À primeira vista, pode parecer que Gûzen to sôzô (Roda da Fortuna e da Fantasia, 2021), o novo filme de Ryûsuke Hamaguchi, é uma obra menor, ou de âmbito mais reduzido do que os seus filmes anteriores. Afinal, não se trata de um épico de várias horas que atravessa um largo período de tempo na vida de várias personagens, como em Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), ou de dois momentos definidores separados por uma elipse, como em Netemo sametemo (Asako I & II, 2018) – aqui a acção decorre em tempo real, acompanhando um encontro entre duas pessoas, conversas íntimas em três episódios distintos. Porém, Hamaguchi demonstra que também é possível dizer muito com poucas acções, e que ao reduzir a escala ao mínimo, cada gesto e frase ganha proeminência e um sentido maior. Qualquer variação mínima ganha como forma de expressão: o que é dito, a forma como é dito, o que fica por dizer, o que é escondido, acaba por ser ensurdecedor. A abordagem minimalista adoptada funciona, assim, como uma lupa que nos leva a procurar sentidos e significados nas minudências do dia-a-dia – e nos imbróglios sentimentais.
O filme é estruturado em três partes dominadas pelos temas da coincidência e do romance, que poderiam funcionar como curtas-metragens independentes, mas que juntas servem para acentuar uma sensação de ver algo em combustão lenta, como a construção metódica de relações entre personagens afectadas pelas complicações do amor e dos seus desejos. O primeiro episódio acompanha o regresso a casa de duas amigas e a sua conversa sobre um encontro amoroso que uma delas acabou de ter no dia anterior. Tsugumi relata a forma como ficou encantada com o homem que conheceu, partilha aspectos íntimos e detalhados do tempo que passaram, expectativas e dúvidas para o futuro. A outra amiga, Meiko, é muito mais comedida no que partilha, mas ao mesmo tempo é bastante curiosa, faz perguntas interessadas, e aos poucos percebemos como as duas são diferentes: Tsugumi é mais tímida, revela que precisaria de mais tempo antes de ter sexo com alguém, tenta racionalizar os sentimentos, enquanto Meiko é mais impulsiva, mais emocional, confessa ter sido infiel em relações anteriores. Todas estas revelações são feitas através de deduções, de meias palavras, num plano de longa duração que dirige o foco para as expressões faciais e corporais de cada uma em reacção às palavras da outra.
Poucos realizadores conseguiriam transformar uma simples conversa entre duas pessoas, num espaço fechado, em algo tão empolgante, criando ao mesmo tempo verdadeira empatia para com a situação de ambas as personagens.
Quando se despedem, Meiko pede ao taxista para a levar a outro sítio, e decide visitar o ex-namorado. É aqui que a conversa anterior começa a ganhar novos significados, a revelar pistas para uma outra história paralela, e gradualmente percebemos o sentido das perguntas e comentários de Meiko sobre o encontro da amiga. Neste episódio tudo se encaminha para um momento que é mostrado duas vezes, num comentário sobre a aleatoriedade e fragilidade (e efemeridade?) das decisões que tomamos no dia-a-dia.
Se, no primeiro episódio, o espectador tem toda a informação (por causa da conversa inicial entre as duas amigas), e é uma questão de colocar as peças no puzzle e tentar perceber a veracidade de cada versão, no segundo episódio o espectador está completamente no escuro, sem saber o que está ou vai acontecer, numa variação interessante de registo – mesmo que a abordagem continue a ser minimalista, o espectador vai ser obrigado a procurar significado de outra forma.
Uma aluna tenta seduzir um professor (e premiado escritor), para ver se este corresponde aos seus avanços, enquanto grava secretamente a conversa, para mais tarde usar isso contra ele, aliciada pela vontade do namorado em se vingar do professor. Numa longa conversa, que começa de forma formal, tímida e gradualmente se transforma em algo íntimo e imprevisível, o diálogo atinge diversos registos em pouco tempo – cómico, erótico, triste, esperançoso, caricato – muito graças às performances do duo de intérpretes, mas também pela forma como Hamaguchi consegue suster a atenção em pequenos detalhes e gestos, evidenciando o contraste entre o que é dito e a forma como o é dito, registando os olhares desencontrados. O “obstáculo” aqui é a aparente impassividade ou a falta de emoção demonstrada pelo professor, que nós, tal como a aluna, temos de tentar ler correctamente. Poucos realizadores conseguiriam transformar uma simples conversa entre duas pessoas, num espaço fechado, em algo tão empolgante, criando ao mesmo tempo verdadeira empatia para com a situação de ambas as personagens.
Se o segundo episódio é talvez o mais amargo dos três, ou mais sombrio, o terceiro é o mais esperançoso, ou aquele em que as coincidências jogam a favor da descoberta. Duas conhecidas que já não se vêem há muito tempo encontram-se por acaso na rua, ao passarem uma pela outra. Uma delas, Natsuko, está de regresso para uma reunião de turma da escola, depois de vários anos a viver noutra cidade. Há só um problema: uma delas, Aya, não se lembra da outra, e Natsuko parece não se lembrar correctamente dos detalhes, como o nome dos professores ou amigos em comum. Pouco depois, as duas percebem que se trata de um caso de identidade trocada, em que a mulher que está de visita julgou ver na outra uma antiga namorada, Mika. Porém, a descoberta do engano não acaba com o encontro entre as duas, pelo contrário, abre as portas para uma conversa franca entre duas estranhas, permitindo revelações sobre a sua intimidade.
Num passo de “magia” ficcional, Aya propõe tomar o lugar de Mika e pergunta a Natsuko o que esta diria à sua antiga namorada se a tivesse encontrado na rua. Se até aqui o filme se aproxima bastante do cinema e das construções de Hong Sang-soo (até com o aparecimento fugaz de um ou dois zooms rápidos), e, também, próximo das obras de Éric Rohmer (pela forma como as personagens se enamoram e desenamoram através de longas trocas de palavras que idealizam o amor), a evocação de sósias ou duplas coloca o filme perto de Copie conforme (Cópia Certificada, 2010), de Abbas Kiarostami, até pelos jogos referenciais ao cinema – como na cena que é repetida duas vezes no primeiro episódio e agora, no terceiro, pela oportunidade de viver momentos que não aconteceram.
O resultado deste jogo, proposto por Aya, é uma comovente troca de lugares, em que o “fazer de conta” permite uma expiação do passado, como se a ficção fosse a solução para remendar a realidade (não é esse um dos papéis do cinema?) – que importa se é imaginado ou não, desde que seja sincero?