A voz que profere a inolvidável síntese de Les statues meurent aussi (1953) voltará para nos falar do futuro. Não sobre o futuro; a partir do futuro. “Quand les hommes sont morts, ils entrent dans l’histoire. Quand les statues sont mortes, elles entrent dans l’art”. Quase dez anos depois do filme a quatro mãos de Chris Marker e Alain Resnais, em La Jetée (1962), Jean Negroni guiar-nos-ia novamente pelas encruzilhadas do Tempo e da Memória. Os mesmos temas, ainda que de ângulos diversos (ou nem tanto assim: o risco da perda de Memória como factor de ignorância, submissão e violência), que Marker, na companhia de outro grande memorialista da história do cinema, investiga no lugar por excelência – não sem as suas complexidades e anacronismos – destinado à sua (Memória) preservação: o Museu.
E, todavia, a dupla de cineastas, num gesto de coerência, abstém-se de fazer aquilo que ele, Museu, na sua faceta clássica, pratica: classificar, rotular, etiquetar, como se de um trabalho forense se tratasse, uma autópsia (eis um paradoxo, autopsiar para vivificar); mumificar o passado, dirão os mais críticos. O filme doravante operará, pois, em sentido contrário, desde logo na recusa em identificar as datas, eras, materiais ou os nomes dos países e comunidades de onde as estátuas (bem como as imagens de arquivo, muitas delas de acontecimentos ou personalidades marcantes), estas que afinal vivem, provêm [exactamente o oposto, portanto, da análise exaustiva e obsessiva levada a cabo por Resnais na Bibilioteca Nacional de Toute la mémoire du monde (1956)].
E, contudo, o reverso desse gesto acha-se na homogeneização de diversas expressões e manifestações artísticas, populares e folclóricas, provenientes de latitudes e sensibilidades distintas, aqui reconduzidas a um amplo – et por cause redutor – denominador comum: L’art noir. O que significa, o que se deve exactamente entender por “arte negra”? Aliás, existe uma arte negra? Eis uma abstracção – um equívoco, compreensível à data e, porém, muito contemporâneo (sobretudo, e sintomaticamente, entre os moralistas autoritários do momento, sabendo-se como estes, os de ontem como os de hoje, sempre sofrem de memória curta) – que, sem retirar potência poética ao filme, subitamente o vira, não sem ironia, contra os próprios autores. Um tiro (melhor, um ricochete) no pé. A pretendida dignificação de uma subjectividade historicamente oprimida reconduzida, assim, a uma anonimização essencialista, quasi-mítica, hélas, des-subjectivizada. Desligada de qualquer consideração sobre as contingências e particularidades de cada concreto indivíduo (o mesmo tipo de raciocínio, imponderado e abusivo, que hoje preside às categorias semânticas da brigada woke, às tantas semelhante à do reumático na omnisciência e estreiteza de vistas). Sintomaticamente, quando se propõe a apresentar negros de talento e perseverança, o filme foca-se apenas em personalidades… norte-americanas (afro-americanas): a equipa de basquetebol Harlem Globetrotters, o boxeur Sugar Ray Robinson, um músico de jazz. Numa das suas obras mais marcantes, Crítica da Razão Negra, Achille Mbembe realça a importância de “questionar a ficção de unidade que [o termo ‘Negro’] comporta. Já no seu tempo, James Baldwin sugerira que o Negro não era um dado adquirido. Não obstante os elos ancestrais, quase nada testemunhava uma automática unidade entre o Negro dos Estados Unidos, o das Caraíbas e o de África” [1].
É esse descaminho da Memória – o esquecimento – que explica o dilema colocado pelo filme, a saber, a contemporaneidade de certas obras pelo gesto de interpelação que colocam ao presente e, simultaneamente, o desconhecimento, a ignorância sobre a sua origem e o seu contexto por parte de quem as observa (…)
Correspectivamente, Les statues meurent aussi propõe um sujeito plural exterior (nós, o espectador) que é, ele próprio, incerto, controvertido: quem são… “nós”? O filme pressupõe, naturalmente, o homem caucasiano europeu (outra abstracção), mas quão distinto será o olhar do ex-colonizador ocidental perante estes objectos do de um árabe (que conquistou e explorou o Norte de África desde, pelo menos, o século VIII) ou asiático que não tenha oprimido – pelo menos nos últimos 500 anos – o continente africano (e, porém, sabemos que a História do mundo, um pouco mais antiga do que o início da era colonial, se fez de um difuso processo de conquista e subjugação)? [2] Mais, quão diferente é a percepção de um concreto homem ou mulher, cada um com a sua contingência e mundividência, do Sul de Portugal da de um do Norte, e deste da de um catalão, de um turco, de um persa ou de um malaio? Sendo estas designações, em qualquer caso, abstracções irremediavelmente redutoras, funcionalmente úteis como exercício hipotético mas insuficientes na formulação de um qualquer juízo definitivo ou generalizante. O potencial de desconhecimento, estranhamento, mas também maravilhamento, nuns e noutros será muito diferente? Nem sempre a percepção de um objecto pelo ângulo do exotismo radica numa dialéctica de força e exploração, como um certo discurso contemporâneo tenta a todo o custo impor; por vezes, no simples acto de ver. E de se espantar. É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir (José Gomes Ferreira).
Em movimento contrário, veja-se a legendagem que, não sem humor, a dupla francesa capta das peças expostas neste museu: “Arte utilitária”; “Origem desconhecida”. Se a primeira destas legendas joga com a própria noção ontológica de Arte (do que ela “deve” ou não deve ser, da “utilidade” ou “função prática” que a deve “legitimar”, sobretudo à luz da desconfiada percepção popular ou não-académica) [3], a segunda interpela, jocosamente, o sentido ou necessidade da legenda enquanto ferramenta de apreensão cognitiva-intelectual, sublinhando a sua redundância e inutilidade. Ou, até, a sua vocação potencialmente imprecisa, não-rigorosa (como resulta da legenda “Máscaras de África“, reduzindo-se um vasto e complexo continente, inclusivamente do ponto de vista artístico, a uma unidade ilusória), mesmo errada, porque indutora de ignorância (o oposto da missão a que se presta, afinal, o Museu). Não é por acaso que, na sua aparência de miniatura, algo pitoresco e caricatural (as peças de “arte utilitária” dispostas sob um armário próprio de uma cozinha), este museu bem pudesse ser… falso (os agradecimentos que os cineastas fazem ao British Museum, ao Musée de l’Homme e ao então Museu do Congo Belga, hoje designado AfricaMuseum, parecem inviabilizar essa ideia, mas o que releva é que essa impressão de facto resulta das imagens). Passo em que o filme inteligentemente insinua a ideia do Museu como lugar – para utilizar um termo do dia – fake, ou, pelo menos, da museologização como putativo processo de manipulação, eventual falsificação (da História e suas vicissitudes); de produção orientada de discursos sobre a realidade (a História contada pelos vencedores, para lembrar Pierre Bourdieu) [4]. “Uma mentira que cria laços e une as pessoas também é uma verdade”, ouve-se a uma mulher senegalesa em Mandabi (O Vale Postal, 1968), de Ousmane Sembène. Ou como um dia terá dito uma das sórdidas figuras que assombram Nuit et brouillard (Noite e Neblina, 1956, Alain Resnais), uma mentira repetida mil vezes…
E, até, de “falsificação” num sentido mais estrito – no limite, quem nos garante que as obras que vemos no Museu são, enfim, “autênticas”, “originais” (sobretudo tratando-se de “arte utilitária”…)? Descontando, por ora, os escolhos subjacentes à ideia de “autenticidade”, quão fidedigna – nova provocação – pode ser uma legenda que chancela os retratos dos nossos “antepassados” quando aquilo que o visitante contempla é um conjunto de fotografias com, no máximo, 200 anos de vida (e nas quais figuram apenas indivíduos caucasianos)? [5] Aliás, serão estas peças (as tais de “arte utilitária”) de… arte (e porquê?)? E, malgré tout, esse é o discurso pairante que o espectador dá naturalmente por verdadeiro no momento em que atravessa a porta do Museu. Museu que, até há pouco tempo, não seria o mesmo consoante a peça a expor fosse ocidental, caso em que seria admirada num Louvre, ou de origem africana, o que lhe valeria bilhete directo para um museu… etnográfico (como o Musée de l’Homme filmado por Marker e Resnais). A não ser que tal peça, embora de inspiração ou similitude africana, tivesse mão europeia (Pablo Picasso e as suas máscaras). Ainda sobre legendagem, atente-se em como a música composta por Guy Bernard nunca pretende ser… legenda. Isto é, declina o propósito ilustrativo, sinalizador de adesão ou empolamento de determinada emoção ou impressão que as imagens ou a narração de Negroni em off possam produzir (exceptuando o tom esperançoso imprimido ao final do filme). Pelo contrário, a música é, durante grande parte do filme, indutora de dissonância, estranheza, mesmo ambiguidade.
… Mas a legenda nunca é suficiente. Não porque a informação dela constante seja excessiva para caber num pequeno expositor, nem pelo facto de o visitante poder eventualmente não compreender o que vê diante de si mesmo se “legendado”. Antes porque onde o visitante (e ressalve-se o controvertido sujeito plural abstracto proposto pelo filme) vê o pitoresco, um negro – di-lo o filme – vê Cultura. Não são estátuas, afinal, mas pensamentos escritos em madeira, aliás incompreensíveis para quem os decide expôr (não só para quem os visita, então). A célebre máscara do primeiro plano da casa de La noire de… (1966), de Ousmane Sembène, também fala sobre isto: objecto decorativo para os patrões franceses, peça ou fragmento de cultura e tradição para a empregada doméstica (e, todavia, em Mandabi, também realizado por Sembène, um quadro de máscaras africanas surge, não menos descontextualizado, na casa de um burlão… senegalês). O “Nous ne savons rien” – primeiro e humanista passo na relação com o Outro – proferido por Negroni ecoará três anos depois no “De ce dortoir de briques, de ces sommeils menacés, nous ne pouvons que vous montrer l’écorce: la couleur” de Nuit et Brouillard; e, um pouco mais tarde, no “Tu n’as rien vu à Hiroshima” sussurrado por Emmanuelle Riva… Em todos eles, o abismo na perda da Memória e suas consequências. É esse descaminho da Memória – o esquecimento – que explica o dilema colocado pelo filme, a saber, a contemporaneidade de certas obras pelo gesto de interpelação que colocam ao presente e, simultaneamente, o desconhecimento, a ignorância sobre a sua origem e o seu contexto por parte de quem as observa, i.é, por quem elas é interpelado.
Um dilema mas, talvez mais importante, um paradoxo (que poderíamos designar de hipermnésico): o colono europeu que ocupou e arrasou países e culturas alheias preocupa-se em preservar, organizar e expor a arte e a cultura que não lhe pertenciam, que, em rigor, desprezava. Algo, parecer-nos-á hoje, da ordem do inconcebível (até de um ponto de vista prático ou logístico) e, porém, à data perfeitamente internalizado nos códigos e costumes da mentalidade colonial. Como se o medo, a fobia da perda de Memória, de alguma forma se acabasse por sobrepor à evidência de crime e destruição que os próprios objectos expostos testemunham (mas o ponto é esse: na psique colonialista, não existe crime, mas missão: civilizadora, evangelizadora, etc.). O Museion era, para os gregos, o templo de adoração das suas Musas; o museu colonial, invertendo o fascínio (mas, retorcidamente, mantendo-o), das suas vítimas. Como um herbário, o museu de Les statues meurent aussi (ou o museu colonial lato sensu) interrompe o fluxo da vida (a interrupção literal da existência, política e civilizacional, dos países subjugados), congela o tempo, preserva-o para uma estranha memória futura (Eis os vestígios daquilo que destruímos). Neste sentido, uma planta seca prensada e uma máscara como as que vemos no filme partilham uma funesta semelhança.
Outra forma de dizer que os mortos – e particularmente “os mortos de África”, do colonialismo ao ciclo vicioso, perverso, da dívida – falam sempre melhor do que os vivos.
O preço a pagar pela conquista, a morte e a destruição talvez não seja imediatamente visível, mas sobrevirá. E virar-se-á contra o conquistador, atónito, ignorante, sem saber o que fazer com o que contempla nas mãos (Que farei eu com este objecto? Comercializá-lo-ei? Terá… valor? Ou devo colocá-lo num… museu?). Quem com ferros mata, com ferros morre, ou, no dizer de Negroni, “O fogo dos conquistadores fez desta arte um enigma”. Há uma dupla incomunicação na ideia, proposta pelo filme, de que o visitante-filisteu de “arte negra” (sic) espera sempre que esta lhe “fale” quando as estátuas mudas estão. Não apenas uma questão de mudez, de silêncio; antes o próprio modo de comunicar através do silêncio. Emudecida, a arte pode dizer mais do que os homens com os seus olhos, bocas, sobrancelhas, voz. Comunicando, as estátuas são simultaneamente fonte de conhecimento e de recordação de uma cultura milenar arrancada do seu lugar. O Museu pode ser também um lugar de saque, de deslocação dos objectos da sua origem e respetivo contexto cultural e comunitário. [6]
Das estátuas ocidentais decepadas (a revanche do Tempo contra os opressores?) para os visitantes do museu, e daí para as máscaras de origem africana, Les statues meurent aussi desenvolve-se, parece-nos, sob a ordem do Rosto, convicto da sua força vivente por oposição à imobilidade da estatuária. Não é um plano qualquer, esse que o filme oferece nos primeiros minutos dos visitantes contemplando os expositores (rectius, a montra, que a câmara sublinha mostrando o puxador lado a lado com as cabeças dos visitantes): plano duplamente subjectivo no qual tanto a obra de arte (neste sentido viva, dotada de visão, subjectificada) como o espectador do filme observam o Outro a observá-lo a eles (reminiscências do negro como atracção de circo nos salões da aristocracia europeia?). Nesta espécie de “vida secreta dos objectos” (o que segredarão uns aos outros quando as luzes do museu se apagam? À Noite, no Museu…), os objectos, propõe Negroni, mortos estão quando o olhar vívido sobre eles se evapora.
Diríamos que não, que o filme neste ponto cede à intenção poética em prejuízo da coerência do discurso, pois que, momentos depois, asseverará que as máscaras a combatem (à morte), destapam o que ela quer ocultar. Nelas, máscaras, interessa à dupla francesa os rostos e suas particularidades fisionómicas: dentes, lábios, nariz, olhos… Mas não só; as expressões, turbações, traços perenes de vida e de reacção ao mundo e suas contingências. Marker e Resnais filmam estes rostos, porém, fora do contexto do Museu, literalmente: arrancam as estátuas e as máscaras das vitrines para as filmar no escuro (no negro, dir-se-ia). Um saque ao saque. Movimento de re-deslocação e aparente descontextualização que, paradoxalmente, lhes reforça a potência, o mistério, enfim, a beleza – mas também a inacessibilidade. “Nous ne savons rien”, ainda. Gesto minimalista no processo (o trabalho de luz e de câmara servido por travellings e panorâmicas de uma precisão quase absoluta), maximalista no efeito.
As estátuas também morrem, reza o título, mas os mortos, aqui, di-lo também o filme, são sábios (cosmogonia hoje distante, aqui sim, de um espectador ocidental). No inusitado courtroom movie de Bamako (2006), de Abderrahmane Sissako, um auto-intitulado criminólogo de câmara na mão (duplo do Realizador que faz cinema) faz as suas escolhas de casting: “Os rostos das pessoas quando falam… isso não me interessa. Aí não existe verdade. Eu prefiro os mortos, são mais verdadeiros”. Nunca sairemos daqui, desta reserva fundamental, mantra que assombrará irremediavelmente as “verdades” – mais ou menos justas, mais ou menos distorcidas ou simplistas – clamadas por advogados e testemunhas daquele tribunal coral (que os populares, numa adaptação do teatro grego, interrompem através de canções, poemas, ditos) em que as instituições financeiras internacionais se encontram a ser julgadas pela sociedade civil à conta dos danos históricos causados ao Mali e a África. Outra forma de dizer que os mortos – e particularmente “os mortos de África”, do colonialismo ao ciclo vicioso, perverso, da dívida – falam sempre melhor do que os vivos. Eles, os mortos, dizem tudo, são a prova documental, cabal e acabada, de todo e qualquer “facto” ou “alegação”. They Live.
Habitando o subterrâneo, eles, mortos, são as raízes dos vivos; a morte pode não ser fim, mas rizoma. Nesse caso, nenhum inconveniente avultará pelo facto de o Museu poder ser, afinal, um lugar de mortos; bem entendido, o Museu como lugar-rizoma (Deleuze/Guattari) no qual o passado é matéria viva, magma heterogéneo e múltiplo que percorre os dias. Um lugar de mortos, não um lugar morto. Em Rizoma, Deleuze e Guattari enunciam a cartografia como um dos princípios-chave. “O Mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, susceptível de receber modificações constantemente”. Sendo a montagem a linguagem própria do cinema, é também ela que preside à metolodogia proposta pelo alemão Aby Warburg para uma historiografia da arte (o contacto entre as imagens, bem como o intervalo entre si, como forma de investigar e produzir conhecimento); veja-se como Les statues meurent aussi propõe, através da utilização de imagens e, em particular, de um Mapa que poderíamos designar rizomático (ou do Atlas, para convocar novamente Warburg), uma história da Terra e do continente africano, encontrando-se as diferentes peças deste foetus du monde preenchidas com máscaras ou estátuas africanas (semelhantes às que estão expostas no museu do filme).
Um rizoma não é necessariamente fértil. Pode estar podre (como o museu de Les statues meurent aussi); a máscara faz, nesse caso, figura de rebelião contra a morte, destapa o que ela quer esconder: a memória, a cultura. Interessa aqui trazer novamente à colação a máscara que passa de mão em mão (do menino senegalês para Douana, desta para os seus patrões franceses e de volta para as mãos do menino) ao longo de La Noire de…. Se na casa dos patrões onde é afixada, a máscara, enquanto objecto decorativo, se vulgariza, mercantiliza (como os vasos de Les statues meurent aussi) [7], retomará já todo o seu vigor fantasmático na última cena do filme em que o menino, colocando-a sobre o seu rosto, persegue o ex-patrão de Douana pelas ruas de Dakar. Os mortos perseguindo os vivos, como os zombies do vodu haitiano que Jacques Tourneur filmou antes de o cinema americano os converter em filme de género; o passado (o colonialismo, o suicídio de Douana) que teima em não-se-deixar-ser (diferente de deixar-de-ser)… passado, eis a recusa essencial do apagamento, do esquecimento. [8] Ao contrário do livro de Franz Fanon, aqui, pele e máscara são uma só. O seu poder assombrador, perpétuo.
Ce pays de la mort où l’on va en perdant la mémoire.
[1] Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra, Antígona, 2017, p. 52.
[2] Parece-nos, aliás, que, no momento em que captam, deliberadamente, duas mulheres, aparentemente negras, a contemplar as peças e máscaras de origem africana, os cineastas desperdiçam a oportunidade de ensaiar um olhar diferente (das mulheres, do próprio filme).
[3] Repare-se como, num primeiro momento, a propósito da “arte negra”, o filme faz o elogio da não-hierarquização entre arte e função, na medida em que aquela colocaria no mesmo patamar uma colher, um pisa-papéis ou uma estátua (predominaria um “culto do mundo”, nas palavras de Negroni). Posteriormente, porém, o filme observa, em tom depreciativo, o facto de as peças africanas se terem mercantilizado e convertido em objectos decorativos – como pisa-papéis – para satisfazer a procura do consumidor europeu.
[4] Importará fazer do Museu um espaço heterodoxo, lugar de liberdade e contraditório, recusando a sua captura por esta ou aquela tendência dominante – ou vencedor – em cada época. A este propósito, cfr. Alice Gribbin, The Empathy Racket, 2021, disponível em https://alicegribbin.substack.com/p/the-empathy-racket
[5] O gesto tem uma óbvia e acrescida ironia pelo facto de a origem da espécie humana radicar no continente africano.
[6] O que naturalmente levanta a questão, muito actual (e muito espinhosa), da eventual restituição de peças pelos Museus ao lugar (à cultura) de onde são originários.
[7] Subtilmente, por volta dos 27m:16s, e com um simples movimento de câmara, Resnais e Marker con-fundem arte e comércio: partindo de uma vitrine (em tudo idêntica às do museu que víramos antes) na qual várias esculturas e máscaras se encontram empilhadas aleatoriamente (indiferentemente, dir-se-ia), a câmara roda para a direita e capta uma mulher (aparentemente negra), na rua (do lado de fora daquilo que o espectador percebe ser afinal uma loja), a observar, qual window shopper, as peças expostas na montra… Ironia maior: o facto de este consumidor, distante e desconhecedor das peças expostas (da sua cultura), já não ser apenas o colono, mas o próprio indivíduo de ascendência negra e/ou africana (o colonizado). Os cineastas cortam logo a seguir, menos subtil mas não menos inteligentemente, para o umbral de uma cabana num meio rural (aparentemente situado num país africano) onde quatros homens forjam peças idênticas às que acabáramos de ver na loja de numa faustosa rua de Paris.
[8] Em Atlantique (2019, Mati Diop), tal ideia expande-se, ademais se desamarrando de uma leitura exclusivamente (redutoramente) pós-colonial: os zombies, aqui, perseguem outros senegaleses como eles, homens negros que partilham com todos os homens under the sun a sede de ganância e exploração.