É uma das boas surpresas do cinema português deste ano que acaba de começar. 28½ (2020) é só a segunda longa-metragem de Adriano Mendes, depois do sucesso de O Primeiro Verão (2014), mas revela já uma mestria no domínio da linguagem cinematográfica que poderá surpreender mesmo aqueles que se deixaram seduzir pelo boy meets girl que este realizador, nascido na Sertã, realizou com a ajuda de amigos e família no distante ano de 2014. A ante-estreia na Cinemateca Portuguesa de 28½ confirmou a capacidade que esta intensa experiência tem de gerar espanto e, em certa medida, representar um desafio para os espectadores. O realizador admite gostar de renovar as regras desse contrato/jogo com o espectador, fazendo filmes que são da ordem da experiência e do puramente cinemático – um filme, a nosso ver, a ser visto e vivido na sala escura.
Foi na esplanada do café da Cinemateca que me reuni com o Adriano Mendes, convocando ainda o camarada Pedro Florêncio, amigo do Adriano desde os tempos do Conservatório, autor da Folha de Sala para a sessão de ante-estreia da Cinemateca e, mais importante ainda, avatar invisível do realizador (e do seu projecto de cinema) neste 28½, e ainda, importa sublinhar, um realizador próximo do cinema fabricado, com notável amor à arte, com precisão e liberdade, pela “família Mendes”.
Luís Mendonça (LM) – Quando entraste no Conservatório já estavas convencido de que querias ser realizador?
Adriano Mendes (AM) – Sim, desde os 8 anos. Antes disso, não sabia bem o que era o mundo das artes, mas queria qualquer coisa relacionada com Artes. Aos 8 anos, houve uma espécie de um “click”, uma espécie de epifania: “Espera aí, há aqui este espaço que agrega todas as coisas que me interessam nas artes.” Logo aí, fui fazendo algumas experiências. Aos 13 anos, um pouco mais a sério.
LM – Envolvendo quem?
AM – Amigos, família… Na Sertã, não havia [o agrupamento de] Artes. Se eu quisesse ir para Artes, tinha de ir para Coimbra e eu preferi manter-me com os meus amigos e fazer Ciências, mas já a saber o queria. Desde os 13, fui fazendo filmes, quase em paralelo, um pouco a borrifar-me para a escola, que fazia “nos mínimos”. Sempre que podia, nos trabalhos da escola, tentava fazer filmes, o que impactava os professores.
No início, era o cinema de imagem real que me interessava, mas havia a dificuldade de conseguir que os meus amigos participassem, pelo menos com a seriedade que já tinha – era uma coisa séria para mim [risos]. O meu pai [Rui Mendes] sugeriu-me: “Porque é que não fazes animação com volumes, com plasticina? Aí podes fazer à vontade, estás o tempo que quiseres e fazes o que quiseres.”
Durante uns anos, achei que a animação stop motion, como se diz em inglês, era o que me interessava. Depois, a partir dos 16 ou 17, voltou outra vez a vontade de fazer imagem real. Percebi que, se calhar, isso podia não ser um impedimento. E havia também uma certa reclusão na animação… É um processo muito moroso e, às vezes, estava fechado no meu quarto dias seguidos, não via a luz do dia, porque fechava tudo. Não me sentia “um bicho” capaz de estar fechado. O cinema de imagem real permitia contactar com as pessoas.
LM – Assim sendo, posso dizer que descobriste o teu amor pelo cinema “fazendo”?
AM – Sim, até porque, na altura, em miúdo, havia um ou outro filme de que gostava. Mas, na Sertã, não havia cinema, na época estava fechado. Para mim, o cinema eram aqueles filmes que passavam na televisão. Imagina: um miúdo de 8 anos a ver aqueles filmes de sábado à tarde, uns romances (um rapaz e uma rapariga…), com os quais não te identificas propriamente. A animação era mais cativante, nesse sentido. O amor pelo cinema foi crescendo, em paralelo com esse “fazer”.
LM – E mostravas esses filmes a quem: familiares, amigos, e até professores, se percebi?
AM – Sim, mas enviámos algumas animações para festivais: o Cinanima, o Ovarvídeo… Ainda ganhei uns prémios. Houve um filme, que eu fiz para o meu tio no aniversário (foi mesmo feito para ele), chamado Parabéns Tio (2003) e ganhou um prémio de bronze num festival [Cotswold International Film Festival, Reino Unido]. É curioso eles terem conseguido ver alguma coisa ali, até porque tinha um lado rudimentar: a animação com volumes, normalmente, faz-se a 2 frames – só em casos especiais, movimentos rápidos, pestanejares ou coisas assim é que se faz a 1 frame – e eu na altura fazia a 4 frames, para agilizar o processo.
LM – Quando entras no Conservatório, na Escola Superior de Teatro e Cinema, houve espaço para algum “click” mais?
AM – Fui para a Escola com a ideia de que iria encontrar as pessoas com quem iria trabalhar no futuro. No caso, sobreviveram dois Pedros: o Souto [produtor associado de 28½] e o Florêncio, com quem fizemos a maior parte dos filmes. De resto, a Escola foi um pouco… Claro que ouvi falar de realizadores que nunca tinha ouvido falar – por exemplo, acho que nunca tinha ouvido falar do Cassavetes. Levámos o banho de alguns nomes, de alguns filmes ou clipes de filmes. Foi um pouco amarga a experiência, no entanto. Acho que me desiludi, sobretudo com as pessoas. Havia uma competição ali…
LM – Entre colegas?
Pedro Florêncio (PF) – Mas também estimulada pelos professores, não directamente mas estruturalmente. Estava a ouvir há bocado uma coisa e a pensar nesta: a coisa da seriedade, que em miúdo afastava as pessoas… se calhar não reflectiste sobre isso.
AM – Mas entretanto reflecti sobre isso: sim, foi igual!
PF – Criou-se uma animosidade muito grande entre os colegas da turma e o Adriano, sobretudo deles para com o Adriano, quando ele meteu as mãos na massa em projectos principais. Quando se percebeu que ele ia realizar este ou aquele projecto, eles reagiram mal a esse lado comprometido, como quem está a fazer cinema “a sério”. É seriedade nos dois sentidos do termo: na atitude e no compromisso com a ideia de cinema.
LM – Eles confundiam essa seriedade com autoritarismo?
PF – Completamente, era esse o termo que usavam. Depois, claro, havia um gozo muito juvenil quando as coisas corriam mal: era o “karma” contra o realizador. Havia poucos a perceberem que era um exercício que puxava as coisas para cima.
AM – Eu acho que sim. Na altura, não via como um exercício, era mesmo um filme que eu levava a sério: “Temos de fazer isto da melhor forma.”
PF – Eu e o Souto brincávamos sempre. Sabíamos distanciar-nos como se fosse uma personagem…
LM – Em relação a ti e ao Pedro Souto, actual co-director do MOTELx, não era bem o vosso universo, à época, não é? Não havia um certo choque ou contraste, digamos assim, entre os vossos universos? Não sei se na altura já estava vincada a vossa conhecida ligação ao terror [Pedro Florêncio é co-realizador de Banana Motherfucker (2011) e assinou a montagem dessa paródia gore chamada Papá Wrestling (2009)], mas decerto contrastaria com o mundo do Adriano, que não era decididamente o terror, não é?
AM – Lembro-me de, no Fronteira (2010), o Souto ter sugerido que as paredes, ao longo do filme, ganhassem musgo… O musgo ia aumentando [risos]. Este género de ideias. O Pedro Souto tentava sempre meter essas coisas.
LM – Eram interferências do seu universo, não é? E tu, quando estavas no Conservatório, já sabias o que querias fazer?
AM – A parte do argumento era sempre um bocado difícil. Andávamos ali com ideias para trás e para a frente… Ou porque surgiam ideias – como a do musgo – que seriam difíceis de concretizar, ou outras de outro tipo, que seriam logisticamente complicadas, mas também porque estávamos à procura, narrativamente, daquilo que nos interessava.
PF – Muitas vezes, no Conservatório, quando se dava liberdade para ter ideias, caía-se sempre nos mesmos lugares-comuns e problemas. Em termos de processo, isso implicava, semana após semana, quase destruir tudo o que, entretanto, se decidiu fazer, porque, numa cadeira, quem estava em realização mudava de ideias e, depois, vinha com essa notícia para os outros, que é terrível, ou vice-versa…
É interessante porque eu fui para argumento e fui vendo, paralelamente, o percurso do Adriano. Senti que ele se soltou muito mais nos exercícios em que não havia uma pressão tão grande sobre essa questão da ideia do argumento; eram exercícios mais relacionados com o olhar e o posicionamento da câmara, com o Vítor Gonçalves, por exemplo. Começou-se, depois, a perceber que havia algo de artesanal na maneira de ele fazer: quanto mais sozinho e alheado destes problemas estivesse, mais ao encontro de qualquer coisa palpável e comunicante ia. Fui vendo isso.
LM – Tendo em conta que, desde cedo, já sabias fazer, tendo essa “agenda”, conduzindo tudo para o objectivo de fazer cinema, não sentias que podias estar uns passos à frente em relação aos teus colegas, que provavelmente ainda estavam atrasados nessa definição e tu tinhas esse domínio e modus operandi que eles não tinham?
AM – No primeiro ano, estranhei que algumas pessoas nunca tivessem experimentado filmar nada. Lembro-me que o André Martins e a Inês Pott, entre outros, já tinham experimentado. Pontualmente, algumas pessoas tinham filmado coisas em casa. Mas mais de 50% da minha turma nunca tinha filmado nada. Alguns queriam ir para realização, outros para som e imagem. Mas isso não seria impedimento. Quando as pessoas participavam nos projectos em que estava a realizar, e elas tinham outras funções, achei estranho não se empenharem como eu acharia que se iam empenhar. Esse lado do amor à ideia – e eu tenho trabalhado sobretudo com amigos ou pessoas de quem estou próximo – isso ajuda a que o objecto chegue a um lugar que me interessa. Ter mais uma pessoa que ajuda a puxar cabos ou outras coisas, mas que está ali contra-vontade, faz com que essa energia se comece a sentir.
LM – Começas desde cedo a criar essa “família”. Pessoas que entendem a tua maneira de trabalhar e embarcam no teu sonho de fazer cinema. Depois do Conservatório, “atiras-te” logo para o projecto de uma longa, O Primeiro Verão (2014).
AM – Nesse Verão, em que terminei o Curso, voltei para a Sertã para reflectir sobre tudo o que se tinha passado e esquecer essas regras que fomos aprendendo na Escola, que era um bocado à la anos 90 da produção do cinema: os dossiers com a planificação, cronogramas e coisas assim… Essa parte burocrática parecia ser mais importante na escola do que estares com as pessoas…
Nesse Verão, peguei nas notas que fui apontando durante os três anos da Escola. Depois, surgiu a linha base do que seria o filme: o início, o meio e o fim. Começámos a filmar a partir do fim – começámos ao contrário. Só depois, quando começou a ficar bom tempo, é que arrancamos para as cenas do início da história. A 10% ou 20% da filmagem, já tínhamos a sequência final. Portanto, eu sabia para onde estava a conduzir o filme. Foi uma liberdade imensa.
O meu pai tinha algumas reticências: sugeriu que fizéssemos uma curta, nos candidatássemos ao ICA… Essa parte de nos candidatarmos ao ICA assustava-me imenso – e ainda me assusta. Porque fazia um paralelo com a Escola Superior de Teatro e Cinema. Quis começar com o que tínhamos.
Depois, há a parte do dinheiro, que é importante. Não ter dinheiro para fazer um filme, mesmo com pessoas que não levam dinheiro… A quantidade de gastos que se vai acumulando, seja de gasolina, seja de electricidade, seja de discos externos para fazer backup, viagens e roupas… E também o tempo que usamos para criar o filme, que não nos permite estar a trabalhar em algo financeiramente rentável. Na altura, foi fazível, o meu pai foi acreditando no projecto e fomos desenvolvendo o filme por aí, passo a passo, tentando que isso não fosse um travão à liberdade que procurava. Por exemplo, ter o apoio de uma marca podia obrigar-nos a fazer uma cena em que aparecesse essa marca. Há sempre um compromisso. Pelo contrário, tive mesmo liberdade para fazer o que queria fazer: ia vendo os brutos, ia montando e, à medida que montava, ia percebendo se funcionava ou não, ia refilmando ou não determinada cena…
LM – Lembro-me da passagem do teu filme no IndieLisboa, onde foi duplamente agraciado, mas onde fundamentalmente ganhou um destaque grande. O que me surpreendeu foi a sua linguagem escorreita e adulta, transformando um boy meets girl numa crónica sentimental de intensidade crescente, sem nunca melodramatizar, de pés assentes no chão, digamos assim. E onde havia esse espaço de liberdade para ti e para a Anabela Caetano, tua companheira, se descobrirem. Este “espaço de liberdade” foi efectivamente assim ou, pelo contrário, o filme é mais fabricado ou planificado do que aparenta?
AM – A questão do quão fabricado foi pode não estar directamente relacionado com a liberdade. Tu podes ter muita liberdade e ser tudo muito planeado, muito aprimorado, com muito tempo. No caso do Primeiro Verão, eu pude experimentar diferentes formas de abordar: havia cenas em que, para a cena funcionar, tinha de ser muito ensaiada, repetida, em vários dias, mas houve outras em que conseguimos fazer de forma mais espontânea. O filme foi construído assim: há partes muito pensadas e trabalhadas e há outras que são ideias que surgem naquele dia.
LM – Por um lado, é um filme que tem essa espontaneidade – parece que o filme se vai construindo à nossa frente e à medida que as personagens se vão conhecendo. Por outro lado, quando o filme acaba e reflectimos sobre o seu conjunto, fico com a convicção de que é um filme resultante de uma grande reflexão e de que há uma organização muito racional a envolver a sua produção. Ele não podia vir do nada, como primeiro filme que é. Surpreendeu-te a reacção ao filme e houve alguma reacção que registaste?
AM – Fazes-me essa pergunta e lembro-me logo de uma reacção, que foi na estreia no IndieLisboa, no Cinema São Jorge. Uma pessoa veio ter comigo a dizer que tinha adorado uma cena à noite, no acampamento. Era a sua cena preferida. E depois veio ter comigo outra pessoa a dizer que tinha gostado muito do filme excepto essa cena. [Risos] Aí percebi que tenho mesmo de olhar para aquilo que quero fazer, auscultar-me a mim próprio, porque há uma impossibilidade…
LM – De fazer filmes para um público qualquer… Quem é esse público também, não é?
AM – Sim, sim.
LM – Tens falado do teu pai e ele é, de facto, uma espécie de pivô nesta conversa, na qualidade de produtor não só teu, Adriano, como teu, Pedro. Neste teu caso, já não da tua fase do terror, do splatter.
AM – O meu pai entrou para dar um suporte mais logístico/burocrático, porque os filmes são do Pedro.
LM – O Pedro tem cameos nos teus dois filmes, não é?
AM – Aparece, aparece.
PF – A colaboração que tive foi uma coisa muito coloquial; é uma amizade que continua depois da Escola. Cheguei a ser creditado como motorista ou driver. Desdobro-me em várias coisas com que normalmente os amigos ajudam: boleias, feedback, visionamentos privilegiados.
Esse apoio da Zêzere [produtora de Rui Mendes] partiu muito de eu ter intuído que havia um lado familiar na forma do Rui, o pai do Adriano, de lidar com os projectos, que é uma coisa que me agrada. Tenho outros amigos, que são produtores, e me aliciam bastante para irmos a candidaturas e isso. Mas há se calhar um trauma burocrático: sinto que há uma intimidade, que é muito respeitada, quando trabalho com o pai do Adriano, no que respeita ao diálogo sobre o que fazer. Fui-me apercebendo aos poucos que era um valor importante haver esse espaço íntimo que não desaparece na relação com o objecto. Nesse sentido, o Rui nunca foi um produtor, mas um amigo, que, por alguma razão, aceitou tomar conta de algumas coisas. Isso é mais importante do que a eficácia de saber meter os filmes em certos sítios ou saber desbloquear certas coisas. Eu acho que isso vem da Escola de Cinema; de o conhecer melhor na produção do Verão 77 (2011) ou, antes, no Inferno (2009)… Eu via e pressentia isso: no Verão 77 vivi mais isso e no Primeiro Verão relacionei-me com isso. Ao irmos à Sertã – já não sei quantas vezes -, comigo a conduzir até lá, o facto de ficar na casa do Adriano e ficar lá, de ser uma produção caseira no sentido absoluto do termo – isso fez-me sentir que era um convite que fazia sentido fazer.
AM – O meu pai tem muito orgulho de não fazer só estes filmes comigo e de ter feito estes filmes contigo [À Tarde (2017) e Turno do Dia (2018)].
LM – Esta família que te rodeia, que embarca no teu sonho, encontraste-a logo nesta tua primeira longa?
AM – Sim, sim. No caso do meu pai e da minha mãe – mais do meu pai, em particular – sempre me apoiaram muito desde que eu era miúdo, em tudo o que era preciso. Na Escola Superior de Teatro e Cinema, o meu pai estava em backup: “Preciso de um fato, arranja-me” e ele encomendava.
PF – Os projectos da Escola de Cinema sempre se destacaram nos valores de produção. Também por causa das ideias dele, que pareciam coisas que tinham vontade de colocar problemas às condições que havia. Houve um projecto em que conseguimos convencer o Carlos Sequeira, que era responsável pelo estúdio, a mudarmos a parede toda… Aquilo foi trágico. Porque ninguém gostava daquilo: era um pano verde, era o mais próximo do musgo do Souto [risos]. Ele, não sei como, adorava aquilo.
AM – Sim, dizia que estava farto das paredes brancas e, portanto, aquele verde escuro estava óptimo.
PF – Foram duas semanas e tal, dedicadas intensamente a mudar a parede toda, a agrafar o pano. Isto só para dar um exemplo de como muita coisa se mexe e a família vai de arrasto, com as ideias do Adriano.
LM – Era, para ti, indiscutível a reedição desta colaboração familiar neste teu mais recente filme, o 28½, nomeadamente com a Anabela Caetano [também protagonista de O Primeiro Verão]?
AM – No caso da Anabela, não era para ter sido ela a protagonista. A ideia inicial era ser o Pedro, mas por várias razões… O Pedro estava, na altura, a fazer o doutoramento e estava muito ocupado.
A primeira coisa que filmámos foi a cena do comboio. Logisticamente, foi muito difícil: estivemos um ano, ou mais, a tentar filmar no comboio. Quando finalmente consegui essa autorização, e data para filmar, não tínhamos protagonista. Faltava um mês ou dois e não tínhamos protagonista. Pensamos em várias soluções e, quase como quem me socorre, a Anabela disse: “Se quiseres, eu faço…” E nesse momento deu-se um “click” na minha cabeça e tudo fez sentido.
LM – Passou-te pelo espírito encontrares um actor profissional, que estivesse fora desse teu núcleo?
AM – Sim, sim. Nós andámos à procura. Fizémos ensaios com o Pedro…
PF – Houve quase uma passagem de testemunho. Começou comigo, depois percebeu-se que não tinha a disponibilidade certa para o filme e, então, eu ia acompanhando os novos candidatos.
LM – Era um casting.
AM – Não no sentido tradicional, porque não era aberto. Pensámos “é aquela pessoa”.
LM – Eram pessoas que vos eram próximas?
AM – Sim e não. O João Sirgado, um amigo, experimentou o lugar de protagonista, e acabou por ser essencial como assistente de realização e perchista no filme.
PF – Via-se que ele queria participar.
AM – Queria participar, fosse como fosse. Depois, a Anabela acabou por se oferecer para o papel de protagonista. Estávamos um pouco desesperados porque faltavam menos de dois meses. E, naquele momento, olhei para tudo de outra forma. A história também se foi desenvolvendo com os castings, fui experimentando ideias e muita coisa se foi alterando.
LM – Ela participava nesses castings?
AM – Ela participava, porque ia fazer a personagem de namorada do protagonista. Quando ela disse isso, que podia ser a protagonista, naquele dia… eu repensei o filme todo e fez mais sentido assim. Era como se não estivesse a ver uma coisa que estava à minha frente. E que era óbvia.
LM – Pedro, em certa medida o primeiro “molde” do filme não é teu, porque és tu. Como é que tu vês, depois, este resultado? Imaginaste-o seguramente e conversaram muito sobre o filme. Tu escreveste agora sobre o 28½ para a Folha de Sala da Cinemateca [onde o filme ante-estreou, no dia 9 de Setembro de 2021].
PF – Foi espectacular. Quando escrevi a Folha, hesitei em falar sobre isso. Cheguei a começar por aí e, depois, decidi mudar. Achei que seria mais pedagógico fazer uma análise mais distanciada. A ideia do Adriano surgiu de fragmentos e alguns deles vinham de conversas que tínhamos. Como em tudo, no processo de pesquisa do Adriano, isso envolveu ir compondo, à volta desses fragmentos, outros que fossem coerentes, o que significava ir ponderando incluir outras coisas da minha vida no filme, nem que fosse por experimentação. Então, houve muitas cenas que chegámos a ensaiar ou que percebi interessarem ao Adriano, das quais me esqueci completamente, porque passaram muitos anos desde que abandonei o processo de filmagem. Quando de repente vejo o filme, são exactamente as mesmas cenas que tínhamos trabalhado ou que o Adriano tinha em mente – foi uma muito oblíqua viagem no tempo à minha vida.
LM – Uma “projecção-identificação” à la Morin elevada à última potência! [Risos]
PF – Algumas cenas são baseadas na minha vida. Não são exclusivas da minha vida, mas sei de onde vêm. Nesse sentido, a palavra é: foi bizarro. Uma espécie de universo paralelo. Já tive de ver o filme para aí umas três vezes para me conseguir também distanciar de algumas coisas. O primeiro visionamento foi visceral, com essa “projecção-identificação”. O segundo já foi mais centrado na construção do filme. Mas fiquei bastante impressionado – e isso traz-nos de novo ao Primeiro Verão – com a “organização racional”, que referias, que parecia já estar pré-planeada muito à minha frente, na altura. Quando vi o filme composto, acabado, foi uma espécie de: “Ah, então era este o caminho que ele estava a esconder de mim.” Mas eu conheço o Adriano: não me estava a esconder esse caminho, estava a apalpá-lo. Mas quando vejo o filme acabado parece que já sabia perfeitamente por onde é que queria que o filme fosse. Como no Primeiro Verão, é um caminho que se vai compondo.
AM – São muitos anos. O Primeiro Verão foi filmado no espaço de um ano e meio, o 28½ foi filmado num ano e nove meses. Tens um ano e nove meses da primeira cena até à última. Vais repensando, vais mudando e reescrevendo.
LM – A estrutura bipartida da narrativa, em dois grandes blocos, estava presente quando vocês falaram ou foi também surgindo? Por exemplo, disseste que repensaste em tudo quando a Anabela surgiu como protagonista, isso também “tocou” na estrutura do filme?
AM – Não tocou muito na estrutura, tocou mais num lado mais ligado à sensibilidade. Portanto, o filme mudou um pouco de tom. Com o Pedro ou outro actor, teria sido um filme diferente, mas talvez a estrutura fosse parecida.
PF – Nós ensaiámos muitas vezes a cena do comboio com os miúdos na sala de espectáculos do GTIST (Grupo de Teatro do Instituto Superior Técnico) – foi o mais próximo de uma experiência de actor profissional que tive. Mudávamos constantemente de lugares, fazíamos esse jogo: “Agora vais ser tu o assaltante.” Às vezes, eu era a pessoa do comboio, que ia testemunhar, decidindo se intervinha ou não, ou era o abordado ou era o agressor. E foram vários miúdos e uns levavam-nos a descobrir outros. Por exemplo, a Arlete [Candô], a rapariga que vai com a protagonista, apareceu num teatro que fomos ver por causa de outros miúdos que estavam no processo. E, de repente, era uma força imensa no palco.
A Anabela também lá estava e até tinha um lado de directora de actores. Tendo a experiência do teatro, coordenava as sessões, com exercícios de aquecimento e isso.
AM – Nós chamávamos outras pessoas para fazerem aquecimentos e exercícios de confiança. Sabíamos que tínhamos pouco tempo para filmar: a cena [do comboio] tinha de estar o mais bem preparada possível.
LM – O Pedro escreve, na Folha de Sala, que o 28½ poderá ser visto como uma sequela de O Primeiro Verão. Em que medida é que – ainda para mais repetindo a actriz principal – podemos ver este teu filme como uma sequela do anterior?
AM – Eu não o vejo como uma sequela. Portanto, para mim, são objectos diferentes. Mas claro que vejo as pontes. Ainda ontem me disseram isso: “Ouvi dizer que é uma sequela directa do Primeiro Verão.” Eu não controlo tudo: se alguém quiser ler assim… Para mim, são personagens bastante diferentes, têm idades e estados de alma diferentes. As pessoas poderiam olhar para a personagem Isabel, no Primeiro Verão, e acharem que a Teresa, do 28½, é a Isabel quando for mais velha. Como o realizador é o mesmo, há uma forma de olhar, uma forma de filmar, algumas temáticas ou elementos que acabam por transparecer e fazer essa ponte… Mas o Pedro pode falar melhor dessas pontes que viu.
PF – Tem a ver com as temáticas. São coisas que nos vão acompanhando à medida que crescemos. Tu és sensível a esse mundo da vida como fonte de possibilidades dramáticas. Coisas que te interessavam no meu carácter tinham que ver com as minhas circunstâncias: o facto de estar a fazer o meu doutoramento na altura e, ao mesmo tempo, estar a praticar aquele desporto, Muay Thai, que ela está a fazer. Aquela situação do jantar é baseada numa experiência muito específica que eu tive com amigos e a minha companheira. E relatava estas coisas entre amigos. O Adriano estava a ouvir com “um olho no burro e outro no cigano”. A ouvir o amigo e a pensar: “Que óptimo motivo dramático para um filme.” São coisas próprias da nossa idade, da nossa experiência da cidade e da mudança da cidade, e do mundo à nossa volta, através desse olhar geracional. Não é uma coisa tanto à la Antoine Doinel, de ir acompanhando um corpo que cresce de filme para filme; é mais ir havendo uma espécie de vidência através do nosso corpo ao longo do tempo.
Se fizeres um filme daqui a dez anos, com a Anabela outra vez, também dando-lhe outro nome, é natural que haja uma continuidade no percurso, porque te vão continuar a interessar as coisas que a rodeiam. Não é exclusivo da minha vida, porque há ali coisas que eu também consigo relacionar com a sensibilidade que a Anabela tem para relatar as coisas da vida dela, que também estão ali.
LM – Quando vi o filme, confesso que fui atraído mais pelas diferenças. Pareceu-me que O Primeiro Verão é mais um filme feito com o coração e o teu novo filme, 28½, uma obra desenhada com o cérebro, comandada por um jogo, por uma espécie de negociação inteligente que estabelece com o espectador. Por exemplo, há uma ousadia grande na duração do “segundo bloco”, ocupado pela cena do jantar. Sem levantares muito o véu, porque achei muito surpreendente, gostava que falasses um pouco sobre este bloco, em que o clímax é quase um anti-clímax.
AM – A cena do jantar surge também daquela questão que falei há pouco sobre O Primeiro Verão e a impossibilidade de agradar; surge nesse rompimento. “Ai é? Então, vou lançar-me assim.” Surge de uma liberdade que talvez seja ainda maior aqui. O Primeiro Verão nasceu muito mais de um lado emocional e pessoal – do coração, como dizes. Agora não: foi muito mais uma composição que veio a partir da experiência de mais pessoas logo à partida, como o Pedro, a Anabela e eu. No Primeiro Verão, estava a fazer o primeiro filme, a relacionar-me pela primeira vez com a vontade de deixar os personagens existir ao longo do tempo. No 28½ estava ainda mais liberto desse aspecto temporal.
LM – A história que contaste, quase antinómica, em relação à reacção ao teu primeiro é muito engraçada. Quando acabei de ver este 28½, senti uma necessidade grande de falar sobre o teu filme. Queria ouvir a pessoa que acha que “a cena do comboio é que é” e a pessoa que acha que “a cena do jantar é que é”. Queria ouvir as duas partes e queria concordar com ambas. No fundo, essa decisão muito ousada, quanto à estrutura do teu filme, resulta então de não só seres espectador do teu filme, mas do desafio de saberes ser espectador dos espectadores do teu filme.
AM – Acho que sim. Mas também estou sempre a fazer o filme para mim e talvez este ainda tenha feito mais para mim. Fiquei muito surpreendido no IndieLisboa, porque as pessoas estavam ao rubro na cena do jantar. No final, diziam que adoravam o jantar e só queriam intervir. Quando passou na Cinemateca, também.
LM – Eu achei muito surpreendente. Normalmente, temos uma grande celebração ao início e depois “rebenta” a acção ou o melodrama – caso das festas de casamento no The Deer Hunter (O Caçador, 1978) do Cimino ou no The Godfather (O Padrinho, 1972) do Coppola. Ora, no caso do teu filme, há um twist, invertendo a relação tradicional dos acontecimentos.
O Pedro escreveu ainda, na Folha de Sala: “Dito de outro modo, o cinema que nestes filmes está em causa é da ordem de uma ‘atenção ardente’ que, citando Herberto Helder em Cinemas, ‘suscita modos esferográficos de fazer e celebrar’ a vida.”
PF – Fui buscar essa passagem ao Herberto Helder há alguns anos. Numa aula de História do Cinema, sobre cinema português, decidi convidar o Adriano e mostrei um excerto de O Primeiro Verão. O meu objectivo final era relacionar cinema português com poesia portuguesa. Descobri esse texto do Herberto Helder, que me pareceu “na mouche”. O que queria defender nessa aula é que o cinema do Adriano é um cinema da vida, próximo da vida, e que, por outro lado, suscita “modos esferográficos de escrever e celebrar”, no sentido de se ter que dizer, através da escrita, ou através da conversa sobre o filme, aquilo que no filme é da ordem do indizível, que é da ordem do sensível e não inteligível.
Acho que isto atinge um ponto culminante na cena do jantar, no 28½. Estava a ver aquilo e havia algo além do bizarro efeito de espelho, por ter participado noutros jantares muito próximos deste modelo, que o Adriano não explica no filme [trata-se do serviço, normalmente destinado a turistas, BookaLokal]. Aliás, isso causa um sentimento de estranheza que é extensível a qualquer espectador, que é: “Mas qual é que é o contrato entre estas e aquelas pessoas?” Não se ganha nada em explicar ou em descobrir o que é. É entrar no jogo, apalpando, para ver quais são as regras.
AM – A personagem entra a meio e o espectador não teve oportunidade de perceber.
PF – Apesar de não ser nada esquemático – o jantar foi surgindo durante o processo -, sinto que há ali um grande efeito de retrospectiva. Senti mais no segundo visionamento do filme, porque já tinha o quadro geral na cabeça: há uma operação de montagem que podemos fazer constantemente entre os imensos assuntos que surgem e as imensas coisas que aconteceram para trás no filme, imensas coisas que têm que ver com a nossa vida, sobretudo pessoas próximas da nossa geração. A quantidade de relações que podemos estabelecer é generosa. E isso está muito próximo daquilo que acontece na vida: é uma conversa entediante, mas está lá tudo. O corolário disso é a ferida que se lança no final: “Então e a questão do bebé?” Que é da ordem do “Eh pá, não fales disso”.
LM – Falava há bocado de descontinuidades na relação entre os dois filmes. Uma delas partiu da minha reacção mais, digamos assim, epidérmica a estas duas obras. A minha atenção “ardeu” a intensidades muito diferentes, apesar de ter de facto “ardido” nas duas experiências. Só que nesta segunda foi ao contrário, na ordem, e atingiu picos inéditos, por comparação.
Tu apagas o fogo do que arde na nossa relação intensa com a primeira metade, sobretudo perto do seu final, mas não é por isso que o fogo não invade a segunda metade. Digamos que é “fogo que arde sem se ver”.
A palavra certa talvez seja “energia”: há uma energia fílmica, um resíduo qualquer, que me parece gerido com grande mestria na passagem para a segunda parte, tornando-a uma coisa radicalmente diferente por aparecer “na sequência de…” – como também escreveu o Pedro, é qualquer coisa da ordem da montagem das atracções eisensteiniana. Tudo isto fez parte desse trabalho de filigrana, na montagem?
AM – Havia ali quase uma performance da parte dela, de ter de chegar a casa e “Ok, agora estou neste papel”. Interessava-me este jogo da personagem, tomando os diferentes papéis, começando pela entrevista de emprego… Os papéis que vamos tomando… No caso da chegada ao jantar, ela tem de engolir tudo o que esteve a viver até então para estar ali disposta a conviver. A minha esperança era que se mantivesse um resíduo, que o espectador não apagasse tudo o que aconteceu até então, isto sem ser demasiado evidente. Estou muitas vezes a tentar trabalhar essas subtilezas.
LM – O Pedro falava da conversa ao longo do jantar e da eventual ressonância dos assuntos numa geração. Podemos dizer que 28½ é um thriller da situação, com um certo intuito de fazer o retrato de uma época, das dificuldades que afligem toda uma geração de jovens adultos? Eu já consigo ver “este país” a uma certa distância: é uma maneira de viver a cidade, o país e projectar a vida…
PF – É uma realidade que já é arqueológica, “pré-pandemia”. Há muitos assuntos ali que eram assuntos de todos os nossos jantares – a questão sobretudo da habitação e dos “novos biscates”.
LM – Os investigadores bolseiros, sem perspectiva, a apalpar terreno… mas já em idade de ter filhos. [Risos]
PF – A velha questão, claro. E uma coisa que me interessou muito, que tem que ver com a multiplicidade do que uma pessoa pode ser, hoje em dia: de manhã à noite, é imensas coisas diferentes, desde o treino, à entrevista de emprego, ao babysitting, etc. E depois põe outra máscara, no final do dia, para o jantar.
AM – Ela vende uma estante, para ter dinheiro, faz babysitting. Apesar de aparentemente não parecer que haja na casa deles algum problema drástico, isso está latente: o namorado também diz que dá explicações em part-time.
O cinema é como uma cápsula que prende qualquer coisa que estamos a filmar naquele momento. Há sempre uma relação com o actual. Mesmo num filme de época (não interessa se a acção foi há cem anos ou duzentos), há sempre uma relação, um compromisso relacionado com isso. Na altura, havia questões que me inquietavam e me interessavam. Quando pensei no filme, pensei em retrospectiva, que é o que normalmente faço. Aconteceu o filme estrear durante a pandemia e isto já não ser uma realidade. Para mim, não é um problema, porque não pensei no filme assim. Vai muito para lá da relação de espelho directo da actualidade.
LM – Falando em referências fílmicas, confesso que pensei muito no cinema romeno quando vi este teu 28½, sobretudo Cristian Mungiu e Cristi Puiu. Acima de tudo, a cena à mesa após o aborto em 4 luni, 3 saptamâni si 2 zile (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, 2007).
Ao mesmo tempo, há, de facto, uma carga energética, de adrenalina, na cena do comboio e imediatamente a seguir, naquele flirt/assédio na rua, que me fez pensar noutros realizadores, talvez mais da escola americana: de Martin Scorsese aos irmãos Safdie, digamos assim. Gostas de cozinhar este tipo de referências ou, pelo contrário, preferes cingir-te ao material que tens, e “imunizares-te” contra o cinema dos outros?
AM – Sim, nestes dois filmes foi muito mais uma escuta interna. Não há nenhuma referência que eu tenha consciente, que de alguma forma tenha transportado para estes filmes.
LM – Na cena do comboio, não buscaste nenhuma referência do cinema americano de acção?
AM – Não pensei em cinema americano ou em fazer assim ou assado. É um cinema de auscultação… Por mais que possa ser vibrante, foi uma cena tratada como as outras. Claro que teve esse lado dos ensaios, porque tínhamos pouco tempo para filmar. Mas foi tratada como as outras cenas. Dramaticamente, pode parecer mais próximo do cinema americano, talvez por ter um acontecimento dramático que reconhecemos. É um dispositivo narrativo mais clássico, que dá a sensação de crescente tensão.
LM – Há alguma cena ou algum momento neste filme que nos possa dar pistas sobre o que vai ser o teu próximo filme?
AM – Não sei… Penso-o como um objecto muito distinto, tal como pensei este. Teria de estar umas horas a pensar para dar uma resposta. É tudo muito pensado, mas não é estratégico.
LM – Não estás assombrado pela ideia de obra ou de universo autoral?
AM – As ideias vão surgindo e eu também vou mudando aos poucos. Avanço com aquilo que me interessa a cada filme.
LM – O teu método também muda? Queres experimentar?
AM – Continuo a experimentar, a romper. Essa subida na questão da liberdade é o que me interessa muito.
LM – Nesse sentido, tens mais ouvidos para o espectador que disser que gostou mais da cena do jantar do que a do comboio?
AM – É mais fácil gostar da cena do comboio. Fico muito contente quando as pessoas dizem que gostaram muito do jantar. Tal como aquela pessoa que disse que a cena preferida era a cena deles no acampamento, que é uma das cenas mais duras e difíceis do filme, é um sinal de que está conectada com o objecto, como um todo. A cena do jantar, se foi a cena de que mais gostou, então poderá ser sinal de que está mais conectada com as minhas intenções.
PF – Voltando a uma conversa que tivemos há bocado, talvez vendo o filme em casa se sinta um espelhamento na cena do jantar. Mas a cena do comboio é mais de televisão, ao passo que a cena do jantar é para espectadores de cinema. Por causa da questão relacional.
LM – E a irrequietude do “dedo no comando”: a cena do jantar, com a conversa, quase que apetece… zapping!
AM – Sim! Há ali dois ou três momentos do jantar que podem criar essa sensação: “Aguento, não aguento?” Se passares isso, depois depois o resto escorrega melhor.
LM – É uma provação.
AM – É uma provação. E é também uma questão de expectativa. Das expectativas narrativas, das expectativas sobre o que é um filme…
LM – Depois sai daí um novo espectador. Procuras testar o espectador, para que este ultrapasse obstáculos e saia do teu cinema diferente e…
PF – Reformado.
LM – Isso: reformado.
PF – Deixa-me só concluir. A expectativa sobre o que este gajo vai fazer a seguir… parece que não saímos da Escola de Cinema [risos]. Era a mesma coisa de semestre para semestre: “O que é que vem aí do Adriano?” Num misto de animosidade – “Lá vai o tirano…” – e extrema curiosidade, sabendo que aquilo ia revitalizar a maneira de fazer. Isso sentia-se imenso.