelhar Nazarin (1958) de modo ainda mais cruel, Tristana retoma Viridiana em uma chave mais sutil e irônica, embora sem abandonar a crueldade. No lugar de Silvia Pinal está Catherine Deneuve como a mulher pretendida pelo personagem de Fernando Rey, Don Lope (que repete na aristocracia e nas obsessões o Don Jaime feito pelo mesmo ator no flme de 1961). Buñuel reencontra Júlio Alejandro, seu corroteirista em Viridiana, e Benito Pérez Galdós, cujo romance Halma serviu de inspiração para Viridiana e cujo livro Nazarin Buñuel já havia adaptado (também com Julio Alejandro). Essas ligações tornam mais evidente o universo que une esses três filmes.
Mas se Buñuel dizia “eu sou Viridiana” em entrevistas, a respeito de Tristana ele provavelmente diria “eu sou Don Lope”, um homem que despreza a ganância comercial, as superstições religiosas e a autoridade (informa o caminho errado para os policiais que perseguiam um ladrão). Don Lope é uma versão amadurecida e evoluída de Don Jaime. Mas seu amor por Tristana se assemelha ao amor de Don Jaime por Viridiana. A governanta Saturna, por sua vez, é uma versão envelhecida da Ramona de Viridiana.
Nos dois filmes terminados em “ana”, a religiosidade e os bons costumes são corrompidos pelo desejo sexual. No primeiro, todo o relato é um longo percurso a essa corrupção. No segundo, tudo acontece mais depressa, embora Don Lope dure mais que Don Jaime e a corrupção do corpo se dá com o personagem de Fernando Rey, não com seu sucessor. Aqui, é Tristana que tem um grave problema de saúde, e perde uma perna, remetendo cruelmente às pernas de Viridiana, que conquistaram Don Jaime. Don Lope se encontra debilitado no final do filme. E Tristana fica a cada dia mais rancorosa. Até que seu sonho recorrente, o badalo de sino com a cabeça de Don Lope, possa se concretizar na agonia final deste último. Se Viridiana causa indiretamente o suicídio de Don Jaime, Tristana apressa a morte de Don Lope ao apenas fingir que ligou para o médico.
Apesar de Tristana estar pleno do universo de Buñuel, representa um interlúdio espanhol mais narrativo nos seis filmes que marcam a fase terminal de sua carreira. Há uma trama mais definida com relação aos outros. Podemos encontrar em Cet obscur objet du désir (Este Obscuro Objecto do Desejo, 1977), outro filme com Fernando Rey, uma espécie de equivalente nesse pendor para o narrativo, como também para a crueldade, que em ambos atinge níveis grandiosos, mesmo para os padrões buñuelianos. Penso agora que foi esse teor mais narrativo que seus outros filmes que me fez demorar um pouco mais para considerá-lo um dos grandes de Buñuel. Mas agora prevejo que ele tenha entrado num panteão do qual não sairá mais.